Joyce Prado brilhará no orun, mas o Ayé perdeu um talento precioso

11/12/25
Semayat Oliveira
Com uma contribuição inestimável para o cinema e ao audiovisual brasileiro, morte repentina e precoce da cineasta paulistana causa tristeza e comoção

Foi em uma quarta-feira, assim como diz a primeira estrofe da canção Banho de Folhas, de Luedji Luna. O videoclipe dessa música, que ganhou o Brasil e o mundo e hoje conta com 6 milhões de visualizações no YouTube, foi dirigido por Joyce Prado, cineasta brasileira. E foi na noite da última quarta-feira, 10 de dezembro, marcada pelos assobios dos fortes ventos em São Paulo, que uma notícia inesperada soprou: Joyce Prado, uma preciosidade do nosso tempo, partiu.

Nascida na capital paulista em 2 de julho de 1987, tinha 38 anos e mais de uma década de carreira. Formada em Rádio e TV pelo Centro Universitário Belas Artes e especialista em Roteiro Audiovisual pelo Senac, a diretora e roteirista viveu os últimos anos em uma intensa produção de arte. Em 2015, ao lado da também cineasta Renata Martins, foi idealizadora da websérie Empoderadas. O trabalho trouxe visibilidade para as histórias de mulheres negras e valorizou a trajetória de diferentes personagens com um cuidado estético primoroso. Os episódios chegaram a ser exibidos em mostras e festivais no Brasil, na Etiópia, em Portugal, Gana e Estados Unidos.

Como documentarista, Fábula de Vó Ita, de 2016, foi seu primeiro curta-metragem. A obra recebeu menção honrosa na Mostra Internacional de Cinema Infantil de Florianópolis e o prêmio ‘Meninas Protagonistas’ do Festival Comkids, em 2019. Em seguida, veio Okán Mímó: Olhares e palavras de afeto, de 2017. Neste trabalho, explorou o amor, afeto e a espiritualidade nos orixás.

Também em 2016, tornou-se cofundadora da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). A organização tem a função de promover a visibilidade, valorização e protagonismo de pessoas negras no mercado audiovisual brasileiro. Joyce atuou como diretora administrativa por muitos anos, tendo deixado a organização em 2023. Ainda assim, se manteve participativa como conselheira informal.

Segundo a presidenta da APAN, Tatiana Carvalho, Joyce sempre foi uma realizadora preocupada com a ética das imagens, o papel do cinema e de quem o realiza na sociedade brasileira. “Para além de pensar uma criação artística, com tudo o que isso implica em dimensões estéticas, ela era profunda conhecedora das nuances relativas ao racismo, entendendo as dinâmicas da fragilidade da democracia brasileira, do que é importante para nutrir o senso de coletivo e as questões éticas relativas à produção das imagens, não só no cinema, mas no audiovisual como um todo”, ressaltou Carvalho em entrevista para Geledés.

Apesar da pouca idade, a presidenta reafirma que, na APAN, a cineasta ocupa, desde sempre, um posto de inspiração e referência: “Numa dimensão de ancestralidade e em uma lógica de terreiro, apesar de muito jovem, a consideramos uma mais velha. Pela sabedoria que ela sempre mobilizou, a doçura, pela sagacidade muito fina de leitura de contextos econômicos e políticos. Pelos conselhos, pelo acolhimento. Várias pessoas entraram na APAN acolhidas por ela. Ela foi grandemente responsável pela associação ter se tornado o que é hoje. Ela estava lá desde o começo e sempre conciliou uma afetividade imensa, um coração generosíssimo, com uma inteligência, uma precisão nas palavras, um senso de representatividade e um diálogo franco”, afirmou.  


Diretora de Videoclipes 

O ano de 2017 marca o caminho de Joyce Prado em uma outra dimensão: a junção entre o visual e a música. Ela dirigiu os videoclipes das músicas Banho de Folhas, como mencionado no início deste texto, Notícias de Salvador e Um Corpo no Mundo, hoje com 4 milhões de visualizações no Youtube, título que também dá nome ao álbum de estreia de Luedji Luna. 

A união entre Joyce e Luedji se tornou duradoura e o olhar cuidadoso e original da cineasta se estendeu para outros trabalhos. Os videoclipes de Acalanto (2019), Ameixa (2021), assim como o audiovisual do álbum Bom Mesmo é Estar Debaixo D’água (2020)  e o documentário Memórias de Um Corpo no Mundo,  sobre a primeira turnê nacional da cantora, tiveram a direção e arte de Joyce.

Seu talento e habilidade neste segmento lhe renderam três premiações no Women’s Music Event, tendo vencido na categoria “Diretora de Videoclipe” em 2018, 2021 e 2024, além de ter sido reconhecida pelo Music Video Festival Awards em 2020. Seus trabalhos mais recentes no campo musical incluíram a direção do videoclipe Terra Aféfé, de Margareth Menezes, em 2022;  Da Nebulosa ao Brilho, das Pastoras do Rosário, em 2024; The Beat Diáspora, série com seis episódios sobre ritmos musicais periféricos que estão dominando a cultura pop. Neste trabalho, integrou a equipe de roteiro e direção.

Durante uma oficina sobre videoclipe, promovida em 2024  pelo JAMAC, espaço de cultura localizado no Jardim Miriam, bairro da zona sul de São Paulo, ela disse: “Atualmente, pra mim, o videoclipe é o lugar onde testo coisas que gostaria de aprofundar, eventualmente, em conteúdos mais extensos. Seja um curta-metragem, um conteúdo documental. Olho para o videoclipe como um espaço de experimentação, de jogar ideias que sejam mais loucas mesmo, sair do senso comum”.

Documentarista

Dona de uma sensibilidade ímpar, mas de uma firmeza contundente, seus trabalhos são um reflexo do seu compromisso em contar histórias negras para remontar o Brasil. Um exemplo é a websérie lítero-imagético Cartas de Maio, lançada em maio de 2018. O objetivo foi registra a leitura de cartas de pessoas negras contemporâneas escritas para seus ancestrais vivos  no dia da assinatura da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888.

Anos mais tarde, em 2020, viria seu primeiro longa-metragem: Chico Rei entre Nós. O filme, produzido por uma equipe inteiramente feminina e majoritariamente negra, investiga a história de Chico Rei – um monarca que, segundo a tradição oral, foi trazido do Congo para a região de Ouro Preto, Minas Gerais, em 1740. Após conquistar a própria alforria, libertou outros conterrâneos da região. 

Logo de estreia, Joyce venceu o Prêmio do Público de Melhor Documentário Brasileiro e uma Menção Honrosa do Júri Oficial na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2020).

Em 2023, dirigiu a série documental Ancestralidades pelo canal Arte1, investigando a cena contemporânea das artes negras a partir de suas distintas estéticas e origens.

Empresária 

Em 2008, Joyce fundou a empresa Oxalá Produções, focada em conteúdos sobre a cultura e comunidade afro-brasileira e diaspórica. Recentemente, ela foi entrevistada na segunda temporada do podcast Raízes e Ativismo, da Casa Sueli Carneiro. Em dado momento, Maitê Freitas, apresentadora e jornalista,  questiona como a Oxalá permite um caminho de autonomia no audiovisual. Em resposta, ela contextualiza:

“Um dos motivos da Oxalá existir, em contraponto a uma indústria mais hegemônica de cinema e audiovisual, é justamente porque eu não conseguia me enxergar de uma maneira mais plena quando estava trabalhando nessa indústria (…) E mesmo dentro do que eu ambicionava, que era a prática do cinema e do audiovisual,  me sentia muito limitada e oprimida por diferentes tipos de violência que se manifestavam nesses espaços”.

Maitê, que já teve a oportunidade de trabalhar com Joyce no passado, relatou ao Portal Geledés como foi sua a experiência: “Ela sempre foi uma pessoa muito sensível, elegante, de uma sobriedade, uma gentileza e delicadeza ímpar. Talvez uma das pessoas mais delicadas e elegantes que eu tenha conhecido. É muito triste não tê-la mais aqui”.

Para Tatiana Carvalho, presidenta da APAN, a Oxalá Produções refletia uma busca de Joyce em compreender um modelo de negócio possível de não reproduzir violências. “Ela  se preocupava com ambientes de trabalho e em encontrar outras dinâmicas, que não as dinâmicas e hierarquias violentas”, reforçou. 

O Legado

Em 2021, o jornalista e ativista Edson Cardoso, durante uma live para o projeto Ancestralidades, da Fundação Tide Setúbal, falou sobre a importância de nos reconectarmos com a ancestralidade. Em sua fala,  destacou o filme Chico Rei Entre Nós, de Joyce Prado. Edson contou que, em muitos momentos, chorou profundamente ao assistir e analisou como Joyce tratou o tema da ancestralidade ao abordar a luta por moradia em Ouro Preto.

Segundo ele, o documentário revela “uma troca interessante entre a ancestralidade presente nos rituais da congada e, ao mesmo tempo, a forma como essa ancestralidade nos fortalece”. Nessa entoada, Chico Rei é invocado como força de pertencimento.

Ao refletir sobre obras que tratam da ancestralidade, Edson associa o filme à Marcha Zumbi de 1995, momento em que o movimento negro evocou com força o lema “Zumbi vive!”. A fala de Edson sobre o filme evidencia como Joyce deixou para o audiovisual brasileiro um legado que reafirma a importância de caminhar a contemporaneidade junto à ancestralidade negra. 

Esse mesmo legado ela levou ao curso de multimídia do Geledés – Instituto da Mulher Negra, ao compartilhar com jovens negros da cidade de São Paulo a importância de pensar a direção de um documentário com transparência e respeito à história que queremos contar.

A aula de Joyce permitiu que os participantes do curso produzissem narrativas audiovisuais que expressassem o olhar da juventude negra sobre temas que os atravessam diretamente. Agradecemos a Joyce por compartilhar seu conhecimento de forma generosa e atenciosa na formação das juventudes de Geledés. Aqui fica, também, um pouco desse legado.

Joyce Prado em Geledés

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