Jovens denunciam episódio de racismo e agressão em restaurante durante o Carnaval
Por André Nicolau, Do Catraca Livre
Após curtirem mais um dia de Carnaval, na última segunda-feira, 24, os jovens Lucas Matheus dos Santos, 24, e Peterson Damião dos Santos, 35, foram ao restaurante Esquina da Praça, na República, centro de São Paulo, encontrar um grupo de amigos.
A receptividade foi a pior possível: foram alvo de racismo e agressão por funcionários do estabelecimento e saíram de lá feridos, diretamente para tendas de atendimento de saúde espalhadas pela região.
Os planos mudaram rapidamente: em vez de comer alguma coisa antes de voltar para Itaquera, bairro onde vivem na zona leste, tiveram de procurar delegacias.
Este novo episódio de racismo, marcado por ofensa, intolerância e violência, começou assim que chegaram ao restaurante: aguardavam pacientemente a entrada, quando perceberam outros clientes passarem à frente sem qualquer objeção.
Revoltados com o que testemunhavam, Lucas, Petterson e Wesley Silva do Nascimento, 28, que naquele momento se juntara aos amigos, passaram a questionar a cena. Afinal, por que seus amigos, brancos, conseguiram entrar e comer sem qualquer problema, enquanto eles eram obrigados a lidar com aquela situação ?
Custavam a acreditar no que estavam vivendo. Foram eles as novas vítimas de uma violação que, diariamente, atinge milhares de brasileiros: o racismo. “Foi bem difícil, ainda mais quando percebemos que era um episódio racista. Não dá pra ter sangue de barata lidando com uma situação dessa. Mesmo sabendo dos riscos que corríamos, mas é difícil”, explicou o estudante de odontologia, Lucas Matheus dos Santos.
Diante do episódio, os jovens decidiram, então, registrar o que estavam vivendo. Com uma câmera de celular, passaram a filmar outros clientes entrando no estabelecimento, sem qualquer resistência, enquanto o grupo era barrado pelos funcionários.
Até que, em um certo momento do vídeo, um dos funcionários diz para uma cliente: “Pode entrar, moça, você é branca, segue ele” (sic)_o que motiva grande revolta entre o grupo segregado, que, diante do fato, não se cala quanto à arbitrariedade do caso.
Neste momento, um homem mais velho, que se identifica como proprietário do restaurante, surge no vídeo e tenta impedir, de forma violenta, a gravação. Logo depois, o grupo é expulso do restaurante e agredido pelos funcionários do restaurante que arremessam cadeiras e outros objetos contra eles.
Feridos, Peterson e Lucas buscaram socorro no posto médico e, depois, foram atendidos pela tenda de acolhimento da campanha #CarnavalSemAssédio, realizada pela Catraca Livre, em parceria com a prefeitura, a produtora Rua Livre e com apoio da 99.
Lá, receberam os primeiros socorros, onde foi constatado que Peterson sofreu luxação no dedo ao tentar se defender de um dos objetos arremessados. Lucas, agredido por um segurança com golpes de madeira, precisou receber pontos na cabeça.
Apoio jurídico
Na tenda, além do atendimento inicial, os jovens foram acolhidos pela advogada Carolina Fichmann, que, prontamente, se dispôs a ajudá-los. “A gente achou que fosse só tratar de mulheres e LGBTs vítimas de assédio e, graças a Deus, nada de grave aconteceu. Mas por outro lado, tivemos que lidar com isso. E como é possível que em 2020 aconteça algo assim ? É um absurdo muito grande. No vídeo você consegue ver que eles não fizeram nada de errado, que eles só queriam entrar no restaurante e comer.”
Questionada sobre o motivo que a levou a atendê-los, Fichmann explica que, como advogada, não poderia ser diferente. “Quando me formei fiz um juramento em que lutaria por justiça. E se diante de um caso desse, eu simplesmente fechasse meus olhos, qual seria o sentido da minha vida ?”, justifica.
O caso foi levado a uma base da Deatur (Delegacia especializada em atendimento ao turista) onde foi registrado o Boletim de Ocorrência como lesão corporal.
Contudo, Fichmann explica que a ocorrência pode ser enquadrada como crime de racismo, como prevê a lei 7.716/89 do código civil. “Além da lesão corporal, existiu o crime de racismo na forma do artigo 5 dessa lei por conta da segregação sofrida. Você percebe nitidamente que os jovens negros foram obstruídos enquanto os brancos entravam sem qualquer restrição. E nisso a gente vislumbra o crime de racismo que é diferente de injúria racial. Não se trata de alguém que foi xingado, eles foram segregados, como um apartheid, uma coisa horrorosa”
Racismo nosso de cada dia
No Brasil, o racismo se manifesta de diferentes formas. No acesso à educação, na violência contra a mulher, no mercado de trabalho e, sobretudo, no genocídio em curso que a cada 23 minutos tira a vida de um jovem negro, segundo dados apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Petterson, uma das vítimas no restaurante Esquina da Praça, destaca que nunca havia passado por situação parecida. Para ele, algo inaceitável. “A gente sabe que isso é uma coisa frequente, mas nunca tinha vivido nada parecido. É uma revolta muito grande. Arremessaram cadeiras sobre mim, agrediram meu primo com uma paulada na cabeça. Quem chama de vitimismo é porque nunca passou por isso ou nunca passará.”
Enfatiza ainda que busca apenas valorização e tratamento justo na sociedade. Acredita que o cenário de exclusão e intolerância só mudará quando as pessoas não deixarem de denunciar. “Nós ficamos triste com tudo o que aconteceu, por ser mais um caso de racismo. Mas não podemos desistir. Temos que denunciar e buscar justiça até o fim.”
Pretos no topo
Lucas reforça a opinião do primo e destaca outro fator fundamental para o fim da racismo no Brasil: a união entre as pessoas. Sobretudo as de pele preta. “Quando vejo pessoas de pele negra concordando que isso é vitimismo é o que mais me revolta. Nem tanto as pessoas brancas, porque elas nunca vão entender o que significa. É uma luta diária, que devemos travar todos os dias.”
Apesar disso, ressalta que o episódio o tornou ainda mais forte para alcançar seu objetivo: chegar ao topo e criar novas frentes, profissões, pólos negros, para unir e gerar força para a população afrodescendente. “Agora que fui impedido de entrar naquele restaurante por causa minha cor, vou lutar pra comprar um lugar onde quero que as pessoas da minha pele entrem. Isso só me torna mais forte para chegar ao topo”.
Procurado pela reportagem, o restaurante Esquina da Praça não se manifestou.
Abaixo, destacamos o vídeo cedido por uma das vítimas que registra parte das agressões: