Linchamentos: Blade Runner e o futuro que é aqui

No filme, seres não desejados precisam ser exterminados a qualquer custo. Qualquer semelhança com o Brasil contemporâneo não é mera coincidência.

Murilo Cleto* no Carta Maior

Imagine um futuro em que a cidade é um caos absoluto. Em que, de tão superlotadas, é impossível caminhar pelas vielas sem esbarrar em alguém que não se faz ideia quem. Um futuro em que a imaginação das pessoas é completamente colonizada pelos outdoors, que são tantos a ponto de precisarem dos prédios pra que caibam na paisagem.
Imagine um futuro em que o desenvolvimento tecnológico sobrepôs-se ao próprio homem, que agora luta pra minimizar os seus efeitos colaterais. Imagine que neste futuro há seres idênticos aos humanos, mas que deram errado e que precisam ser exterminados.

Criados para executar tarefas árduas ou para servir como escravos ou soldados, os replicantes suportam a dor e desconhecem o medo. Alguns recebem até implantes de memória, que simulam experiências e estimulam sensações humanas, o que torna cada vez mais difícil a tarefa de distingui-los dos seres humanos verdadeiros.

Este é o futuro que, em 1982, Ridley Scott projetou para 2019 em Blade Runner. 3 anos antes, o Brasil contemporâneo caminha a passos largos rumo à realização de uma distopia que soa profética diante do cenário: ao todo, 50 mil pessoas são assassinadas por ano no país. Mas, assim como na ficção, nem todas têm o mesmo valor.

Em Blade Runner, a execução de replicantes tem um nome próprio: remoção. É o que distingue a sua morte das demais, as que têm valor. À luz do dia e sob o olhar inabalável das pessoas que circulam, os replicantes são removidos como mais uma das obrigações do cotidiano. No Brasil que não é ficção, também há um eufemismo que caracteriza a eliminação daqueles que, como os replicantes, têm a existência proibida na Terra: justiçamento.

O Brasil é o país que mais pratica justiçamentos no mundo. José de Souza Martins, autor de Linchamentos: a justiça popular no Brasil, estima que um milhão de brasileiros participaram de linchamentos num período de 60 anos. Casos como o de Cleidenilson Pereira Silva, espancado até a morte na última segunda-feira, no Maranhão, estão longe de ser exceção. Negro, pobre e sem passagens pela polícia, Cleidenilson foi removido como dita a tendência nestes casos: elimina-se quem já é considerado, de antemão, exterminável.

E essa não é uma suposição aleatória que parte da internet entende como “vitimismo”. É conclusão da dissertação de Mestrado de Ariadne Lima Natal, que estudou particularmente os casos de linchamento entre 1980 e 2009 na região metropolitana de São Paulo. Não é a modalidade de crime que estimula o justiçamento, mas a condição de quem o pratica. É por isso quase não se vêem justiçamentos com brancos de classe média, não importa as atrocidades que tenham cometido.

linchamento-maranhao

Há boas explicações pra que a morte de Cleidenilson tenha ocorrido como nas caçadas eletrizantes do agente Deckard na obra de Scott: 77% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Graças a esse índice, aliás, a expectativa de vida de um negro ao nascer no país é 1,7 anos menor do que a de um branco. Um jovem negro tem 3,7 mais chances de ser assassinado. É este o cenário que ajuda a converter o assassinato de Cleidenilson, que não é considerado tão humano quanto os outros, numa remoção.

No auge do choque de civilizações, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov cravou que “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros”. E, de alguma forma, é ele, o medo, que serve não apenas de impulso, mas de álibi pros justiçamentos modernos. Convertido em insegurança, o medo é uma máquina de matar. Só na primeira metade de 2014, foram registrados 50 casos de linchamentos no Brasil. A lógica, anunciada pelos comentaristas que vibram com o feito, é simples: já que o Estado não cumpre o seu papel, cabe ao povo que o faça. Diante da histórica capa em que comparava o linchamento de Cleidenilson ao açoite no Brasil escravista, 71% dos comentários na página do jornal Extra foram francamente favoráveis à atitude dos justiceiros.

Sem quaisquer restrições de horário e conteúdo, os programas policialescos brasileiros multiplicam a noção de um Estado ausente e naturalizam a caçada dos replicantes da vida real: seres não tão humanos quanto os outros que podem ser exterminados com transmissão ao vivo durante o jantar. Há pouco mais de um mês, as imagens de um repórter que flagrou o fim de uma perseguição policial em Sergipe rodaram o mundo num espetáculo tragicômico sintomático: “16 anos os dois. Aqui tem mais outro. Vamos saber mais dele aqui também. Você tem quantos anos?”, perguntou a um menino com o rosto virado pro asfalto. Como ele não respondeu, insistiu cutucando as suas costas com o dedo. Novamente o silêncio, só interrompido pelas risadas do jornalista, que voltou a se comunicar com o estúdio: “Esse aqui parece que tá ferido. Esse aqui, Bareta, por incrível que pareça fui entrevistar um cara que já tá morto. Tá aqui, esse morreu. Tá aqui, morreu aqui agora. A gente não tem ainda a documentação dele pra saber se é menor ou maior”. Quando reassume, o apresentador Bareta sentencia: “Eu sou a favor de um paredão. E aquela justiça de prrrrrrrrrrrrrrrrrr. Pá Pá Pá. Caiu tudo. Paga a bala, viu. Enterra os bichinhos lá. Até logo”.

No último dia 23, Band e Record transmitiram ao vivo a tentativa de execução de dois suspeitos que fugiam de moto e perderam o equilíbrio, caindo numa calçada qualquer de São Paulo. O policial não teve dúvidas: atirou à queima-roupa nos dois, que só não morreram na hora por um milagre. Antes de justificar a ação oficial, o apresentador Marcelo Rezende criticava o prefeito Fernando Haddad por multar os carros da PM por excesso de velocidade. Afinal, o peso dessas vidas não é o mesmo das outras. E, neste caso, a remoção é um mal necessário. Nas redes, a prisão do policial militar autor dos disparos gerou protestos. Uma montagem na página do deputado Jair Bolsonaro no Facebook que reproduz a cena aponta com uma flecha para os “vagabundos” caídos no chão e com outra para o “herói” que remove, denunciando a “inversão de valores” promovida pelos Direitos Humanos. Resultado: mais de 125 mil curtidas e 98 mil compartilhamentos.

Com 30 anos da mais nova experiência democrática no Brasil, a paranoia que se alimenta dos mais íntimos preconceitos e a naturalização da morte dos indesejáveis é o que se conseguiu produzir de debate em torno da segurança pública. E não é possível dizer que ninguém avisou.

Ao final da caçada em Blade Runner, o recado do replicante Roy Batty ao combalido Deckard parece ter sido escrito hoje mesmo e não somente pra ele: “Viver com medo é uma experiência e tanto, não? Isso é o que é ser um escravo”.


*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural e mestre em Cultura e Sociedade. Atua como coordenador municipal de Cultura de Itararé-SP e professor no Colégio Objetivo e no curso de História das Faculdades Integradas de Itararé. Escreve às segundas-feiras no blog Desafinado: http://desafinado-blog.blogspot.com.br

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