Hoje é dia da Lavagem do Bonfim

Por Assis Ribeiro

Hoje é dia da “Lavagem do Bonfim”

Luiz da Câmara Cascudo

Câmara Cascudo, folclorista, antropólogo e um dos mais produtivos estudiosos da cultura brasileira, escreveu no seu Dicionário do Folclore Brasileiro que nas Compitais romanas (festas em honra aos deuses Lares, protetores das encruzilhadas) e na grande Panatenéia grega (festa realizada em Atenas para homenagear a deusa Minerva) as encruzilhadas e o Partenon eram lavados, molhados ao som de cânticos. Os ídolos sempre tiveram seus dias de preparo votivo, especialmente Mercúrio em Roma ou Hermes na Grécia, e no Egito, Anúbis. Para Cascudo, também na África havia cerimônias de lavagem de imagens ou símbolos santificados.

Roger Bastide

Um dos primeiros professores da Universidade de São Paulo, Roger Bastide, antropólogo francês radicado no Brasil, contou, em seus Estudos afro-brasileiros (São Paulo, 1946), sobre o português que pela primeira vez teria lavado a escadaria do Bonfim. Ao subir em peregrinação, foi explicando o que ia fazer àqueles que encontrava e, pouco a pouco, foi-se formando à sua volta um pequeno grupo: nascera a cerimônia. Mas os pretos, que tinham o costume, nas suas religiões, de lavar os objetos sacrificiais com óleo de dendê, sangue ou água da fonte sagrada, confundiram naturalmente as cerimônias. Para eles, Oxalá era o homenageado.

Do Como Tudo Funciona

por Cíntia Costa

Na Bahia, na segunda quinta-feira depois do Dia de Reis, duas religiões que sempre viveram às turras se unem para um ritual religioso em comum – a lavagem da escada da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, no bairro Bonfim, em Salvador. Nesse dia, católicos e adeptos do candomblé percorrem juntos 8 km de ruas baianas, cantando hinos de adoração às duas principais divindades de cada crença, Nosso Senhor Jesus Cristo e Oxalá, configurando um dos maiores exemplos brasileiros do fenômeno de fusão de religiões conhecido como sincretismo. Mas o mais curioso da festa é que o centro do ritual, a escada, tem apenas 10 degraus, em torno dos quais cerca de 1 milhão de pessoas se reúne anualmente.

 

Prefeitura de Salvador/Divulgação Milhares de pessoas percorrem 8 km de ruas para a lavagem das escadas do Bonfim

A inusitada parceria entre as religiões tem origem na época da escravatura, quando portugueses e escravos, juntos, preparavam a capela para a festa de encerramento da novena de devoção ao Nosso Senhor do Bonfim.

A imagem do homenageado é uma réplica em madeira de 1,06 metro de outra do Cristo que é venerada em Setúbal (Portugal) e foi trazida ao Brasil em 1745 pelo capitão de Mar e Guerra Teodósio Rodrigues de Faria, português devoto. Ela foi instalada primeiramente na Capela de Nossa Senhora da Penha de França, em Itapagipe (MG), durante a Páscoa, e lá ficou até ganhar uma igreja em 1754, em Bonfim, em Salvador (Bahia), terra que lhe rendeu o nome.

Em 1804, foi instituída pelo papa Pio 7 a novena ao Nosso Senhor do Bonfim. A duração de nove dias é uma referência ao intervalo entre a ascensão de Jesus Cristo ao céu após a ressurreição e a descida do Espírito Santo narrada na Bíblia. Nesse período, os fiéis se reúnem em missas noturnas com música e orações. A novena culmina em uma missa festiva na manhã do último dia, o segundo domingo depois da Festa de Reis.

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Prefeitura de Salvador/Divulgação Multidão acompanha a celebração do Bonfim

Na quinta-feira anterior à festa de encerramento, os senhores portugueses faziam seus escravos prepararem o templo juntamente com os fiéis, limpando e enfeitando a igreja por dentro e por fora. Vindos da África, os escravos eram obrigados a aderir ao catolicismo, a despeito de sua crença de origem, segundo Josildete Consorte, antropóloga e pesquisadora de sincretismo afro-católico. Para manter suas tradições religiosas, eles faziam associações entre divindades cristãs e entidades do candomblé. Assim, a preparação da igreja foi transformada em ato de louvor à principal entidade do candomblé: Oxalá, o orixá associado ao Nosso Senhor do Bonfim.

Até o fim dos anos 1950, a tradição tinha uma característica popular, e a igreja era efetivamente lavada pelos participantes. A partir da década de 60, quando a Bahia se transformou em pólo turístico e o ritual começou a reunir multidões, por razões de segurança, a lavagem passou a ser simbólica e a acontecer apenas do lado de fora da igreja, que mantém suas portas fechadas no dia, deixando acessível apenas a escada de acesso.

Além dos fiéis, participam bandas, grupos de manifestação folclórica, turistas e curiosos. Muitos se vestem de branco para a ocasião, que é a cor de Oxalá. Mulheres trajadas de baianas, com vestidos brancos, turbantes e braceletes, lideram o cortejo, que sai da Igreja da Conceição da Praia, no bairro Dois de Julho em Salvador (BA), por volta das 10 horas da manhã, após o término de uma missa. Elas seguem carregando vasos com a água perfumada que é derramada nos degraus da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim.

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Prefeitura de Salvador/Divulgação
Baianas vestidas a carater carregam a ­ água perfumada que é usada n­o Bonfim

O líquido é preparado nos terreiros de candomblé de um a sete dias antes do rito.O perfume vem de folhas e ervas cheirosas, como laranjeira, manjericão, macaçá e alfazema e de água de levante, explica a Mãe de Santo Benizaura Rocha de Almeida, do terreiro Luanda Junça (Salvador, BA). A mistura fica em repouso em uma sala sagrada de culto para a materialização da força do orixá até o dia da festa, segundo o babalorixá (sacerdote) Alexandre T´Ogun Olumaki (Alexandre Soares de Almeida Sampaio Leite), do terreiro Ilê Axé Ogun Atojá, em São Paulo. Além de servir para lavar os degraus da capela, a água é usada também para ungir pelo caminho os participantes que buscam proteção espiritual. O ritual termina em festa, animada por música e comidas e bebidas típicas vendidas nas barracas que são montadas ao redor da igreja.

Apesar do clima de confraternização, o cientista religioso Afonso Soares, da Pós-Graduação da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), explica que este tipo de equilíbrio entre as duas crenças não é fácil, pois existem atritos entre as religiões cristãs e as afro-brasileiras. Existem, inclusive, movimentos no sentido contrário ao sincretismo, que visam separar o candomblé do catolicismo.

A razão para tal tolerância na lavagem das escadas é que o evento é considerado mais uma festa profana com forte apelo turístico que um rito religioso, segundo a prefeitura soteropolitana. O evento reúne todos os anos cerca de 1 milhão de pessoas, segundo dados da prefeitura de Salvador, e é o segundo maior da cidade, perdendo apenas para o Carnaval.

Vídeos:

Fonte: Advivo

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