Juristas e movimentos sociais pedem liberação do aborto no novo Código Penal

Para especialistas, descriminalização não é inconstitucional, como avaliou relator de projeto, senador Pedro Taques; mulheres organizam ciclo de debates sobre o assunto e aguardam diálogo no Congresso

por Sarah Fernandes

São Paulo – A possibilidade de dar à mulher a opção de interromper a gravidez até a 12ª semana – prevista na reforma do Código Penal e apoiada pelo Conselho Federal de Medicina – encontra barreiras no Senado. O relator da matéria, senador Pedro Taques (PDT-MT), afirmou em seu substitutivo, entregue a uma comissão especial no último dia 20, que a proposta fere o artigo 5º da Constituição, que garante direito e proteção à vida.

Juristas e movimentos sociais refutam o argumento, e defendem que a criminalização não é compatível com as leis do país. Além disso, afirmam que as informações sobre métodos contraceptivos não chegam a todos e criticam o fato de, legalmente, apenas as mulheres serem responsabilizadas pelo aborto.

“A criminalização do aborto viola diretamente princípios constitucionais e não considera o direito à vida. Isso já foi resolvido por várias cortes internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de países como Argentina, Colômbia e várias nações europeias”, afirmou o juiz de direito José Henrique Rodrigues Torres, que até maio foi presidente da Associação Juízes pela Democracia. “Se estamos falando em direito à vida estamos falando em direito à vida da mulher.”

Até 13 de setembro o substitutivo receberá novas emendas dos senadores. Pedro Taques emitirá novo parecer até o dia 27.

“A possibilidade de exclusão do aborto como crime seria inconstitucional”, afirmou o relator à Agência Senado. A RBA tentou contato com ele, mas não obteve resposta. O parlamentar, porém, manteve a proposta da Comissão Especial de Juristas, que elaborou o anteprojeto, de possibilitar aborto de feto anencéfalo – acompanhando decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tomada em 2012 –, além de em caso de estupro, quando há risco de morte da mãe ou no caso de emprego não consentido de técnicas de reprodução assistida, este último uma novidade.

“A autonomia da mulher perante seu corpo deve ser pensada a partir de uma ética da alteridade, de modo que a ponderação entre gerar uma vida e manter sua autonomia deve ser anterior à concepção, especialmente quando o nível de informação sobre os métodos contraceptivos já é suficientemente amplo (…) nesse caso, liberdade sexual rima com responsabilidade”, aponta o texto entregue pelo relator. “Não custa lembrar que a gestante não é nem será obrigada a criar o filho que gerou. A adoção é alternativa perfeitamente legítima”, continua. O relator defende que existe vida desde a concepção, e que ela deve ser protegida judicialmente.

Na Constituição
Para Torres, tratar o aborto como um crime, sujeito a punição, fere direitos constitucionais. “Não estamos conversando sobre quem é a favor ou contra. O que ocorre é que criminalização do aborto é inconsequente, produz danos e causa mortes de mulheres”, avalia. “Estamos falando em salvar vidas e em encontrar formas para evitar o abortamento fora do sistema penal. Nos países que liberaram o aborto as mulheres são acolhidas, têm atendimento e com isso muitas desistem e acabam tendo a gestação.”

Ele afirma que a criminalização do aborto fere o princípio constitucional da racionalidade, segundo o qual somente se justifica esse tipo de determinação para uma conduta se os danos produzidos não se mostrarem maiores que os danos da própria conduta. “A criminalização está produzindo mais danos que o aborto e isso viola o principio da racionalidade. São milhares e milhares de mulheres que sofrem danos à saúde, à sua vida social e ao seu psicológico.”

O Ministério da Saúde estima que ocorram, por ano, pelo menos um milhão de abortos, a quinta causa de mortalidade materna no país. Entre janeiro e novembro do ano passado foram feitas 173.960 curetagens no Sistema Único de Saúde (SUS) – procedimento realizado após aborto espontâneo ou provocado, sendo o terceiro procedimento obstétrico mais praticado no país. Entre 2007 e 2012, 936.291 mulheres foram internadas no SUS por complicações em abortos.

“No Brasil, evidentemente, a criminalização tem sido pífia, não tem impedido a realização dos abortos. Então, se a criminalização é adotada para combater o aborto e proteger a vida dos fetos, isso tem sido totalmente ineficaz”, diz Torres. Este fato, segundo ele, fere o princípio constitucional da racionalidade, segundo o qual criminalização só se justifica se ela for útil para resolver o problema a que se propõe.

Outro princípio constitucional infringido pela criminalização do aborto, segundo o jurista, é o de subsidiariedade, que garante que uma conduta só pode ser criminalizada se não houver outra alternativa. “O direito penal, por suas consequências drásticas, só deve ser utilizado quando for a última alternativa. Infelizmente no caso do abortamento tem sido a primeira prática”, afirma. “Há outras maneiras de se evitar o abortamento fora do sistema penal, como acolhimento, orientação e controle da gestação indesejada.”

A coordenadora do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, Rosangela Talib, concorda. Para ela, o parecer do senador Pedro Taques é um “retrocesso” e “não aceita autonomia da mulher na decisão”. “O que a gente tem visto é que essa legislação punitiva tem levado as mulheres à clandestinidade, e não a não fazer o aborto”, diz. “A gente ainda tem uma discussão bastante grande em relação à autonomia da mulher. O abortamento ainda é visto como um crime e enquanto estivermos colocando a questão nesse patamar não vamos conseguir avançar.”

O movimento pede que o Congresso Nacional amplie o debate sobre o tema. Na última semana o coletivo deu início a calendário de um mês de debates sobre o tema, em São Paulo, que prevê esclarecer as mulheres sobre as reformas no Código Penal e sobre o Estatuto do Nascituro, projeto de lei que prevê que o aborto seja proibido em qualquer circunstância. A programação completa está divulgada na página do movimento no Facebook.

“A maternidade não é vista como algo que deve ser desejado. É vista como um simples fator biológico e não leva em consideração o íntimo e o psicológico da mulher, como a possibilidade de ela ter esse filho, o fato de ela estar sozinha e a vontade de ser mãe”, diz. “A maternidade ainda é de responsabilidade da mulher, e não do seu parceiro, que muitas vezes abandona a parceira. Não se pode responsabilizar só a mulher. Não engravidamos sozinhas.”

Ela também rejeita o argumento de que há informações disponíveis sobre prevenção e métodos contraceptivos. “Isso é uma falácia. Uma vez fui dar uma oficina em São Paulo e conheci dois adolescentes que iniciaram sua vida sexual e se preveniam com contraceptivo oral. Mas ela tomava um e o namorado tomava outro. As pessoas não sabem. Não sabem como funciona o seu corpo e não podem se prevenir.”

Fonte: Rede Brasil Atual

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