Hotel Laide: A lembrança da Cracolândia

Entre o manicômio, o presídio e a Cracolândia, o que havia era uma diferença de geografia. Todos são refugiados da vida, gente sem laços, à espera.

Por Debora Diniz, do  HuffPost Brasil

As pessoas me perguntam por que fiz um filme na Cracolândia em São Paulo. Não uso jaleco branco, não tenho autoridade da assistência social, não transitava por ali como alguém tendo algo a oferecer ou cuidar.

Cheguei à Cracolândia depois de ter visitado todos os manicômios judiciários do País, instituições a meio caminho entre o hospício e o presídio. Cheguei à Cracolândia enquanto puxava plantão numa cadeia de meninas em Brasília.

Diferentemente dos que descrevem o lugar como uma barbárie, o que encontrei era o que já conhecia dos manicômios ou presídios – a mesma população, uma multidão de refugiados da vida, só que a céu aberto, e com câmeras de vigilância dia e noite.

Passei muitos dias na Cracolândia. Quase sempre acompanhada de Carmen, uma assistente social com direito a trânsito livre no fluxo. Fui outros dias sozinha. Entrei no território com o salve dos disciplinas, apresentei-me aos policiais que vigiavam o fluxo.

Os dois lados da força sabiam que eu estava ali para fazer um filme, alguns me estranhavam mais do que outros, mas os dois grupos me acompanhavam. Pedi para entrar no fluxo com câmera aberta, algo inédito para um espaço que desconfia de quem filma. Só com a autorização fiz a cena do anjo do documentário Hotel Laide. Nunca menti sobre meus planos e, por isso, nunca tive pacto rompido por quem mandava na Cracolândia. Não experimentei medo entre os zumbis; ao contrário, só afeto e respeito.

Isso não é romantismo, como dizem alguns. É simplesmente aprender a conviver com a humanidade como ela se apresenta. Entre o manicômio, o presídio e a Cracolândia, o que havia era uma diferença de geografia. As populações eram muito parecidas – todos refugiados da vida, gente sem laços, documentos ou lembranças, um povo à espera de qualquer coisa.

A destruição da Cracolândia não é um massacre qualquer, é um assombro contra a esperança do pouco que restou aos refugiados; não é por acaso que os zumbis são sobreviventes do sistema prisional ou das internações compulsórias. Era como se eu os visse, ora entre as grades, ora entre os papelões da rua.

Esta foi a estória de Angélica, a personagem do documentário. Viveu na rua dos sete aos 23 anos, intercalou o chão frio com a pedra do presídio ou os remédios do hospício.

A escolha por viver na rua é parte da perdição de vidas desgarradas de todas as formas de proteção, seja da escola ou do trabalho. Angélica estava cansada da rua, escolheu fazer parte do programa de redução de danos chamado “De Braços Abertos”, o mesmo também destruído pelo prefeito Doria.

Redução de danos não é ofertar droga para malandro descansar à custa do Estado – é um programa de cuidado, porém lento e delicado, de reaproximação do usuário a outras formas de existência.

Para quem não entende o que seja redução de danos, convido assistir ao filme. Angélica chegou ao Hotel Laide, incendiado como em um prelúdio do massacre que assolou a Cracolândia, com um cachimbo pendurado no boné. Tão logo se ajeitou no quarto que dormiria, perguntou se já poderia tomar banho.

Na cena seguinte, o cachimbo desapareceu de seu corpo. A imagem é singela, mas poderosa para o sentido de “redução de danos”: é o cachimbo que se esconde, o banho que acalma, as unhas sem o preto do asfalto.

Repito: acompanhar Angélica não tem nada de estória romântica de sucesso. É de uma simplicidade atroz. É oferecer condições mínimas para a existência, é poder dormir fora do chão da rua.

Brenda, umas das habitantes da casa, explica à Angélica por que o Hotel Laide lhe era tão importante – “aqui eu tenho minha caminha”. As duas voltaram para a rua, fazem parte da multidão que se move em bando à procura de outra Cracolândia, pois não querem ser zumbis solitários pelas ruas de São Paulo.

O pedido de permanência é também um grito de resistência: é a humanidade querendo viver, mas em liberdade.

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