Kahn, a camareira e o direito feudal – MARIO VARGAS LLOSA

Quando jovenzinho, nos anos 50, muitas vezes ouvi meus companheiros de bairro e de escola se gabarem de ter se desvirginado com as empregadas de sua casa. O diziam utilizando uma expressão que sintetizava todo o racismo, o machismo e a brutalidade de uma classe social que, naquela época, ainda eram exibidos sem o menor acanhamento no Peru: “Tirar-se a la chola” (traçar a empregada). Os meninos de boa família não faziam amor com suas namoradas, que deviam chegar virgens ao casamento. Para seus ardores sexuais, escolhiam entre a prostituta e a criada.

O direito da primeira noite é antiquíssimo e os senhores feudais da Idade Média europeia o legaram aos senhores e patrões sul-americanos. Mas estão enganados os que acreditam que essas violências sexuais de fortes e poderosos cavalheiros contra mulheres pobres e desvalidas limitavam-se ao mundo do subdesenvolvimento. A truculenta odisseia vivida por Dominique Strauss-Kahn parece demonstrar que na civilizada França há senhores que, desafiando os tempos atuais, costumam perpetrar a sinistra tradição.

Se a acusação à qual Strauss-Kahn deve responder perante a mais alta corte do Estado de Nova York for aceita pelos juízes, ficará claro que ele praticava o direito da primeira noite segundo o antigo hábito, com o acréscimo de pancadas e maus tratos à sua vítima. Os médicos que examinaram a camareira da Guiné, que denunciou o político francês por tê-la obrigado a praticar sexo oral com ele, detectaram que ela estava com um ligamento do ombro rompido, hematomas na vagina e as meias rasgadas. A polícia, por sua vez, comprovou a existência, tanto na parede quanto no tapete do quarto, de sêmen que a camareira afirma ter cuspido, enojada, logo depois que o suposto autor do crime ejaculou. Esses são fatos objetivos e a Justiça deverá determinar se o sexo oral foi forçado, como ela declara, ou consensual, como diz Strauss-Kahn.

Mentiras. Como foi comprovado que a camareira mentiu para a polícia sobre seu ingresso nos Estados Unidos – é uma imigrante ilegal – e teve uma conversa com um homem preso por tráfico de drogas, para quem se gabara de querer tirar dinheiro de seu suposto estuprador aproveitando-se do ocorrido, comenta-se que a acusação já não convence, e o próprio promotor de Nova York estaria pensando em arquivar o caso.

Isso provocou, na França, onde me encontro agora, a publicação de muitos artigos e declarações de amigos e colegas favoráveis ao ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Encabeçados por Bernard-Henri Lévy, atacam ferozmente a Justiça americana por ter mostrado à imprensa Strauss-Kahn algemado e humilhado, em vez de respeitar sua privacidade e sua condição de mero acusado, não de culpado. Tem-se a impressão de que ele é um tipo de mártir e mereceria desagravo.

Repulsa. Na minha opinião, entretanto, o personagem é repulsivo. Tendo a acreditar que o que a camareira guineana afirma a respeito dele é verdade. Continuaria achando-o repulsivo mesmo se o sexo oral com o qual ele se gratificou naquela manhã nova-iorquina foi consensual. Mesmo se o tivesse solicitado com as boas maneiras, pagando por isso, teria cometido um ato covarde, prepotente e asqueroso com uma pobre mulher infinitamente mais frágil e vulnerável do que ele. Alguém que teria passado por essa pantomima por necessidade ou por medo, mas de modo algum seduzida pela posição ou a inteligência do personagem que encontrou nu no quarto que deveria arrumar. “Traçar a empregada”, com boas ou más maneiras, é um ato ignóbil e vil, principalmente quando quem o perpetra é um aristocrata, como o quase intocável Strauss-Kahn.

Não sei por que as mentiras da camareira atenuariam a falta do seu suposto estuprador. O que vai ser julgado é se ela foi ou não violada, e não se é boa, sincera e desprendida. Se o elemento determinante para que a acusação prevalecesse não fossem os dados objetivos, e sim a personalidade e o caráter, Strauss-Kahn estaria em maus lençóis.

Seus antecedentes indicam claramente que ele sempre gostou muito das mulheres, e não teve o menor problema em demonstrá-lo, usando o que os brasileiros chamam de “mão boba” nas recepções, em elevadores e corredores. Pouco tempo após assumir a direção do FMI, ele se envolveu em um caso semelhante por ter contratado uma amante entre suas subordinadas.

Agora mesmo há um processo contra ele em Paris, no qual é acusado pela jornalista e escritora Tristane Banon de ter tentado estuprá-la, em 2003, quando ela foi entrevistá-lo para um livro. A jornalista declara que ele a recebeu num apartamento decorado apenas com uma cama e umas poltronas e teve de se defender com pontapés e arranhões do seu entrevistado, que rasgou o sutiã e a calcinha dela enquanto lutavam no chão. Na época, Tristane quis denunciar a tentativa de estupro, mas sua mãe a impediu de fazê-lo argumentando que isso seria muito prejudicial para o Partido Socialista, no qual ela também militava.

Portanto, se há indícios negativos no que concerne ao caráter e à personalidade da camareira guineana, as credenciais morais do hóspede estão longe de serem impolutas. Esse senhor superinteligente, ultra poderoso e milionário estava acostumado a se conceder certos excessos com a convicção de que estas fraquezas são permitidas a alguém como ele, assim como o direito da primeira noite era permitido aos senhores feudais.

O mais terrível é que, aparentemente, um bom número de seus compatriotas concorda com ele. A indignação contra a polícia e a Justiça dos Estados Unidos por terem tratado esse homem tão importante e de tão grande prestígio como um ladrãozinho preso em flagrante é quase unânime.

Não entendo tanta indignação. Não houve exagero no tratamento de Strauss-Kahn. Mas ele tampouco teve um tratamento preferencial por desempenhar um alto cargo no mundo financeiro. Pelo que leio em Paris, em seu país ele seria perdoado. Já a camareira seria expulsa por ser por ser imigrante ilegal e praticar a prostituição.

 

MARIO VARGAS LLOSA É GANHADOR DO NOBEL DE LITERATURA

/ TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

Fonte: ArquivoETC

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