Isoladas: oito mulheres criminalizadas por aborto

Texto de Bia Cardoso.

Sábado, 28 de setembro, é Dia Latino-Americano de Luta Pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Uma data para marcar ações e manifestações de apoio as mulheres que todos os dias recorrem a métodos ilegais de abortamento em momentos de desespero. Fora as que morrem todos os anos, vítimas de um sistema que condena e demoniza as mulheres por fazerem sexo.

O que vemos atualmente são ofensivas mentirosas e caluniosas, por parte dos setores conservadores, que tentam reduzir a questão do aborto a uma ameaça contra a vida de criancinhas, inclusive criando espantalhos, como na acusação de que o PLC 03/2013, que dispõe sobre o atendimento às vítimas de violência sexual no âmbito da saúde, seria uma tentativa de legalizar o aborto no Brasil. Fora outros tantos projetos de lei que ameaçam direitos já conquistados, como o Estatuto do Nascituro e a ofensiva contra uma reforma progressista do Código Penal brasileiro, que atualmente encontra-se em discussão no Congresso.

O conservadorismo e o obscurantismo do Legislativo brasileiro tem usado o tema para fazer ameaças e chantagens ao Executivo (que tem cedido e se acovardado), caso haja qualquer iniciativa de proposta. No Judiciário, ano passado foi aprovado o direito a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, mas não andamos mais que isso. Falar em aborto no Brasil é tabu, assunto controverso, pouquíssimos políticos querem se ver associados ao tema. Há alguns anos vemos essa ofensiva contrária aos direitos reprodutivos crescer.

 

No Brasil, em 2007, uma clínica que realizava abortos clandestinos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, foi invadida numa operação policial, televisionada em tempo real e transmitida em rede nacional pela TV Morena, afiliada da TV Globo no estado. Os 9.862 prontuários médicos apreendidos na operação, anexados ao processo criminal, ficaram acessíveis à curiosidade popular por quase três meses, violando os princípios constitucionais da privacidade e intimidade das mulheres. Milhares de mulheres tiveram suas vidas devassadas e expostas publicamente. Atualmente, corre um processo criminal contra as mulheres que supostamente lá abortaram e também contra funcionários da clínica. O primeiro júri aconteceu em 2010.

Em reportagem da Pública – Agência de Notícias, Beatriz Galli, advogada, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da OAB do Rio de Janeiro e assessora de políticas para a América Latina do Ipas, fala sobre o simbolismo dessa ação num momento em que a descriminalização do aborto começava a ser discutida:

“O habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública que falava sobre todas as violações de direitos das mulheres durante a invasão da clínica, a falta de proteção da privacidade das mulheres, o manuseio dos prontuários por pessoas não qualificado e a exposição dos nomes delas no site do TJ foi indeferido sem decisão de mérito”.

“Foi uma atuação simbólica, houve uma articulação política para começar uma criminalização massiva de mulheres em um momento que a gente começava a discutir a descriminalização do aborto no Brasil”, acredita Beatriz. “A maioria das mulheres fez a confissão para suspensão do processo (o que é previsto para o crime de aborto em troca de algumas condicionantes, como prestar serviço comunitário, em alguns casos, pagar multa, prestar contas ao juiz periodicamente) mas essa confissão revela uma série de desrespeitos processuais. Muita gente nem tinha advogado, não havia provas materiais contra elas. Só existiam os prontuários médicos com informações totalmente vagas. Não haveria base para elas serem realmente julgadas e condenadas” explica a advogada. Referência: Violações marcaram processos contra milhares em MS.

O livro ‘Isoladas – A História de Oito Mulheres Criminalizadas por Aborto’ (.pdf) conta parte dessa história, tendo como objetivo documentar, por meio de depoimentos, a história de seis das quase dez mil mulheres envolvidas no caso, além de duas profissionais que trabalhavam no local.

Uma das questões presentes nesta documentação é a discussão sobre o estigma social pelo qual as mulheres ficam marcadas. O que isso representa para as suas vidas, como elas lidam com ele, de que forma isso mudou a convivência com a família, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional são algumas das questões que poderão ser vistas a partir dos depoimentos, nos dando a ótica de quem passa pelo abortamento inseguro e como isso atinge o seu dia-a-dia.

A questão do aborto é sempre estigmatizada, assim como o são as mulheres que abortam ilegalmente. Sim, existem métodos anticoncepcionais, há inúmeras formas de evitar uma gravidez, mas não existem seres humanos perfeitos. Como diz aquela máxima: até médicas ginecologistas engravidam sem querer. Infelizmente, a maioria das pessoas não consegue aceitar esses erros, em grande parte porque significa, na maioria das vezes, que uma mulher fez sexo por prazer. Então, o que as pessoas nos dizem é que não podemos culpar uma “criança” pelo erro de uma mulher. Mas podemos culpar essa mulher e impetrar sobre ela a pena de ser mãe compulsoriamente. Não há escolhas. Pela nossa legislação atual, se alguém decide arriscar a própria vida numa clínica de aborto clandestina, a pena deve ser cadeia. Por ter atentado contra a vida de quem nem existe.

Algumas vezes, as pessoas que abortam clandestinamente tinham o direito de realizar o procedimento legalmente, mas por pouca ou nenhuma informação, dificuldade de acesso, receio de como seria tratada ou a falta de serviços de referência, acabam recorrendo a procedimentos inseguros. O fato do aborto estar associado a criminalidade leva muitas pessoas a clandestinidade nesses casos.

É possível identificar esses fatores nos depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande:

“Eu tenho uma filha de 14 anos e, na época em que eu engravidei da minha filha, eu estava tomando remédio, anticoncepcional, e mesmo assim eu engravidei. Estava namorando uma pessoa, não era bem um namoro, era um conhecimento ainda, e fui a essa clínica para colocar um DIU. Lá, eles pediram para que eu fizesse alguns exames. Fui chamada até a sala da psicóloga e ela me disse que eu estava grávida de três semanas. Na hora eu fiquei desesperada. Minha filha tinha três anos na época. Eu sou mãe solteira, crio ela sozinha, então, para mim, foi um desespero, mais uma criança. Como que eu ia fazer?” (pg. 15)

“Estou começando a cumprir este mês essa pena. É recente. Eu acho muito injusto isso do julgamento porque eles cobram da gente uma postura com a sociedade. Na época que teve essa intimação, eu estava desempregada, como eu já disse, eu tenho uma filha e tenho a minha mãe, então, chegaram épocas na minha casa que a gente não tinha muita coisa, e a sociedade não se preocupa muito com isso. Daí, chega uma opção que eu tenho que fazer na minha vida, com o meu corpo, e aí eu tenho que prestar satisfação à sociedade. E é uma sociedade que me condena e que me dá o que em troca? Eu acho que existe um livre-arbítrio, e que cada um vai pagar, de acordo com os seus atos, então, o Estado, em vez de punir, de incriminar, deveria dar apoio, de ajudar. A política de planejamento familiar não funciona no Brasil. Então, eles não podem cobrar por uma coisa que não funciona. Eles não podem cobrar por uma coisa que eles não oferecem.” (pg. 19)

“O que me levou a fazer foi o seguinte: eu era muito jovem e já era mãe de uma criança recém-nascida. Por descuido meu… fiquei grávida novamente… e resolvi, optei por interromper a gravidez, tendo em vista que eu estava com meu companheiro na época por pressão da família, então, eu não queria persistir numa relação que não ia dar certo, na qual iria ficar amarrada por meio de filho, não achava justo ter mais um filho que os pais estariam separados e que uma filha só que eu já tinha poderia ter boas condições de criar sozinha. Durante essa gestação que foi interrompida, o médico viu, através de ultra-sonografia, que o feto era anencéfalo e tinha problemas de má-formação. Foi categórico quanto à sua perspectiva de vida, que provavelmente iria nascer e sobreviver por pouco tempo, ficar na UTI neonatal, ou ofereceria risco também para mim durante a gestação. Com toda a minha situação de vida e a pouca condição de vida do feto, optei por não ter. Como aqui era de fácil acesso encontrar essa clínica, tinha que passar por uma psicóloga na clínica dela e acertava, então não tinha porque recorrer ao meio judicial, ainda mais porque ia ser demorado.” (pg. 33)

Fala-se muito em vida quando se discute aborto. E, para muitos, colocar a vida de um feto como mais importante que de uma mulher pecadora faz mais sentido. A maioria questiona: por que não evitou a gravidez? Como se todos os métodos anticoncepcionais fossem infalíveis, como se os corpos não reagissem de diferentes maneiras a anticoncepcionais hormonais, como se fosse simples fazer uma esterilização. Como se fôssemos todos seguros de si para entrar numa farmácia ou posto de saúde e adquirir camisinhas ou pílulas dos dia seguinte. Os depoimentos dessas mulheres servem também para pensarmos na vida de quem estamos falando.

A Frente Nacional Contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto foi articulada por mais de 100 entidades, espalhadas por todo território nacional, após esse episódio do Mato Grosso do Sul. Promove diversas ações em prol da descriminalização e legalização do aborto e, lançou em 2010, a Plataforma para a Legalização do Aborto no Brasil (.pdf). Parece óbvio, mas é importante lembrar que qualquer proposta de legalização do aborto passa também por políticas públicas de planejamento familiar, prevenção da gravidez e direitos reprodutivos. Lembrando que não devem ser restritas apenas as mulheres, mas também devem contemplar todas as pessoas que podem engravidar, como homens trans*, por exemplo.

Então, quando falamos de legalização, não estamos falando de colocar uma “sala de aborto” em cada hospital, para onde as pessoas que recebem um resultado positivo de gravidez seriam prontamente encaminhadas. A proposta é que o Estado brasileiro garanta condições para o pleno exercício dos direitos reprodutivos, oferecendo TODAS as condições para que as pessoas decidam ter ou não ter filhos.

Lendo os depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande percebe-se o imenso estigma que o tema ainda carrega e a hipocrisia presente. Nos relatos há indícios de que a ação policial preservou a identidade de filhas e parentes de políticos da região. Todas são clandestinas, mas só algumas vão presas, só algumas são identificadas. Mas, muitas morrem todos os anos, especialmente as pobres, muitas vezes negras. A vida de quem o Estado e a sociedade estão escolhendo?

Fonte: Blogueiras Feministas

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