Letramento racial é um conceito potente que convoca à reflexão e exige posicionamento teórico e prático. Por isso mesmo, antes de entrar na discussão desse tema, convido o leitor a um pequeno recuo para relembrar a noção de letramento ou, melhor dizendo, letramentos. Sabemos hoje que ler e escrever são práticas sociais que implicam, para além de compreender uma língua e seu funcionamento, a necessidade de entender como serão usadas a leitura e a escrita, os contextos dessas práticas e como os sujeitos serão afetados por essas experiências, que serão tão múltiplas como as pessoas e os percursos por elas realizados.
Por Neide A.de Almeida Do Fundação Tide Setubal
Assim, é óbvio que para formar leitores é fundamental ter contato com livros, com produções escritas diversas, experimentar múltiplas situações que envolvam a leitura, conhecer diferentes gêneros de textos, ler sobre muitos temas a partir de variadas perspectivas. O mesmo vale para a escrita. O conceito de letramento supõe, portanto, uma dimensão política. Afinal, se não há neutralidade nas práticas de ensino, ao decidir o que ensinar e como atuar nesse processo, poderemos nos comprometer com a legitimação ou com a transformação dos nossos currículos, dos livros didáticos, do que constitui e como são organizadas nossas escolas, bibliotecas, museus. Em síntese, é preciso implementar outras perspectivas, construir novas formas de olhar, de entender e de significar nossa história e nossas identidades.
Você já ouviu falar em letramento racial? Sabe o que é e como se faz? Esse conceito remete à racialização das relações, ou seja, o estabelecimento arbitrário de direitos e lugares hierarquicamente diferentes para brancos e não-brancos, que legitima uma pretensa supremacia do branco. Portanto, o racismo pode (e precisa) ser desconstruído, combatido, o que implica necessariamente lutar para que todos sejam efetivamente reconhecidos como cidadãos e que tenham de fato seus direitos garantidos.
Como nos diz a psicóloga e pesquisadora Lia Vainer Schuman, o letramento racial está relacionado principalmente com a necessidade de desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas. Se não admitirmos que nossa sociedade é organizada a partir de uma perspectiva eurocêntrica e orientada pela lógica do privilégio do branco, trabalharemos com uma falsa e insustentável ideia de igualdade, porque o racismo é estrutural e institucional.
É comum ainda hoje ouvir que o racismo não existe mais, que foi superado. Sabemos que essa afirmação não se sustenta. São cotidianos os casos de racismo: homens, mulheres e crianças negras abordadas por serem consideradas “suspeitas”; empresas, escolas, equipamentos culturais, restaurantes em que raramente se registra a presença de pessoas negras que não estejam ali como empregados, seguranças, prestadores de serviços. Em um país em que a maioria é “preta ou parda”, onde estão os médicos, escritores, engenheiros, advogados negros?
É preciso compreender como o racismo é construído e mantido, política e ideologicamente. Para isso, é essencial conhecer a história dos diferentes povos que estão na origem de nossa sociedade e de nossas identidades. A maioria de nós estuda ou estudou a história europeia, antiga, medieval, moderna e contemporânea. Mas quanto espaço tivemos para estudar a história da África, de nossos antepassados que vieram desse continente, a partir das perspectivas de autores negros? O discurso nos constitui e uma das formas mais poderosas de sustentação e manutenção do racismo é a pretensa “transparência”, a neutralidade da linguagem e da história. Em boa parte, é por meio da linguagem que o racismo se mantém e se perpetua de modo aparentemente “invisível”. Para evitar confrontos, é comum a tentativa de amenizar ou mesmo negar manifestações racistas, sobretudo aquelas que se dão de formas veladas, como, por exemplo, no modo de pronunciar uma expressão, na ironia, num falso e perigoso jogo de palavras.
Há sérios problemas no olhar de uma sociedade que identifica, classifica e discrimina as pessoas a partir de determinados códigos e práticas pautados pelo racismo. Quantas pessoas negras famosas na arte ou ciências você conhece? Por que será que pouco se sabe a respeito da história e da atuação de homens e mulheres negros na construção do nosso país? Há por trás desses silêncios um pressuposto de que a cor da pele determina funções e lugares a serem ocupados.
Como já dissemos, o combate ao racismo exige posicionamentos firmes e ações contundentes de negros e de brancos. É preciso:
1. questionar a forma como nossa sociedade está estruturada, como são ocupados os lugares de poder;
2.refletir sobre o papel das ações afirmativas, como as cotas, por exemplo;
3. reconhecer os efeitos provocados pelo fato de nossa história ser ensinada quase exclusivamente a partir da perspectiva eurocêntrica;
4. implementar práticas que tenham como referência importantes reflexões e ações comprometidas em apresentar nossa história a partir da perspectiva de quem efetivamente a construiu;
5. admitir que em nossa sociedade normalmente os discursos e as práticas insistem em que “o natural” é ser branco . Embora sejamos a maioria da população, nós, negros e negras, somos ainda hoje referidos como “minoria”. Esse é um dos motivos pelos quais as ações afirmativas são tão importantes para transformar nossa sociedade. Reafirmar a negritude, reivindicar respeito às nossas heranças africanas é atuar na transformação das relações raciais.
Nesse contexto, a escola, por exemplo, cumpre um papel importante não só na relação com os estudantes, familiares, comunidades, mas também na que tem com os demais equipamentos de educação e cultura e com os diversos fóruns de participação de docentes e gestores ligados às Secretarias, aos Ministérios. Ficam, portanto, algumas provocações, que são, na verdade, sugestões, propostas para atuar no combate ao racismo:
1. É fundamental que as escolas se comprometam com a implementação da Lei n° 10.639/03 e a 11.645/08, abordando a história e as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas de forma orgânica e sistemática. As ações em datas específicas, como o 20 de novembro, são importantes, mas insuficientes. Essas temáticas precisam ser incluídas em todas as esferas da vida escolar.
2. Admitindo que o racismo é questão atual, os currículos têm de ser discutidos e atualizados de modo que coloquem perspectivas negras em evidência. É preciso incluir autores que representem a perspectiva africana e afro-brasileira nas diferentes áreas de conhecimento. É urgente também ler sobre distribuição de renda, escolaridade, moradia da população negra. Perceber que as identidades raciais são construídas e conhecer a História são ações fundamentais para enfrentar o racismo e preconceito.
3. Como professores e gestores lidam com as manifestações racistas que ocorrem no espaço escolar? Elas são explicitadas? Discutidas? A escola investe na formação de seus docentes para a abordagem das relações étnico-raciais? Embora ainda insuficientes há, hoje, importantes ações, pesquisas e materiais a respeito dessa temática. E eles precisam integrar os referenciais para toda ação docente.
4 . Cabe à escola apresentar aos estudantes a diversidade não apenas de textos, de temas, mas também de concepções de mundo, de modos de fazer e dizer. Assim, é fundamental que as escolas se perguntem a respeito da presença e da representatividade de autores e intelectuais negros em suas bibliotecas. Qual o lugar destinado às práticas de oralidade, tão importantes para os povos africanos e para nós, brasileiros? No cotidiano, no trabalho com a literatura, por exemplo, quantos livros de autores e autoras negras são apresentados aos alunos? Quais são as oportunidades proporcionadas para o contato com as personagens negras criadas por esses escritores e escritoras?
Assim, damos voz à nossa história e legitimamos os espaços para as “letras pretas” que estão hoje nas escolas, nas universidades, nas livrarias, nos diversos espaços culturais nas periferias, nos saraus nos festivais de livros e de literatura. Nossas “poéticas de corpo e de liberdade” têm como principais interlocutores crianças, jovens, homens e mulheres negras, mas se destinam a todos os leitores e leitoras, porque combater o racismo é um desafio para todos nós, negros e não negros.
Neide A. de Almeida– Socióloga, Mestre em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, pela PUC-SP, pesquisadora, docente e consultora na área de leitura e literatura. Atualmente coordena o Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil.