Ele é o primeiro negro a assumir a direção do Balé da Cidade de São Paulo e se diz um discípulo da antropofagia
POR Jotabê Medeiros, DA Carta Capital
“A minha bandeira, a coisa mais importante dentro da minha reivindicação racial, foi meu próprio corpo negro”, diz Ismael Ivo
Na rua, poderiam até confundi-lo com um operador a caminho da BM&FBovespa. Ismael Ivo caminha pelo Anhangabaú com uma pastinha de executivo, camisa imaculadamente branca e gravatinha preta com as costuras externas à mostra. Mas, em um minuto, o vigoroso porte físico, o jeito de andar, o gestual e a riqueza das expressões faciais denunciam: ou é um boxeur ou é um bailarino, obviamente.
Ele entra no salão nobre do Theatro Municipal e acomoda-se com rigor, atenção, sem nunca deixar o corpo totalmente relaxado. Está sempre no controle. Respira e olha para o alto. “Estou no teatro onde o movimento modernista brasileiro aconteceu. A Semana de Arte Moderna. Oswald de Andrade.
Aqui”, diz, embevecido, com um sotaque ininteligível que faz a fala toda ficar cheia de pausas elegantes. “Eu sempre me identifiquei como antropófago. Porque eu falava da fome. Eu sou um bom canibal de ideias, de momentos. Saí pelo mundo exatamente para tentar aprofundar meus conhecimentos, absorver, comer todo tipo de informação que eu pudesse. Procurei me aprofundar em todos os estilos de dança, para, como um bom canibal, poder ter essa bagagem e digeri-la de outra forma.”
Depois de 33 anos dançando nos Estados Unidos e na Europa, o mais festejado e famoso bailarino brasileiro no mundo está de volta. Para morar aqui. Acaba de assumir a direção do Balé da Cidade de São Paulo, que completa 50 anos no próximo ano. É o primeiro negro a dirigir o balé em meio século. Sua primeira coreografia, Risco, é baseada na relação dos bailarinos com os grafites da cidade, uma pesquisa insólita, e tem estreia neste fim de semana com 34 bailarinos em cena.
Há 40 anos, Ismael Ivo era um garoto da Vila Ema, bairro da zona leste de São Paulo, de família modesta, que teimava em ser bailarino. Pegava dois e às vezes três ônibus para ensaiar. Dançava onde era possível: na Rua 13 de Maio, no Bexiga; nas janelas do antigo Espaço Infinito; dançava atrás de um caminhão que tocava música e do qual ia na rabeira, improvisando.
“Eu sempre digo que eu tinha de nascer em São Paulo. Adoro a Bahia, admiro o Rio de Janeiro. Mas eu tinha de nascer em São Paulo, nascer num beco sem saída. Aqui, ou você faz ou você morre, desaparece”, brinca. Considera-se um “infiltrado”, é a palavra que usa, menino negro que usou a dança “como uma estratégia social, racial, como negro, estratégia de abraçar uma arte que é, ou foi, muitas vezes relegada a um público de elite; eu me infiltrei”.
Jovem prodigioso, Ismael atraiu mentores de diversas frentes: na formação política, foi instruído por Abdias do Nascimento e a filósofa Tereza Santos; na dança, por Klauss Vianna e Takao Kusuno. Abdias advertiu-o de que a reivindicação do seu lugar no mundo teria a ver com a criação de uma voz pessoal, um elemento de valor. “Muitas vezes penso que as pessoas se limitam a ser um veículo de protesto, e esquecem a própria matriz da arte e da criatividade”, diz. “A minha bandeira, a coisa mais importante dentro da minha reivindicação racial, foi o meu próprio corpo negro. Aí ninguém pode mais contestar.”
Então você está querendo dizer que não há preconceito racial no Brasil?, indaga subitamente Ismael, como se impusesse a si mesmo a pergunta que o repórter ainda não teve coragem de fazer. “Tem, sim.
Nascido na zona leste paulistana, Ismael brilhou nos principais palcos do balé mundial (Arthur Costa)
E tem problemas raciais que muitas vezes são velados e deturpados. E eu senti, desde a minha infância, que tinha uma barreira dupla para mover e conquistar o meu lugar. Um racismo, felizmente, ou infelizmente, não confrontativo, como o que ainda acontece nos Estados Unidos”, Ismael diz. “E o Brasil ainda está engatinhando para aprender valores de democracia, de honestidade política, sociocultural. Mas eu acredito que a gente tem de investir nesse processo.”
Um dia, a companhia do coreógrafo norte-americano Alvin Ailey (1931-1989), a Alvin Ailey American Dance Theater, passou por São Paulo e Ailey viu Ismael dançar. Não teve dúvidas: levou-o consigo para Nova York. Outras sólidas amizades foram surgindo: o coreógrafo tcheco Jiri Kylian, a papisa da dança-teatro, a alemã Pina Bausch, e o lendário norte-americano William Forsythe, grande reformador do balé clássico. E sua alma gêmea, a brasileira Márcia Haydée, ícone da dança clássica no mundo, com quem ele dançou durante cinco anos em Stuttgart.
“Eu nunca precisei me ‘vender’ como brasileiro lá fora para conseguir sucesso”, ele diz, construindo as aspas imaginárias na palavra vender com ênfase vocal, em vez de usar as mãos. “Pelo contrário, insisti em levar os meus valores culturais afro-brasileiros, criando uma identidade que não fosse meramente exótica.
Porque o exotismo, não tenho nada contra, o europeu adora consumir. Mas é como um prato de comida diferente, você come, come, come, daí se cansa e também descarta. Eu não tinha nem vocação, nem pretensão, nem talento para entrar nessa categoria. Eu dizia para eles: ‘Comecem a me encarar como um animal pós-exótico’.”
Pina Bausch dirigiu um solo exclusivo para ele e deu-lhe uma companhia para dirigir em Roma, La Compagnia, uma espécie de sucursal de seu célebre grupo de Wuppertal. Ismael também assumiu a direção de dança da Bienal de Veneza, onde ficou por oito anos, tornando-se o mais longevo diretor. Dirigiu o Teatro Nacional Alemão de Weimar, o caprichoso teatro de Goethe. Criou em Viena o ImPulsTanz – Vienna International Dance Festival, o maior do gênero no mundo (do qual ainda integra o bureau de direção).
Este ano, Ismael Ivo viu-se surpreendido pelo convite do atual secretário municipal de Cultura, André Sturm, e do prefeito João Doria Junior, para assumir o Balé da Cidade – seu nome fora aprovado previamente pelos próprios bailarinos. Ismael ouve o carro de som da greve geral lá fora do teatro, e ativa seu senso de humor instantâneo, desopilado. “É contra o quê?”, diz, já respondendo: “Contra a reforma da Previdência, contra o Doria, contra o André Sturm, o congelamento, o fomento. Daqui a pouco é contra o Ismael Ivo”, gargalha.
Ele resolveu pegar carona no debate sobre a investida da prefeitura contra o grafite e entrou na discussão. Colocou os bailarinos em campo, no que chama de “laboratório vivo”, para uma interação com a arte de rua de São Paulo. Cada bailarino deveria descobrir sua linguagem na expressão de um muro grafitado.
No primeiro trabalho no Balé da Cidade, bailarinos (Arthur Costa)
Ismael defende a tese de que há uma especificidade inata no bailarino brasileiro. É imbatível em criatividade, mas é burlado, tolhido, não encontra condições, honestidade. “O alemão primeiro reflete e analisa. O americano calcula se vai dar pedal ou não. O brasileiro é camicase, é suicida, ele vai lá e faz, não tem nada a perder”, diferencia. “Lá fora, importei bailarinos brasileiros porque precisava desse DNA.”
Como coreógrafo, vê o corpo como catalisador de momentos sociais, políticos e comportamentais. Preconiza que a nova companhia que assume agora desenvolva uma identificação com sua cidade, seu tempo, sua história, o corpo dos bailarinos como documento dessa compreensão. O bailarino ri divertidamente do próprio raciocínio bem encaixado. “Nesses anos todos de Europa, absorvi todos os conhecimentos, as posições, tive os cargos na Alemanha e na Itália, mas permanecerei para sempre Macunaíma.”
Ismael considera que o mundo inteiro passa por momentos conturbados, difíceis, em que todas as garantias se tornaram frágeis. Ele vê esse tempo como uma época de oportunidades, de estimular a revisão, a recriação. Abriu o Balé da Cidade para que meninos da periferia de São Paulo venham acompanhar os ensaios, os debates, conversar com ele e os bailarinos.
Na semana que vem, 200 adolescentes estarão misturados à sua companhia. Diz que isso lhe traz as lembranças de si mesmo, garoto, ainda na Vila Ema, sonhando em achar um meio de expressão. Emociona-se. Com a idade, uma quase imperceptível membrana azul veio cobrindo os olhos de Ismael, de 61 anos, que dá de ombros para explicar o fenômeno. “É azul. É assim que é.”
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