A Insurreição dos Saberes Sujeitados

“Eu gostaria de ter percebido antes e realmente não fazer nenhuma carreira acadêmica, não estudar na universidade, e que notassem que não o fiz. Lamento muito que me liguem ao pensamento intelectual, que acreditem que eu seja uma acadêmica. Dei-me conta tarde do pouco valor que isso tem e de quão pouco interessante é o que se produz na academia, especialmente em Buenos Aires. Se voltasse a nascer, seria boxeadora profissional, ou me dedicaria à música ou ao trabalho sexual, para fazer muito dinheiro, porque fui muito linda e feminina quando jovem e não aproveitei isso e o desperdicei sem fazer grande caso.”

(Leonor Silvestri)

“[…] produzir para todos para tudo para total produssumo [#desceopignatari] paralém das fronteiras intelectualóides academicistas: univer[c]idade essa mania d acúmulo d repertório d somatório d referência bibliográfica como arquivo morto já era para todos os módulos: in corporação total movimento antropofágico d engolir un autre q pulsa para produzir a si mesmo a coisa a invenção produção d si d signos comunicação d massa quantidades às massas para q todo mundo escolha e incorpore em sua vida os sentidos as proposições e exploda e façam as suas proponham geral | abrir os campos”
(Yuri Tripodi)

“De certo esta opção que faço implica, tendo em vista a instituição acadêmica à qual estou vinculado, uma série de rupturas e tensões, matizadas pela necessidade de negociar com as normatizações disciplinares ligadas à produção de conhecimento no marco das Ciências Sociais. Trata-se, aqui, de tentar ser monstruoso no espaço da norma; indisciplinado no lugar da disciplina. Uma batalha inglória e arriscada, se levo em consideração os riscos de ser excluído ou capturado pela lógica do saber institucional. Mas tenho minha malícia. E como escreveu Paul Goodman: ‘a malícia é a força dos sem poder.’”
(Jota Mombaça)
Percurso sinuoso este que estamos trilhando, pois, num piscar de olhos, nos vemos fazendo retornos inesperados ou desvios que muitas vezes nos levam a becos sem saída. Talvez este seja o caso: primeiro sentimos a necessidade de mudar a aposta política de “Dissidentes da Aids” para “Contracondutas da Aids” e, em seguida, fazer uma crítica à Academia e a essa ainda atual  compartimentalização de saberes. Ambas as apostas não foram feitas sem dores de cabeça. A primeira mudança veio de conversas que tivemos com sujeitxs de uma ação política muito forte e “material”, por assim dizer, pessoas que hoje lutam contra a indústria médico-farmacêutica (creio que não há como facilmente separar essas duas classes) utilizando uma plataforma política muito potente e frágil ao mesmo tempo: seus próprios corpos.

A urgência dessa questão levou imediatamente ao reposicionamento político tanto do blog quanto da página do Facebook. Nos deteremos inicialmente nessas questões da dissidência e das contracondutas médicas, que por si só são um mar de reflexões um tanto dolorosas. A segunda inquietação veio das experiências de confrontos com a Universidade, que, como vocês bem sabem, não é uma entidade metafísica, há sujeitxs bem materializadxs na forma de uma autoridade “empacada”, que funcionam bastante ao modo do sistema imunológico de qualquer organismo. Essxs sujeitxs são como anticorpos desse sistema escolar démodé. Foi pelas dificuldades encontradas nos moldes atuais tanto de publicação quanto da eliminação política de tudo que possa ser realmente revolucionário em termos de epistemologia (há quem chame de epistemicídio) que nos vimos às voltas com o tema “Academia”.
No início, pensávamo-nos como dissidentes da Aids e assim chamamos tanto o blog quanto a página. Naquele momento, já estávamos a par de toda uma série de artigos e documentários que questionam a instituição que hoje é a Aids. Logo descobrimos que, com exceção do Brasil (não conseguimos “diagnosticar” ainda a razão disso), havia uma movimentação da Dissidência da Aids bastante forte em grande parte da América Latina. Cito a título de exemplo algumas dessas plataformas que podem ser encontradas em grupos e páginas no Facebook:

 

Talvez o momento decisivo tenha sido quando um desses dissidentes, já com seus quarenta e poucos anos, um sobrevivente daquela carnificina inicial com o AZT, tenha nos provocado, dizendo que filosofia não era importante e que, de fato, o importante eram as vidas. Certamente, não discordamos dele, e justamente pelo respeito que procuramos ter com as pessoas localizadas (falamos um pouco disso aqui) decidimos fazer essa separação imediata do que tem se caracterizado pela constância e congruência de ações tanto políticas quanto epistêmicas como “Dissidência da Aids”. As eventuais falas dxs dissidentes que utilizarmos aqui não estão em arquivos que exijam direitos autorais ou mesmo que necessitem de referência aos nomes verdadeiros dxs sujeitxs que as proferiram. Todas foram retiradas dos links que disponibilizamos e poderão ser conferidas. Em todo caso, não citaremos nomes de ninguém, e como mostra do teor político dessxs sujeitxs, compartilhamos a seguinte fala:

“Gostaria que se respeitasse o aspecto sério, formal, coerente e documentado deste grupo. Foi selecionada uma variedade de fontes de informação as quais são congruentes no mesmo ponto. O HIV não existe e a AIDS tem outra origem. Ela/Ele que esteja de acordo com a teoria oficial e deseje seguir os programas protocolares e fazer parte deste grande genocídio, sigam adiante, mas saibam que este é o grupo errado pois ele se chama Dissidentes do HIV-AIDS. E se querem postar coisinhas românticas aqui e mensagenzinhas de amor ao próximo, usem o perfil pessoal de vocês, aqui não promovemos religião, política nem dizemos nem sugerimos a ninguém como viver suas vidas, apenas se trata de compartilhar informação.” (M.I.)

No original: “Me gustaría que se respete el aspecto serio, formal, coherente y documental de este grupo. Se ha seleccionado una variedad de fuentes de información las cuales son congruentes en el mismo punto. VIH no existe y SIDA tiene otro orígen. El/la que esté de acuerdo con la teoría oficialista y desee seguir los programas protocolares y ser parte de este gran genocidio, adelante pero sepan que este es el grupo equivocado por ello se llama Disidentes del VIH-SIDA. Y si quieren colgar tarjetitas románticas y mensajitos de ama a tu prójimo usen sus perfiles personales acá no promovemos religión, política ni le decimos ni sugerimos a nadie como vivir su vida solo se trata de compartir información.” (M.I.)
É necessário enfatizar esse caráter documental, documentado mesmo da Dissidência, porque a primeira grande arma disso que a dissidência chama de teoria oficialista, é descreditar os “rumores laterais”. Com rumores não aludimos a algo de menor importância, mas, sim, evidenciamos esse lugar quase inaudível para onde enviam as “inconveniências discursivas”. Como já tratamos, o papel da mídia na materialização da Aids é e foi central:
“O aparato terrorista-midiático tratou de cristalizar no imaginário cultural a imagem do homossexual drogado, estabeleceu a multifatorialidade da culpa, definiu situações em que o comportamento individual torna-se perigoso a outros indivíduos, estabeleceu limites para as práticas sexuais e agiu como órgão do Poder Público, uma espécie de aparelho midiático-jurídico-punitivo. Cabe lembrar que mesmo em âmbito nacional, a mídia sempre recorreu às duas grandes corporações midiáticas CNN-Turner e Fox. Essas corporações midiáticas há tempos trabalham em conjunto com os governos agindo como “aparelhos condutores” da população ovelha (ora, isso não é segredo para ninguém).”

https://contra-condutasdaaids.blogspot.com.br/2013/12/aids-ou-ids.html
Da mesma forma funcionam os “aparatos de verificação”, como quer Beatriz Preciado, que incluem periódicos, revistas científicas e toda a ladainha que rege as publicações em âmbito acadêmico. Mas disso trataremos a seguir. Mais uma vez aludimos a toda essa documentação, toda essa literatura que está excluída do circuito dos “saberes imperiais”, dos “saberes soberanos” da Universidade. Por isso esse nosso caráter triplamente subalterno, pois absolutamente desvinculado desses referidos circuitos, abortado e abertamente hostil à boa consciência acadêmica. Essas fontes amplamente divulgadas pelas plataformas dissidentes estão excluídas dos circuitos acadêmicos e tudo indica que tão cedo não os adentrarão, sob pena, arriscaríamos dizer, de serem assimiladas e transformadas em pastiche esterilizado. Quando muito, aparecem os antropólogos de plantão falando de um “outro” dissidente e bancando os colonizadores em prol do governo e do Estado que financiam suas pesquisas, o que achamos igualmente patético, pois se trata desse mesmo mecanismo que captura os saberes potencialmente revolucionários e os traduzem para o idioma acadêmico, com o selo da Universidade-Estado.

Nossa necessidade de “dividir as águas” é por um cuidado de não exercer essa colonização, que se outorga uma autoridade fictícia de falar por umx outrx, ainda que essx outrx esteja muito próximx do que compreendemos como nossas próprias identidades políticas. Quando explicitamos as “ferramentas de análise” (termo horroroso, admitimos) e as formas pelas quais entendíamos que a Aids deveria ser dissecada, uma fenda discursiva se abriu em relação à visão dissidente, de forma que nos vimos em uma pequena ilha, uma ilha de contracondutas. Logo revisitaremos as origens desses termos, mas tanto por respeito à Dissidência da Aids quanto pelo simples fato de termos entendido que nosso trabalho é outro, é que recorremos a esse conceito de contraconduta. O fato é que tudo indica que houve uma certa banalização da lógica dissidente, pelo menos se estivermos de acordo com Foucault, a quem não mais pediremos licença. Tampouco nos daremos ao trabalho de dizer onde e quando foi dito isso ou aquilo (entre outras razões, pelo simples fato de esse trabalho ser um tipo de conduta acadêmica que recusaremos seguir). Como o próprio Foucault disse certa vez, autores servem para torcer, fazer ranger. “Afinal de contas, quem hoje não faz sua própria teoria da dissidência?”

“Abandonemos então esse termo, lhes proporei outro, sem dúvida mal construído, o de ‘contraconduta’ – cuja única vantagem é permitir referir-se ao sentido ativo da palavra conduta –, contraconduta no sentido de luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir aos outros; o qual me leva a preferir este termo a ‘inconduta’, que somente remete ao sentido passivo da palavra, o comportamento: não conduzir-se como é devido. Além do mais, ‘contraconduta’ talvez permita evitar certa substantivação facilitada pela palavra ‘dissidência’. Pois de dissidência vem ‘dissidente’ ou o contrário, não importa; em todo caso, faz dissidência quem é dissidente.” (M.F.) É exatamente aqui que nos detemos, já que não fazemos dissidência, pois não somos dissidentes, ainda não é o caso de termos sido localizadxs pelo Biopanóptico. Também nos ocorre agora que esse é outro termo que cunhamos e que temos usado com certa frequência sem especificar pormenorizadamente o que intencionamos com ele. Faremos uma breve pausa aqui para falar disso e na sequência retomaremos as contracondutas.

Todxs (todxs não, é muita gente, mas um grande número de pessoas) talvez estejam já bastante familiarizadas com o que seja o Panóptico e com as tecnologias e mecanismos panópticos que derivam das análises de M.F. sobre o panóptico de Bentham, que muito grosseira e rapidamente, consiste em uma vigilância muito eficaz, posto que de um único centro se vigia um grande número de pessoas ao mesmo tempo. Esse tipo de vigilância causa ainda um outro efeito que é realmente impressionante, a saber: provoca em nós esta estranha sensação de sermos vigiadxs, mesmo quando não há alguém ou algo que de fato esteja nos vigiando. Esse foi um dos principais mecanismos que possibilitaram a passagem das sociedades feudais para as sociedades modernas e capitalistas. Para amarrar essa análise com a nossa sobre as contracondutas, bastaria associarmos todo esse aspecto, tanto disciplinar (que se dá com o pavor e o medo da morte e de morrer de formas horríveis) quanto de uma conduta sexual, formas prescritas tanto pelo poder médico quanto pelo Estado de se relacionar sexualmente, de como e onde utilizar uma tecnologia higienizante como as camisinhas (ganhos múltiplos tanto no fazer viver o corpo social, já que com a camisinha se evita de fato doenças sexualmente transmissíveis corriqueiras, como sífilis e gonorreia, como econômico, já que hoje podemos escolher, bem ao lado das balas e guloseimas, os sabores banana, morango e chocolate).

É isso que chamamos então de Biopanóptico, termo imperfeito e tomado não de empréstimo de Foucault, mas descaradamente apropriado e retorcido. Bio porque também não podemos esquecer que é de um controle sobre a vida que estamos falando, de um controle populacional, de condutas da existência, das subjetividades de seres humanos, enfim, todo um comportamento e estilo de vida que deverá caber no formato do Estado Capitalista ou, mais especificamente, no Heterocapitalismo. Temos aí, portanto, um mecanismo ao modelo do Panóptico, um olho biomédico, um centro tecnobiopsíquico que vigia, prescreve, controla tanto os modos como as pessoas fazem sexo como suas identidades, inclusive criadas a partir mesmo desta nova tecnologia. “De fato, Bentham nem sequer diz que é um esquema para instituições, ele diz que é um mecanismo, um esquema que dá força a toda instituição, uma espécie de mecanismo pelo qual o poder que atua ou deve atuar numa instituição vai poder adquirir o máximo de força. O panóptico é um multiplicador; é um intensificador de poder dentro de toda uma série de instituições possíveis. Trata-se de tornar a força do poder mais intensa, sua distribuição melhor, seu alvo de aplicação mais certo. No fundo, são os três objetivos do Panóptico, e Bentham diz isso: ‘sua excelência consiste na grande força que ele é capaz de dar a toda instituição a que é aplicado’. E, numa outra passagem, diz que o que há de maravilhoso no Panóptico é que ele ‘dá aos que dirigem a instituição uma força hercúlea’. Ele dá uma ‘força hercúlea’ ao poder que circula na instituição, e ao indivíduo que detém ou que dirige esse poder.” (M.F.)

Existe hoje um esquema médico diretamente ligado ao poder público que filtra, direciona, classifica e finalmente “localiza” essxs indivíduos que de uma forma ou de outra mais imediatamente se enquadram no perfil “epidemiológico” desse mesmo esquema. Do que estamos falando? Especificamente em relação ao SUS, há hoje um modelo profilático, digamos, de lidar com as DST. Pessoas que hoje chegam com qualquer suspeita de uma DST compulsoriamente deverão fazer o Elisa, que é o teste patenteado pelos EUA e que “detecta” algo que já não se sabe realmente ao certo se pode ser detectado (mas esse é um assunto que estamos reservando para análises futuras). Além do Elisa, xs sujeitxs também deverão responder a questionários sobre quantidade de parceiros e preferências sexuais, toda uma classificação por identidades prescritas pelo saber-poder médico. Essas informações, para quem não sabe, são e serão utilizadas como critérios para resultados “positivos” no Elisa. Sabemos ao certo que essas informações são efetivamente utilizadas como critérios morais que completam os requisitos para a positivação em kits rápidos para detecção de HIV, exatamente aqueles que vemos sendo anunciados nas paradas gays, como se estivessem nos convidando para aferirmos nossa pressão.

Descrito, então, está o que entendemos por Biopanóptico: não se trata apenas de um aparato físico, nem de um objeto como no caso do panóptico de Bentham, mas de uma ideia, que tem como principal função distribuir identidades, organizar as condutas, classificar e localizar indivíduos. Um eficiente mecanismo profilático, que evita doenças que custam caro ao Estado, mas relativamente fáceis de tratar com antibióticos, como no caso da sífilis e da gonorreia. Especialmente no cenário que tentamos descrever de fins das décadas de 60 e 70, podemos imaginar a eficácia econômica desse mecanismo, com uma diminuição considerável dos casos de sífilis e gonorreia, com o uso dos preservativos transformados em norma e, por fim, conduta naturalizada do Biopanóptico. Apropriado, apesar de imperfeito e apressado, é esse conceito, pois nos possibilita imaginar um cenário específico, um poder específico e formas de controle eficazes vinculadas tanto a empresas e grandes corporações (indústria médica e farmacêutica) quanto ao Estado e suas velhas formas de controle através de profilaxias epidemiológicas.

A Aids para nós é, portanto, não apenas um acontecimento do acaso, no qual, por uma grande falta de sorte, um vírus absolutamente letal e desconhecido, altamente traiçoeiro (por sempre esconder sua “cara”), resolve “dar um passeio” pelas saunas de Nova York e São Francisco. A síndrome da imunodeficiência, como tratamos no capítulo passado, está longe de ser algo novo, um acontecimento recente. O que é nova é sua versão “Adquirida”, um refinado conjunto de técnicas disciplinares e de controle (uma vez que podemos pensar num dimorfismo da Aids, efeitos de ruptura e efeitos de manutenção do controle e das disciplinas) que são resultado do acúmulo de técnicas biopolíticas e de governamentalidade. Por todas essas razões, é de um aparelho ou aparato condutor de populações, que surge estrategicamente, num momento em que as também contracondutas do capitalismo (Contracultura) pareciam estar de fato ameaçando esse modelo. Pensar a Aids hoje é antes de mais nada entender certos funcionamentos de muitas identidades, é entender como funcionam de fato as políticas LGBT via departamentos de DST-Aids, é entender como o poder médico aliado ao Estado e às grandes corporações pode funcionar como instância regulamentadora, fazendo funcionar e arrastando consigo todo o aparato jurídico-estatal (ainda falaremos de como a justiça tem condenado pessoas “soropositivas” por assassinato, alegando que premeditadamente contaminaram pessoas “inocentes”).

Contracondutas, então, nos permite falar de coisas amplas, para além apenas de uma recusa à indústria médico-farmacêutica, ainda que saibamos da extrema importância dessa movimentação política que se autoproclama “Dissidência da Aids”. As contracondutas nos permitirão também falar disso que poderia ser chamado de “Contracondutas Acadêmicas”, já que este trabalho em grande parte surge de uma recusa categórica aos mecanismos reguladores do mundo acadêmico, com seus cortes e recortes, exclusões e direcionamentos políticos. Se estivéssemos tratando disso num regime de mestrado acadêmico, que área seria melhor? Educação? Saúde? Antropologia? Filosofia ou Ciências Sociais? Esses compartimentos são o que há de mais datado e mofado hoje para entendermos processos complexos e interdisciplinares. Fazem-nos crer que se falamos desde um lugar reconhecido como “ciências humanas”, então não temos “autoridade” ou “legitimidade” para falar de transcriptases reversas e enzimas enigmáticas. Uma contraconduta acadêmica requer, em primeiro lugar, a destruição desses compartimentos e um olhar muito mais “interdisciplinar”. Não nos prenderemos a um conjunto de regras e prescrições acadêmicas para definir o que é empírico ou científico.

Com Foucault e pensando especificamente nosso posicionamento em relação à Dissidência, não estamos “certos de que essa substantivação seja útil (Dissidentes). Temo inclusive que seja perigosa, porque não há muito sentido, a rigor, dizer por exemplo que um louco ou um delinquente sejam dissidentes. Há nisso um procedimento de santificação ou heroísmo que não me parece muito válido. Ao contrário, ao empregar a palavra contraconduta, é possível, sem ter que sacralizar como dissidente a esse ou aquele, analisar os componentes na maneira concreta de atuar de alguém no campo muito geral da política ou no campo muito geral das relações de poder; isso permite assinalar a dimensão, o componente de contraconduta, dimensão de contraconduta que pode encontrar-se perfeitamente nos delinquentes, nos loucos ou nos doentes. Consequentemente, análise de uma imensa família do que poderíamos chamar as contracondutas.” (M.F.) Claro que essas palavras têm ainda o peso de uma personalidade como Foucault, a quem citamos porque não acreditamos em plágio, mas, sim, no “hackeamento” do saber. Em todo caso, nos apropriamos desse termo ainda que em toda sua insuficiência, para não falarmos em nome dessa dissidência da Aids que já mencionamos e deixarmos aberto esse leque de contracondutas, em especial das contracondutas acadêmicas, que inevitavelmente já delimitamos ainda nesse tópico.

Produssumo, Monstruosidades e Desobediências Epistemológicas

“A decisão do pensamento não pode ser um evento intra-institucional, um momento acadêmico.”
(Derrida)

O que é portanto o saber? Essa questão nos leva imediatamente a outra ainda mais fundamental: o que pode ou não ser considerado saber? E com ainda outra ressalva: de acordo com quais cânones e a partir de qual “disciplina”? Já temos uma ideia hoje de quão antiquado parece este termo, “disciplina”, mas o desuso e o mofo que ele traz consigo está para além desse significante, pois não adianta trocarmos “disciplina” por “módulo” ou qualquer outro eufemismo do gênero, se essencialmente o mofo está no cerne mesmo das instituições educacionais. Nos limitaremos a falar da Universidade e de seu teatro de papelão em torno dos estudantes, seus exercícios hierárquicos, e a transmissão de um saber fundamentalmente datado, pois fragmentado, regulado e formatado. Parece-nos então, que a questão da Universidade se divide em duas problemáticas: uma é a própria razão e o que compreendemos como saber, a outra tem a ver com esses exercícios hierárquicos e esse teatro em torno dxs estudantes.
Por sorte, vimos recentemente Agambem dizer que a Filosofia não é uma disciplina, e sim uma “intensidade”. Mas poderíamos dizer que todo esse exercício de confrontação política e epistêmica cabe no que tem sido classificado nos cânones filosóficos? Não sabemos nem pretendemos dizer, muito menos tentar nos posicionar dentro de alguma disciplina específica, com seus roteiros prontos e “objetos” de pesquisa, perguntas “norteadoras”, “trabalhos de campo” e “entrevistas”. Tampouco estamos dizendo que esses mecanismos produtores e formadores de um tipo de saber são obsoletos ou que não nos servem, mas nos parece que suas utilizações cumprem muito mais uma tarefa normatizadora e formatadora do que propriamente possibilitam uma interação descomprometida com o conhecimento.

Mas subitamente nos lembramos de que não estamos na Universidade, não precisamos nos ater às suas regras de produção de conhecimento, com sua lógica produtivista e quantitativa. E aqui fazemos novamente uso das palavras de Yuri Tripodi, que citamos no início:
“… produzir para todos para tudo para total produssumo [#desceopignatari] paralém das fronteiras intelectualóides academicistas: univer[c]idade essa mania d acúmulo d repertório d somatório d referência bibliográfica como arquivo morto já era para todos os módulos: in corporação total movimento antropofágico d engolir un autre q pulsa para produzir a si mesmo a coisa a invenção produção d si d signos comunicação d massa quantidades às massas para q todo mundo escolha e incorpore em sua vida os sentidos as proposições e exploda e façam as suas proponham geral | abrir os campos” (Yuri Tripodi)
Recentemente, Yuri Tripodi fez uma intervenção em Salvador. Utilizando o corpo da melhor forma política possível, ao modelo do que temos narrado ao falar das políticas genderbender e dos Dzi Croquettes, Tripodi vestiu um maiô bastante interessante, mais recatado na frente, mas geométrico e ousado atrás, com apenas um pequenino fio cobrindo seu cu. À medida que Yuri passava por uma praia em Salvador, com sua fisionomia e performance de gênero a princípio lidas como masculinas e uma barba espessa, pessoas começaram a segui-lo e o montante aumentava, com risadinhas e um clima de puro desconcerto misturado com libertação. A performance foi cortante e muito provocativa. Disponibilizamos aqui o link para quem ainda não conhece.

É com outro sentido e utilizando uma plataforma virtual como esta (do blog) que intencionamos algo que tem este mesmo fim: romper com o arquivo morto de referências, esquemas modulares e disciplinares, submissão a hierarquias acadêmicas extremamente violentas, com o seu jogo de egos entre as divindades do Olimpo Epistêmico. Produção para além daquele “Facebook acadêmico” chamado Plataforma Lattes, com suas letrinhas A e B, resumida aos circuitos dos jogos vorazes de publicação. Nossa intenção é criar signos fora dessa modulação carimbada com selo de aprovação Qualis A ou B. Porém, damo-nos conta de que trouxemos no subtítulo acima a palavra “produssumo”, que mais propriamente trata de um conceito, de uma forma talvez quase completamente nova de nos relacionamos com os signos, com o que se comun-ica. Aos investigarmos minimamente essa aposta “contracomunicativa”, logo percebemos que tampouco estamos exatamente próximos dela, ainda que reverberando. Um trecho do próprio idealizador dessa ideia, Décio Pitagnari, pode nos ajudar a compreender melhor:

“Não há mais tempo para textos, só para títulos. Textítulos, textículos. Só a NOVA BARBÁRIE abre a sensibilidade aos contatos vivos. Os Ushers, de Poe, chegam a um tal requinte dos sentidos que se podem suportar a grossura do paladar. A tecnologia chega a um tal ponto de requinte que passa a requerer o marco zero de uma NOVA BARBÁRIE para desobstruir os poros. Sociedade cada vez mais rica, vida cada vez mais pobre. O dinheiro é a leucemia. Os modelos de consumo de hoje são os modelos da produção de 40 anos atrás: vide Oswald de Andrade e o Tropicalismo do grupo baiano. É tempo de PRODUSSUMO. O estudante está para a universidade como o operário para a fábrica. O estudante é o operário da informação. Os estudantes repetem na superestrutura os modelos das lutas operárias infraextruturais do passado. PRODUSSUMO. O mundo do consumo substituído pelo mundo da informação, onde se travarão as grandes lutas. NOVA BARBÁRIE: campo aberto para os novos modelos da batalha informacional. As elites, particularmente as do ensino, estão podres de burrice: qualquer novo bárbaro sabe mais do que eles.”

Disponibilizamos aqui o link para quem se interessar pela ideia de Produssumo. Deixemo-nos afetar por esta lógica à medida que passa o tempo. Parte desse exercício de escapar dos esquemas absolutamente formais da academia consiste em tentar trazer minimamente estes novos patamares, avatares, plataformas novas do pensar, deixar explodir os signos para ver brilhar o que estava apenas ofuscado pelos significantes opacos. “É necessário repensar, recriar tanto uma coisa quanto outra, isto é, tanto os signos quanto a vida.” Ainda que distantes desse horizonte, permitam-nos imaginar que demos um primeiro passo.

Isso pode parecer algo impensável para muitxs, mas já está sendo colocado em prática há algum tempo por escritorxs e performers mais próximos de uma lógica anárquica (que não é o mesmo que dizer anarquista). Umx dessas autoras que também é fonte de inspiração para nós é Leonor Silvestri, e mais uma vez reutilizamos uma das citações iniciais:

“Eu gostaria de ter percebido antes e realmente não fazer nenhuma carreira acadêmica, não estudar na universidade, e que notassem que não o fiz. Lamento muito que me liguem ao pensamento intelectual, que acreditem que eu seja uma acadêmica. Dei-me conta tarde do pouco valor que isso tem e de quão pouco interessante é o que se produz na academia, especialmente em Buenos Aires. Se voltasse a nascer, seria boxeadora profissional, ou me dedicaria à música ou ao trabalho sexual, para fazer muito dinheiro, porque fui muito linda e feminina quando jovem e não aproveitei isso e o desperdicei sem fazer grande caso.” (Leonor Silvestri)

O que disse Leonor Silvestri é de suma importância para não confundirmos academicismo com a pura e simples apropriação do saber que é utilizado em âmbito acadêmico. A mensagem é simples: a utilização do pensamento de autorxs como Beatriz Preciado, Judith Butler, Michel Foucault, Nietzsche e Heidegger, para citar apenas alguns, não pode e não deve ser um privilégio de acadêmicos. Essxs autorxs deveriam ser lidxs como se lê um blog, um romance ou um jornal, não entre aspas com número de página e ano (em geral, mantemos as aspas aqui apenas para sinalizar outras falas que não as nossas). Este é nosso entendimento do que Leonor diz quando afirma que lamenta ser confundida com intelectuais, palavra que designa uma “profissão do pensar”, que Foucault tanto repudiou. Sabemos da distância que existe entre a fala professoral e a realidade política:

“Parece-me que, todavia, se poderia dizer o seguinte: a transmissão de saber pela fala, pela fala professoral nas salas, em um espaço, em uma instituição como uma universidade, um colégio, pouco importa, essa transmissão do saber é hoje completamente ultrapassada. É um arcaísmo, é uma espécie de relação de poder que, justamente, ainda se arrasta como uma concha vazia. No momento em que o professor não tem mais poder real sobre os estudantes, a forma dessa relação de poder ainda permanece, não conseguimos nos livrar dela inteiramente. Penso que a fala do professor é inevitavelmente uma fala arcaica.” (M.F.)

É o que nos faz pensar também quando lembramos dessxs professorxs que fazem uso canônico de Marx, por exemplo. Enchem a boca para falar da classe trabalhadora e da luta de classes, mas exercem seu privilégio de classe muito bem com seus estilos pequeno-burgueses de viver. Há também xs que adoram falar em sociedades disciplinares enquanto experimentam o exercício de uma hierarquia e disciplina muito próprias do lugar de privilégio que ocupam como detentores do saber “legítimo”, rezando para seus diplomas de doutorxs como se reza diante de um altar religioso. Não é com surpresa que se produz tanta coisa desinteressante, como disse Leonor Silvestri, vomitórios parafraseados de autorxs renomadxs, sem qualquer originalidade. Quantas vezes lemos coisas que dizem: “de acordo com XY”, quando XY nada mais fez do que um plágio ao traduzir ao pé da letra, sem tirar ponto ou vírgula, conceitos como “performance de gênero” ou “identidade de gênero”, etc. Não somos contra a apropriação do pensamento de qualquer autorx que se queira, se trata, antes, de denunciar essa necessidade de autoria e renome, prestígio acadêmico, coisa que tentamos não fazer, ainda que fracassando. É esta a lógica de não mantermos uma plataforma como autorxs, de não reivindicarmos uma autoria, de essa autoria estar aberta para ser hackeada e deslocada, reapropriada, sem a preocupação de citar autorxs que procuramos seguir. Poderão simplesmente se colocar como agentes de uma contraconduta. Em todo caso, não temos a preocupação do que poderá ser feito com essa virtualidade, essa autoria múltipla, espectral e sem ponto de apoio.

Temos aí, então, o encontro dessas duas falas, tanto de Yuri Tripodi como de Leonor Silvestri. Mas falta ainda a de Jota Mombaça, que fala de um lugar “híbrido”, reivindica uma monstruosidade no espaço da academia:

“De certo esta opção que faço implica, tendo em vista a instituição acadêmica à qual estou vinculado, uma série de rupturas e tensões, matizadas pela necessidade de negociar com as normatizações disciplinares ligadas à produção de conhecimento no marco das Ciências Sociais. Trata-se, aqui, de tentar ser monstruoso no espaço da norma; indisciplinado no lugar da disciplina. Uma batalha inglória e arriscada, se levo em consideração os riscos de ser excluído ou capturado pela lógica do saber institucional. Mas tenho minha malícia. E como escreveu Paul Goodman: ‘a malícia é a força dos sem poder.’” (Jota Mombaça)

Anterior a esta tensão interna, há uma tensão que é essencialmente econômica e “externa”. Para análise desta última, excluiremos as possibilidades de reflexão ligadas a instituições privadas e pensaremos apenas no circuito das universidades públicas. Existe um motivo muito prático para que tanta gente venda sua “força de trabalho intelectual” hoje, e por um preço muito barato. Especialmente pelas possibilidades mais limitadas de atuação imediata de quem faz um curso de “ciências humanas”, uma saída fácil é seguir a carreira acadêmica e ficar presx a um “programa” de mestrado. Mesmo essa possibilidade ainda é muito limitada, pois extremamente concorrida, mas garante a “qualidade” de muitas pesquisas, pois exige dedicação integral dxs estudantes – verdadeiro dispositivo acadêmico e econômico de captura. Quanto à circulação arriscada de que fala Jota, entendemos que seja necessária para quem ainda não consegue outra saída financeira a não ser conseguir uma bolsa do governo para continuar uma pesquisa. Alex Martins Moraes precisa bem essa questão:

“Na prática, os chamados ‘problemas de investigação’ acabam sendo inventados nos corredores da academia – ou importados dos debates prestigiosos e ‘de ponta’ do norte global – para serem ‘resolvidos’ no ‘lado de fora empírico’, com as ‘pessoas comuns’ e depois convertidos em digressões que atendem apenas à agenda editorial vigente no mercado das publicações acadêmicas. Como se não bastasse, o dinheiro público destinado à formação de jovens pesquisadores no exterior é por vezes ‘investido’ na perpetuação da subalternidade epistêmica das academias do sul global mediante editais que reiteram regimes de legitimidade científica diretamente coloniais.”

A linha divisória entre a captura e a resistência parece ser bastante tênue, e se por um lado não queremos deixar de enxergar possibilidades de luta e resistência nesses espaços, por outro há que se atacar esses mecanismos político-econômicos que mantém tantxs pesquisadorxs presxs ao Estado e a este Governo que visa ampliar de todas as formas possíveis seus tentáculos. Poderíamos resumir a realidade universitária nessa fala de Foucault, sem considerar, é claro, as particularidades de nossa realidade colonial e correndo o risco de fornecer uma versão transparente da Universidade, o que não é nossa intenção:

“E depois, há o estudante: de uma certa maneira ele é também aprisionado em um circuito que possui uma dupla função. Em primeiro lugar, uma função de exclusão. O estudante é posto à parte da sociedade, relegado a um campus. Ao mesmo tempo que o excluem, transmitem-lhe um saber de tipo tradicional, démodé, acadêmico, um saber que não tem nenhuma relação direta com as necessidades e com os problemas do mundo de hoje. Essa exclusão é reforçada pela organização, em torno do estudante, de mecanismos sociais fictícios, artificiais, de uma natureza quase teatral (as relações hierárquicas, os exercícios universitários, a banca examinadora, todo o ritual de avaliação). Enfim, o estudante se vê ante a oferta de uma espécie de vida recreativa – uma distração, uma diversão, uma liberdade que, aqui também, nada tem a ver com a vida real; é essa sociedade artificial, teatral, essa sociedade de papelão que se constrói em torno do estudante, mediante o que os jovens, de 18 a 25 anos são, por assim dizer, neutralizados para e pela sociedade, tornados confiáveis, impotentes, castrados, política e socialmente. Essa é a primeira função da universidade: colocar os estudantes fora de circulação. Sua segunda função todavia, é uma função de integração. Uma vez que um estudante tenha passado seis ou sete anos de sua vida nessa sociedade artificial, ele se torna assimilável: a sociedade pode consumi-lo. Insidiosamente, ele recebeu os valores dessa sociedade. Ele recebeu modelos de conduta socialmente desejáveis, formas de ambição, elementos de um comportamento político, de modo que esse ritual de exclusão termina por tomar a forma de uma inclusão e de uma recuperação, ou de uma reabsorção. Nesse sentido, a universidade, sem dúvida nenhuma, é bem pouco diferente dos sistemas através dos quais, nas sociedades ditas primitivas, os jovens são mantidos afastados da aldeia durante sua adolescência e submetidos a ritos de iniciação que os isolam e os privam de qualquer contato com a sociedade real, ativa. Uma vez transcorrido esse período eles podem ser inteiramente recuperados ou reassimilados.” (M.F.)

Giramos em torno desse jogo de hierarquias que se dão no âmbito da universidade, pois, como bem salientamos, recusamo-nos a ter que fazer parte deste ou daquele quadrado epistemológico, deste regime disciplinar das disciplinas. O preço é a marginalidade e a exclusão  dos circuitos de publicação com o selo de aprovação do Estado. Se o que podemos saber e conhecer hoje deve estar recortado por uma disciplina e carimbado, só há a possibilidade então de traçar linhas de fuga desse lugar, questionar as formas dessa divisão, desse tipo de racionalidade e captura do saber. A academia é uma instituição tipicamente ocidental e está a serviço do imperialismo do saber, fazendo circular o conhecimento das formas mais estratificadas e compartimentalizadas possíveis. Essa era uma das preocupações de Heidegger quando fez sua fala inaugural como reitor de uma universidade na Alemanha. É bem conhecida a polêmica em relação a isso, pois Heidegger estava inteiramente comprometido pela ideologia nazista (o que não deixou de tornar seu trabalho e seu pensamento uma massa completamente moldável e corrompível, que foi exatamente o que fizeram a ela Foucault e Derrida).

Arriscaremos passear um pouco por entre as provocações deixadas por Heidegger e retomadas por Derrida e Butler, no que concerne ao saber e à universidade, trazendo, entre uma reflexão e outra, considerações sobre o embricamento da Aids com esses mecanismos de produção do saber. Mas não sem antes pontuar, pelo menos, questões que colocam em cheque algumas de nossas análises.

Batalhas do Saber

“Como podemos, hoje, não falar da universidade? Ponho a questão negativamente, por duas razões. Por um lado, como todos sabemos, é impossível, agora mais do que nunca, dissociar o trabalho que fazemos, com uma disciplina ou com várias, de uma reflexão acerca das condições políticas e institucionais desse trabalho. Essa reflexão é inevitável. Deixou de ser um complemento externo ao ensino e à pesquisa; deve fazer o seu caminho por entre os próprios objetos com os quais trabalhamos, moldando-os à medida que avança, juntamente a nossas normas, procedimentos e objetivos. Não podemos não falar de tais coisas. Por outro lado, a questão ‘como podemos não’ põe em relevo o negativo, ou talvez deveríamos dizer, o aspecto geral das reflexões preliminares que eu gostaria de expor a vocês. Com efeito, como estou tentando iniciar a discussão, me dou por satisfeito em dizer como não falar da universidade. Alguns dos riscos típicos a serem evitados, parece-me, tomam a forma de uma barreira protecionista.” (J.D.)

É bem verdade, precisamos reconhecer, que não problematizamos a matriz ocidental desse saber que utilizamos (o fazemos agora graças a nossxs interlocutorxs e colaboradorxs, que são pessoas bastante críticas). Ignorar esse fato é uma inocência que não podemos admitir, mas como já salientamos, não temos a pretensão de cobrir todos os aspectos relacionados à produção do conhecimento, em especial o que ocorre via instituição universitária. Nossa intenção, desde o início, era abrir uma “trincheira”, de modo que pudéssemos trazer as questões mais propriamente relacionadas ao Biopanóptico. Temos, contudo, um compromisso também em relação à questão colonial e eventualmente voltaremos a ela. Como é amplamente conhecido, a Aids é uma tecnologia discursiva ocidental, uma arma produtora de estratégias colonizadoras e sua base de sustentação está nos ditames do saber-poder do império heterocapitalista. Esta é apenas uma forma rudimentar que encontramos de ao menos reconhecer essa falha epistêmica, trazendo considerações um tanto superficiais a esse respeito, com o compromisso, se quiserem, de retornar a esse impasse político, muito precisamente, dessa incoerência em relação ao que acreditamos fazer e ao que de fato estamos fazendo. Talvez uma das melhores coisas que já vimos a esse respeito seja essa fala de Júlio Cabrera:

“Ora, dentro de semelhante panorama, alguém que, em lugar de tentar ‘aperfeiçoar-se’ nas técnicas de análise de filosofia europeia, e superar o nosso desenvolvimento intelectual, tentasse, pelo contrário, filosofar com tudo aquilo que Sérgio Buarque de Holanda e Mário Vieira de Mello consideram calamitoso para nosso ‘progresso intelectual’, acharia num lugar onde vigora a situação descrita nesses cinco pontos algum espaço para criar e difundir sua reflexão? Creio que a triste e óbvia resposta é: não! Você pergunta: ‘que autores nos seriam mais relevantes para levar adiante essa possibilidade, quem mais no Brasil já se atirou a projetos dessa natureza?’, e a resposta é: esse filósofo ainda terá de surgir; mas para surgir é preciso que haja uma situação que o deixe surgir; a situação atual é inteiramente o contrário do que ele precisa para surgir. É por isso que o novo filósofo terá de ‘insurgir’, ‘surgir-contra’ e não ‘em virtude de’.”

Aquelxs que quiserem mais informações sobre esses cinco pontos de que fala Júlio poderão obtê-las aqui.

Não é tarefa simples criticar a racionalidade de onde partimos, criticar os elementos colonizadores que estão no próprio idioma que utilizamos, no caso o português, uma língua europeia, a língua dos colonizadores. Fomos produzidxs a partir dessas tecnologias de assujeitamento e nos vemos em meio a um emaranhado de discursos que ora rompem, ora reiteram esse assujeitamento. Como bem aponta Jota Mombaça: “Esse descomprometimento com a evidente dimensão colonial desse processo todo faz com que, mesmo no rompimento, reengendremos os efeitos de poder que constituíram a moderna ciência colonial como fonte de verdade.” Essas são questões que estão postas e que não podem ser ignoradas, ainda que não consigamos sair do labirinto epistêmico.

Ocorre, no entanto, que também precisamos levar em consideração nosso posicionamento de fala, que por si só é subalterno, é colonizado e está fora desse eixo que descrevemos. Isso não é pouca coisa. Cabe um pouco dentro do que o filósofo decolonialista colombiano Santiago Castro Gomes nos propõe:

“[…] no comparto la idea de que antes de los ochenta hubiese una tradición propia de ‘análisis cultural’ en América Latina, y mucho menos que fuese ‘materialista’. El análisis cultural (o los ‘estudios culturales’ si prefieres) es una formación discursiva que se inscribe en el giro linguístico de las ciências sociales de los años sesenta, y más específicamente en el tipo de análisis abierto por el posestructuralismo en los años setenta y ochenta. De acuerdo con esta perspectiva, el lenguaje y la significación, inscritos en complejas relaciones de poder, son vistos como elementos productores de la vida social. Ahora bien, este tipo de análisis era desconocido en Latinoamérica antes de los años ochenta. Ni siquiera a los pensadores marxistas, que analizaban el problema del poder, se les ocurrió jamás que el lenguaje podía ‘sobredeterminar’ las prácticas sociales. No comparto entonces la idea de que los letrados latinoamericanos de los siglos XIXy XX hacían ‘análisis cultural’, pues la mayoría de ellos hablaban de América Latina como si fuese una entidad que goza de una existência independiente y previa con respecto a su construcción semiótica. América Latina como ‘cosa-en-si’, existente con anterioridad a su producción discursiva. Por eso podían hablar de una ‘identidad latinoamericana’ que creían reconocer en la lengua, en la religión, en el mestizaje, en el talante espiritual de sus gentes, en las luchas de liberación, en la naturaleza, etc. Esta aclaración tal vez sirva para dar cuenta de la segunda parte de la pregunta sobre la intersección con la tradición anglosajona de los Cultural Studies. Sin embargo, quisiera hacer algunas precisiones al respecto. Lo que diferencia las prácticas de los estudios culturales en América Latina de otras prácticas similares en otros lugares del mundo no es el ‘método’ (pues no creo que los estúdios culturales tengan un método propio) sino el lugar de su enunciación.”

(Mais em: https://www.academia.edu/3613418/Colonialidad_del_poder_estudios_culturales_y_filosofia_latinoamericana)

É, portanto, deste posicionamento compartilhado com Santiago Castro Gomes que lançamos as bases de uma teoria descolonial da Aids, não deixando de enxergar as complicações coloniais do poder, mas evitando um certo tipo de “purismo descolonialista”, que se preocuparia antes em criar um outro método, ou simplesmente “escapar” desses discursos que a produziram. Certamente, não conseguiríamos agradar a tantas correntes.

A teoria dissidente, com audácia suficiente, questionou o estatuto oficial da Aids. Postulado pela mídia em conjunto com o governo dos EUA da época Reagan e um único setor dos conglomerados médicos, esse dispositivo operou como um centro bioadministrativo. Poucas pessoas conhecem o que jamais foi pronunciado através desse mecanismo unívoco produtor de práticas discursivas, que excluiu outro corpo médico. Mas como apresentar estes dados, informações, cenas de um teatro mudo, mantidas no anonimato seguro das “conspirações”, se não mostrarmos antes que não nos livramos do jugo de autoridades que se autoproclamam detentoras da verdade, através de divisões arbitrárias do saber, através de uma hierarquia fictícia entre matemáticas, ciências médicas e biológicas e humanidades? Com que força devemos enfrentar esses mecanismos e com que eficácia devemos combatê-los, se quisermos de fato oferecer uma resistência a esses poderes que nos aprisionam e regem nosso imaginário, nos fazendo crer que somos exatamente o que descrevem?

Questionar o poder médico se tornou um crime. Somos reféns conformados da autoridade médica, a qual obedecemos sem pestanejar. Bebemos cicuta com um sorriso nos lábios. Aos poucos perdemos a sensibilidade para notar as transformações do nosso próprio organismo, perdemos o contato direto com nosso ambiente, fomos torcidos até a última gota de autonomia. A medicina ainda é o curso mais disputado hoje pelas classes burguesas, não apenas porque os médicos são empresários da saúde, mas porque simbolicamente são semideuses, são a autoridade sobre a vida na forma distorcida desse saber cartesiano, que nos descolou de um plano imanente com a violência de um tsunami.

O que hoje sabemos sobre nós mesmos é muito pouco e se define por uma alegoria do pensamento contada por Heidegger. Ele faz uma comparação bastante simplória, mas que serve para entendermos o que diz, quando afirma que nossa linguagem cotidiana e banal não nos permite acessar o que de real e importante existe, e que essas coisas apenas são apreendidas no profundo lirismo da poesia, como também afirmou Goethe. Ele diz, mais ou menos, que, hoje, qualquer um sabe ligar um televisor, mas que apenas quatro ou cinco sabem criar um e conhecem o funcionamento real das engrenagens que compõem tal aparelho. O que sabemos de fato sobre nosso corpo, fora o que aprendemos até o atual “ensino médio”?

Esse abismo entre o que sabemos sobre nós mesmos e o saber médico é a própria extensão de seu poder, isso se não evidenciarmos as dimensões igualmente dissimétricas entre as próprias hierarquias do saber médico. Arriscaríamos dizer que pouquíssimos clínicos gerais, ou mesmo infectologistas, sabem que jamais se isolou de fato o vírus HIV. Toda e qualquer imagem que vocês tiverem visto desse vírus é pura animação e computação gráfica. Quem diz isso é o próprio “descobridor” do HIV, Luc Montangnier. Mas este é um tópico que requererá um momento mais atencioso, é um assunto muito extenso. Um tópico que está isolado não na lâmina de cientistas, mas na ideia mesma de ser um “objeto” inatingível, um assunto para a diligência biomédica. Ora, se essa divisão existe, é porque ou não achamos que seja interessante e importante, ou porque nos fizeram crer que não possuímos as ferramentas teóricas e técnicas para apreendê-lo, e isso tem tudo a ver com a arbitrária divisão do saber no Ocidente, distribuída pelas prestigiosas hierarquias do saber acadêmico.

Quando dizemos que essas hierarquias do saber são fictícias, não estamos exagerando, ao menos se levarmos em conta o que diz Heidegger em relação ao tipo de conhecimento a que podemos chegar enquanto humanos, enquanto aquilo que o Ocidente insiste em chamar de “homem”. A esse propósito, esperamos que Foucault tenha lançado uma profecia:

“Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. Tomando uma cronologia relativamente curta e um recorte geográfico restrito – a cultura européia desde o século XVI – pode se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente. Não foi em torno dele e de seus segredos que, por muito tempo, obscuramente, o saber rondou. De fato, dentre todas as mutações que afetaram o saber das coisas e de sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras – em suma, em meio a todos os episódios dessa profunda história do Mesmo – somente um, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em via de encerrar, deixou aparecer a figura do homem. E isso não constitui liberação de uma velha inquietude, passagem à consciência luminosa de uma preocupação milenar, acesso à objetividade do que, durante muito tempo, ficara preso em crenças ou em filosofias: foi o efeito de uma mudança nas disposições fundamentais do saber. O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia.” (M.F.)

É certo que não podemos contar com as estruturas milenares das instituições universitárias para conseguir enxergar esse horizonte de evanescência do saber, da própria ideia de homem, do tipo de conhecimento que pudemos apreender, literalmente nos inventando à medida que o fazíamos. Seria correto dizer que a universidade se assenta em cima desse eixo imaginário, disso que chamamos lógica. Daí o golpe certeiro de Heidegger no próprio Ocidente, ao mostrar que toda a Lógica tem como princípio o não e consequentemente o nada. Tudo que pudemos criar de empírico, que a Filosofia e a Matemática (e em sua esteira todas as ciências ditas “empíricas”) puderam estabelecer como canônico, se assenta sobre o nada. Quando dizemos “se assenta sobre o nada”, não é apenas uma metáfora deslocada; significa dizer que “existe” algo anterior à negação, que até Heidegger (e também Nietzsche) se ignorou. É o que ele chama de “nadificar do nada”. A “possibilidade da negação, como atividade do entendimento, e, com isso, o próprio entendimento, dependem de algum modo, do nada”. Esse conhecimento que se imagina e pretende sem fronteiras ignora algo muito anterior ao princípio de negação da lógica: por trás de tudo que acreditamos empírico e concreto, existe o nada. A esterilização do chão antes fértil das ditas ciências empíricas abre, por consequência, a cova onde pode ser enterrada toda a pretensão de superioridade dessas ciências ditas concretas e, com ela, talvez a própria lógica da universidade, já que sua razão de ser, como dirá Derrida, é a própria razão, entendida esta última nos cânones cartesianos. Vale a pena trazer a citação de Heidegger na íntegra, aquela em que ele apaga a fictícia divisão entre metafísica e ciência, onde destrói as elevações imaginárias entre uma disciplina e outra:

“Justamente, sob o ponto de vista das ciências, nenhum domínio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a história, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamento dos objetos supera os outros. Conhecimentos matemáticos não são mais rigorosos que os filológico-históricos. A matemática possui apenas o caráter de ‘exatidão’ e este não coincide com o rigor. Exigir da história exatidão seria colocar-se contra a ideia do rigor específico das ciências do espírito.”

Evidentemente, mesmo o choque daquele momento histórico não trouxe abaixo o Ocidente e seu império do saber, toda essa crítica não trouxe abaixo a ditadura acadêmica, e Heidegger, assim como qualquer outrx autorx, mesmo Foucault, não impediu que se proliferasse todo esse aparato. Isso nos mostra que a preocupação não deve ser de fato com as instituições, pois tudo indica que continuarão a existir de uma forma ou de outra, mesmo que o mais violento dos pensamentos tente destruí-las. A morte do homem a que se refere Foucault deveria antes ser entendida como a morte desses avatares do poder, que paralisam o pensamento e modulam nosso olhar. Matar o homem que existe em cada um é matar a lógica cartesiana, é fazer parar a engrenagem que direciona nosso pensar, é escapar, ou, em todo caso, utilizar o próprio jogo institucional contra as instituições.

O nó dado por Heidegger na lógica do pensamento ocidental não impossibilita que continuemos a refletir e produzir saberes, mas, com Nietzsche, nos mostra o quão humano, demasiadamente humano eles são. Toda pretensão tanto de universalidade quanto de concretude desaparece no horizonte crepuscular da metafísica. Noutros termos, tudo que se separou da arena transcendental é arrastado nessa cauda inevitavelmente metafísica do saber humano: “[…] essa crença incondicional na ciência, que é traduzida na segurança da certeza nos resultados da ciência, é uma crença, e é, de uma certa maneira, algo que excede a existência de uma pessoa, e é, portanto, uma religião. E eu diria: nenhum homem existe sem uma religião.” A diferenciação que fazemos é no sentido de interpretar “humano” como “homem ocidental” – forma especificamente ocidental de conceber o mundo e as coisas e de interferir no ambiente desde o lugar criado pelo ocidente. E se é verdade que não há concretude nem exatidão e que tudo que cremos real e verdadeiro se assenta sobre o nada, então chegamos ao que Foucault chamou de “efeitos de verdade”, mas que resume-se nas palavras de Heidegger: “A existência científica recebe sua simplicidade e acribia do fato de se relacionar com o ente e unicamente com ele de modo especialíssimo. A ciência quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna patente, na interrogação, que esta existência científica somente é possível se se suspende previamente dentro do nada. A aparente sobriedade e superioridade da ciência se transforma em ridículo, se não leva a sério o nada. Somente porque o nada se revelou, pode a ciência transformar o próprio ente em objeto de pesquisa.”

Para nós, isso importa no sentido de que tanto faz o que chamam de vírus da imunodeficiência, o que existe são os efeitos da produção de verdades, de discursos de verdade. E na arena das disputas acadêmicas, efeitos de verdade significam efeitos políticos, efeitos de transformação na forma como se molda o saber e o entendimento humanos sobre as coisas. Adentramos, assim, na disputa política dos efeitos de verdade que interessam conhecer.

Esta instituição da tecnociência moderna que é a universidade está erigida sobre o princípio da razão, e esse princípio em momento algum é questionado, a razão de ser da própria universidade. Essa é uma das questões que move uma das falas de Derrida sobre a universidade: “[…] o progresso nas ciências, sua interdisciplinaridade militante, seu zelo discursivo e assim por diante. Mas tudo isso está elaborado sobre um abismo, suspenso sobre um ‘desfiladeiro’ – o que significa dizer em bases cujo próprio embasamento continua invisível e impensado.” Aqui percebemos a ressonância do pensamento de Heidegger em Derrida. Segue-se a esta constatação uma reflexão sobre o papel das disciplinas e a função da própria filosofia como “redentora”, como um forte que deveria estar blindado da influência de poderes externos, de maneira que o pensamento crítico pudesse se dar da forma mais “pura” possível. É destas questões de fronteiras do pensamento crítico que Butler parte, considerando tanto as formas de manipulação externa através dos mecanismos de controle de financiamento (Estado ou empresas privadas) quanta as próprias regras e normas acadêmicas que legitimam o saber institucionalizado. Portanto, até aqui, temos mostrado de que modo o aparato normatizador vinculado à academia é uma barreira que impede atravessarmos fronteiras, que nos reduz a disciplinas específicas e que recorta politicamente o saber de acordo com os interesses do Estado ou de empresas e instituições privadas. Butler questiona o que Derrida aponta como “invisível”:

“[…] it would seem that when and if academic norms, understood as professional and disci- plinary norms, become the legitimating condition of academic freedom, then we are left with the situation in which the critical inquiry into the legitimacy of those norms not only appears to threaten academic freedom but also falls outside the stipulated compass of its protection. So too do disciplinary and interdisciplinary innovations that might unsettle the boundaries of the disciplines. Professional norms, construed in part as disciplinary norms, legitimate academic freedom, but what, if anything, legitimates such norms? If we cannot find a good answer to that question, then it might be that we end up with the following conundrum: we must accept norms that we cannot legitimate (or whose legitimacy we refuse to question) in order to legitimate our academic freedom.”

“[…] parece que quando e se normas acadêmicas, entendidas como normas profissionais e disciplinares, se tornam a condição de legitimidade da liberdade acadêmica, então, somos deixadas com a situação na qual a investigação crítica sobre a legitimidade dessas normas não apenas parece ameaçar a liberdade acadêmica mas também sai do alcance estipulado de sua proteção. Assim também acontece com inovações disciplinares e interdisciplinares que possam deslocar as fronteiras das disciplinas. Normas profissionais, construídas em parte como normas disciplinares, legitimam a liberdade acadêmica, mas o que, se é que existe algo, legitima essas normas? Se não podemos encontrar uma boa resposta para essa pergunta, então pode ser que terminemos com o seguinte enigma: devemos aceitar normas que não podemos legitimar (ou cuja legitimidade nos recusamos a questionar) para poder legitimar nossa liberdade acadêmica?”

Temos uma noção de quem legitima essas inovações e de seus interesses. Podemos inclusive citar uma situação bastante recente que aconteceu com ninguém menos do que Eduardo Viveiros de Castro, narrada por ele próprio:

“Vejam como os órgãos oficiais de fomento científico apóiam uma proposta de colóquio internacional sobre um tema de evidente relevância e urgência – as mudanças climáticas e a crise planetária –, reunindo um grupo de pesquisadores, no mínimo, conhecidos – entre outros, e para ficarmos nos estrangeiros, Bruno Latour, Donna Haraway, Isabelle Stengers, Dipesh Chakrabarty, Vinciane Despret…

“O orçamento que calculamos, por baixo, era de 200 mil reais. Decidimos não pedir financiamento às corporações e congêneres que adorariam dar uma grana para esse tipo de evento (Vale, Petrobrás etc.). A Fundação Casa Rui cedeu graciosamente suas instalações e equipamentos. A FAPERJ nos deu 50 mil, o máximo que ela poderia dar – ela entendeu a importância do evento, para o Rio de Janeiro e, por que não, para o mundo (o colóquio será ou seria transmitido on-line). O Consulado da França nos deu uma boa ajuda também. Já o CNPq – o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico –, a quem pedimos 145 mil reais, valor dentro do limite máximo previsto pelo órgão para esse tipo de financiamento, nos deu… 15 mil reais! Pelo jeito, consultaram pareceristas de grande descortínio e larga visão. Esperemos que isso não inviabilize o colóquio. Lamentável a tacanhez do MCT. Mas vamos fazer o possível para tudo dar certo, contra vento e maré.”

Ora, não é segredo que Eduardo Viveiros de Castro é um dos pensadores não “direitistas” mais críticos do PT e do atual Governo. Não é difícil imaginar o porquê desta “vista grossa”. Em tempos de pré-sal e de tudo quanto é tipo de aquecimento, do global aos econômicos, pesquisas e produção de conhecimentos que atrapalhem os interesses políticos que movem o Estado e as grandes corporações (“Monstro Bicéfalo”, como chamou o próprio Viveiros de Castro) não servirão a tais interesses e, portanto, deverão ser interditados. Esta racionalidade política própria do Estado, “racionalidade estatal”, funciona na e pela universidade pública, ao menos dentro da proposta atual de ampliação dos tentáculos estatais. Já mostramos no caso da Aids como essa mesma racionalidade estava por trás da engenhosa trama política que pôde desencadear a disciplina e o controle pela doença. A universidade é tanto um lugar estratégico como um foco de destruição – destruição do modus operandi que exige o recorte político pelo próprio Estado e lugar estratégico porque deveria ser minado de dentro. Em outras palavras, o saber-poder se configura hoje no tipo de racionalidade engendrada na universidade, ainda que escape dela quando alcança os grandes laboratórios corporativos. Podemos, não sem grande risco, dizer que o saber se origina nela e em seus compartimentos apenas para ser rearranjado pela governamentalidade biopolítica.

Mais precisamente dentro do que nos interessa, questionar as bases nas quais se legitimam as verdades médicas implica em dissidência política. Na medida que se questiona a autoridade de uma instituição, corre-se o risco de ser colocadx de lado e excluído dos circuitos de produção de saber. Em relação à universidade especificamente, Butler diz:

“[…] what is critical in academic work relates more broadly to the problem of political dissent, where the latter is understood as a way of objecting to illegitimate claims of public and governmental authority.”

“[…] o que é crítico no trabalho acadêmico se relaciona mais amplamente com o problema da dissidência política, onde esta é entendida como uma forma de se opor a alegações ilegítimas de autoridades públicas e governamentais.”

Apenas chamamos de contraconduta o que Butler chama de dissidência pelas razões já apresentadas, mas acreditamos que esse trecho de Butler também traduz nossa relutância quanto aos exercícios de controle e modulação acadêmicos. Em última instância, o que questionamos é o poder que dispõe as bases onde se assentam os discursos de verdade que engendram desde políticas públicas até políticas externas de “HIV-Aids” financiadas e controlas pelo Brasil em países da África, que nada mais são do que processos imperialistas e coloniais disfarçados de “ajuda” política e econômica:

“[…] it makes sense to claim that what should be preserved as a value of the university is precisely that operation of critique that asks by what right and through what means certain doxa become accepted as necessary and right and by what right and through what means certain government commands or, indeed, policies are accepted as the precritical doxa of the university.”

“[…] faz sentido afirmar que o que deve ser preservado como valor da universidade é precisamente a operação da crítica que pergunta com que direito e através de que meios certa doxa torna-se aceita como necessária e correta e com que direito e através de que meios certas ordens governamentais, ou mesmo regulamentações são aceitas como doxa pré-crítica da universidade.” (J.B.)

Se, por um lado, esse exercício crítico é fundamental, por outro, suspeitamos  que seja de fato possível que ele surja do bojo mesmo desses jogos político-epistêmicos das universidades. Melhor seria dizer que o problema não é que surjam, mas, sim, sua reinscrição nesses circuitos. Ou será que conseguiríamos chegar a uma problematização satisfatória esgotadxs pelos limites das divisões dos saberes? Quanto a isso, só podemos concordar com Butler:

“[…] critique has not stopped happening, and in that sense neither has enlightenment stopped happening. It is a process subject to historical translation, to the recurrence of questioning the limits imposed upon the askable.”

“[…] a crítica não parou de acontecer, e nesse sentido nem o iluminismo parou de acontecer. É um processo sujeito à tradução histórica, à recorrência do questionamento dos limites impostos sobre o questionável.”

 

Somos legítimxs agentes desse questionamento e somos a virtualidade dessa recorrência. Terminamos por hora reafirmando que nos pareceu fundamental a presente problematização da universidade e de seus mecanismos disciplinares e de controle, sem permitir que se tornassem o foco central de nossas análises. É de uma insurreição dos saberes sujeitados que falamos, é dos rumores laterais que partiremos, sem pedir autorização à universidade, sem obedecer a suas hierarquias, sem fazer parte dos recortes políticos e epistêmicos a que se submetem um sem número de pesquisas, que poderiam ter um potencial de transformação do conhecimento muito maior.

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