Integrando Justiça Racial na Agenda 2030: O Papel do ODS 18

Geledés na ONU, incidencia internacional de Geledés Instituto da Mulher Negra
Enviado por / FonteLeticia Leobet

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a criação do ODS 18 – Igualdade Étnico-Racial em setembro de 2023, durante a Cúpula dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e aos auspícios da 78ª Assembléia Geral da ONU, realizada em Nova York. A proposta visa inserir o combate ao racismo e à discriminação racial como uma prioridade global no desenvolvimento sustentável, reconhecendo a importância de enfrentar as desigualdades étnico-raciais como parte fundamental para o alcance da Agenda 2030. Outros países anteriormente, também adotaram ODS voluntários para adaptar suas agendas de desenvolvimento sustentável a contextos locais específicos e influenciar discussões a nível global. Na Índia, o ODS 18 foi criado com foco no empoderamento local e no desenvolvimento rural, buscando promover a igualdade de oportunidades e melhorar a qualidade de vida nas áreas mais vulneráveis. Na Costa Rica, o ODS 18 concentra-se no bem-estar e na felicidade das pessoas, incorporando o conceito de “Felicidade Interna Bruta” como um indicador fundamental de progresso, equilibrando o desenvolvimento econômico com o bem-estar social e ambiental. Essas iniciativas demonstram como os ODS podem ser customizados para enfrentar desafios que historicamente não tiveram a devida centralidade na agenda de desenvolvimento sustentável, a exemplo do enfrentamento ao racismo, e mais do que isso, a constatação de que essa é uma demanda global. 

A adoção  do ODS 18 – Igualdade Étnico-Racial na Agenda 2030 por parte do governo brasileiro, representa um marco crucial para se pensar a justiça social global e nacional, afinal essa interseção entre justiça racial e desenvolvimento sustentável é igualmente essencial, mas, até o momento, vem sendo negligenciada. 

Na dimensão brasileira, a desigualdade racial continua a ser um obstáculo ao progresso da agenda do país em diversas frentes, desde o acesso à educação e saúde até a inclusão digital e o desenvolvimento econômico. A criação do ODS 18 é um passo importante para colocar essas questões no centro das políticas públicas. Mas, para que isso se concretize, será necessário um esforço realmente comprometido por parte do Governo e de uma articulação consistente com a sociedade civil, especialmente de organizações negras e do movimento negro, organizações indígenas, quilombolas, e de comunidades tradicionais, entre outras que verdadeiramente se comprometam com uma agenda antirracista, pois são elas que historicamente têm atuado em prol dos objetivos propostos pelo ODS 18. Reconhecer essa expertise e a diversidade de perspectivas nos diversos campos de atuação é uma escolha política e estratégica que deve ser adotada pelo governo brasileiro.

Participação de Letícia Leobet na Comissão de Direitos Humanos

Historicamente, o Brasil sempre foi relutante em lidar de maneira eficaz com o racismo sistêmico. O Estatuto da Igualdade Racial, embora seja um marco jurídico relevante, ainda não conseguiu promover uma verdadeira transversalização das pautas raciais nas políticas públicas e nesse sentido, durante o processo de elaboração do ODS 18 que está em curso, surge uma oportunidade de recuperar essa normativa pactuada pela sociedade civil afrodescendente. Afinal, o Estatuto da Igualdade Racial oferece um direcionamento para as políticas públicas brasileiras, tendo como princípio a transversalização da agenda racial, que é justamente o que precisamos fazer com a Agenda 2030, e isso só será possível  a partir de um compromisso genuíno com a implementação e priorização de medidas que abordem diretamente a exclusão e desigualdade racial em todas as suas formas e em todos os 17 objetivos.

Um dos maiores desafios para a implementação do ODS 18 será superar a fragmentação das agendas de desenvolvimento sustentável e igualdade racial. Muitas vezes, essas duas pautas são tratadas de maneira isolada, sem considerar que a maioria das populações mais afetadas pela pobreza e pela degradação ambiental são afrodescendentes.

Essa fragmentação tem raízes profundas em discussões internacionais –  a Rio 92, ou Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, marcou um avanço crucial ao criar a Agenda 21, que propunha um desenvolvimento ambientalmente sustentável. Contudo, questões raciais e de desigualdade foram sub representadas, criando uma lacuna entre justiça social e ambiental. Assim, o desenvolvimento sustentável não pode ser pleno sem que a justiça racial seja integrada de maneira robusta e contínua, pois isso corrobora em uma das grandes dificuldades de implementação da Agenda 2030, que é seu descolamento com a realidade e sua dificuldade de territorialização. O Brasil, um país onde a maioria da população se autodeclara negra – ou seja, preta ou parda – , aproximadamente 56% da população de acordo com o último censo do IBGE, isso não pode seguir sendo ignorado em especial no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, social e a desigualdade racial.

Além disso, o racismo não é apenas uma questão moral ou social; ele também representa um freio ao desenvolvimento econômico dos países. Desta forma, essa deve ser uma preocupação dos Bancos Nacionais e Multilaterais de desenvolvimento.  No caso do Brasil, pesquisas mostram que o racismo estrutural custa bilhões ao país e impacta negativamente aproximadamente 10% do PIB, representando uma perda significativa de produtividade e inovação. Se o Brasil deseja avançar em seu desenvolvimento, será crucial investir no empoderamento econômico da população afrodescendente, garantindo que ela tenha acesso a melhores oportunidades de trabalho e acesso a crédito

Na dimensão ambiental, o ODS 18 deve também tensionar a visão hegemônica e colonizadora de pensar a relação com o meio ambiente, a natureza, a biodiversidade e outros aspectos, que se consolidou ao longo do tempo, para que seja possível abrir espaço para a valorização e recuperação dos saberes ancestrais, conhecimentos tradicionais, tecnologias sociais de comunidades afrodescendentes e indígenas. Essas populações, historicamente marginalizadas, têm conhecimentos profundos sobre práticas sustentáveis que podem contribuir significativamente para enfrentar a crise climática. O Brasil, que se destaca por sua biodiversidade e riqueza cultural, deve incorporar essas práticas na construção de um modelo de desenvolvimento que respeite tanto a natureza quanto os direitos humanos das suas populações.

Trazendo um exemplo prático, podemos olhar para o Relatório Nacional Voluntário, que é um instrumento de monitoramento das ações e da implementação da Agenda 2030 no país e questionar de que maneira esse mapeamento  dará conta de identificar as diversas ações e iniciativas de desenvolvimento sustentável em comunidades afrodescendentes e indígenas que combinam sustentabilidade, economia solidária e fortalecimento da identidade cultural, entre outros elementos, que seguem historicamente invisibilizadas, subnotificadas e pouco exploradas em seu potencial para apresentar soluções factíveis para os desafios atuais. Portanto, é necessário identificar, valorizar e ampliar essas práticas em larga escala, essa será uma medida para territorializar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e fazer com que eles alcancem a maior parte da população brasileira, além de oferecer respostas aos grupos mais impactados pelas múltiplas crises.

Acrescento que nesse processo de mapeamento, é fundamental considerar outros marcadores de desigualdade, como deficiência, diversidade de gênero e território, pois o enfrentamento ao racismo requer uma abordagem interseccional.

Internacionalmente, o ODS 18 coloca o Brasil em uma posição de destaque em fóruns globais de direitos humanos e desenvolvimento sustentável e isso deve ser coerente com a adoção de ações concretas no âmbito nacional. Nesse momento crucial de rediscussão da governança global, o país tem a oportunidade de alinhar suas políticas internas com iniciativas globais, pela via da agenda de combate ao racismo, que tem se amplificado e ganhado força mundialmente, desde o episódio brutal com George Floyd nos Estados Unidos. Nesse sentido, é preciso recuperar e trazer para ordem do dia, agendas históricas, mecanismos e instrumentos que direcionam um caminho para igualdade racial, a exemplo da Conferência de Durban sua Declaração e Plano de ação, a Década Internacional de Afrodescendentes da ONU com foco em sua renovação, o Fórum Permanente de Afrodescendentes e suas diretrizes pactuadas globalmente pela sociedade civil e o Grupo de Trabalho de Especialistas em Afrodescendentes que apresenta recomendações consistentes para o enfrentamento ao racismo contextualizado as grandes agendas globais, entre outros.

Olhando mais especificamente para o âmbito regional, o fortalecimento da cooperação com países da América Latina e Caribe, onde as populações afrodescendentes também enfrentam desafios semelhantes, pode ser uma maneira eficaz de trocar boas práticas e consolidar uma frente regional na luta contra a discriminação racial, que possa configurar uma força para impulsionar as perspectivas do Sul Global de maneira mais equânime e condizente com a realidade, bem como fortalecer uma ação política integrada contra os avanços da extrema direita global que tem afetado a região de forma avassaladora.

No âmbito desta agenda, nós de Geledés temos atuado a partir das seguintes ações: 

– Apresentamos recomendações ao Itamaraty para a inclusão de linguagem específica sobre afrodescendentes nos documentos de negociação 

– Passamos a integrar os principais mecanismos de participação da sociedade civil junto à ONU para a agenda de desenvolvimento sustentável, buscando influenciar a discussão racial e garantir que gênero e outras questões sejam abordadas de maneira interseccional.

– Defendemos junto a ONU que o racismo é uma questão global, impactando cerca de 300 milhões de afrodescendentes no mundo, dos quais aproximadamente 150 milhões estão na América Latina.

– Estamos trabalhando para a criação de um mecanismo de participação da sociedade civil de afrodescendentes junto a ONU, garantindo representação e qualificando a discussão racial a nível global, especialmente no que diz respeito às especificidades entre a comunidade africana e afrodescendente no âmbito da agenda de desenvolvimento sustentável.

Em conclusão, o ODS 18 oferece uma janela de oportunidade histórica para que o Brasil enfrente suas desigualdades raciais e avance rumo a um verdadeiro desenvolvimento que para isso precisa ser justo e sustentável, além de impulsionar isso a nível global. Nesse sentido, será fundamental que a sociedade civil, o setor privado e o governo se comprometam com a implementação de políticas públicas que levem em consideração as especificidades da população afrodescendente. Nós de Geledés continuaremos nos posicionando frente a essa agenda, de modo a garantir que as promessas do ODS 18 não sejam apenas um discurso, mas que se transformem em ações concretas que beneficiem a população afrodescendente e impulsionem o Brasil em direção a um futuro mais equitativo e inclusivo.


Leticia Leobet é Cientista Social com formação em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Atua como Assessora Internacional em Geledés – Instituto da Mulher Negra, com foco nas agendas de Desenvolvimento Sustentável, Clima e Racismo Ambiental. Representa  Geledés nos mecanismos de participação da sociedade civil tanto a nível nacional quanto internacional. 

Na ONU, Leticia representa Geledés no NGO Major Group e no Women’s Major Group, e a nível nacional, no Grupo de Trabalho da Agenda 2030. Tem participado ativamente nas últimas sessões do HLPF, COP, CSW e na Conferência da Sociedade Civil. Seu trabalho é centrado na vocalização da agenda racial como meio para alcançar justiça social, racial e de gênero alinhados ao desenvolvimento sustentável. Leticia também é ativista do movimento negro.

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