Este ideal romântico que ajudou à imagem externa de Portugal a partir da década de cinquenta do século passado, é um verdadeiro problema quando, na sociedade portuguesa atual, confrontados com uma desigualdade persistente entre afrodescendentes e comunidade maioritária, tentamos construir uma resposta política que desconstrua os estereótipos e que aposte na igualdade de direitos e de oportunidades para as pessoas afrodescendentes
por Catarina Marcelino no Visão Sapo
O Estado Novo é um dos factos mais marcantes da nossa História, sendo responsável por um conjunto de representações socioculturais integradas na nossa perceção e na nossa visão retrospetiva que define, hoje, o nosso eu coletivo.
Uma destas ideias, que se transformou em narrativa, e que subsiste até hoje, é a ideia que a nossa colonização foi menos má que a dos os outros. A esta tese de Gilberto Freyre que defende que os portugueses colonizadores tinham uma capacidade muito particular de adaptação a estes novos contextos socioculturais, caracterizada pela empatia, pela inclusão, pela interculturalidade, chama-se lusotropicalismo.
Este ideal romântico que ajudou à imagem externa de Portugal a partir da década de cinquenta do século passado, é um verdadeiro problema quando, na sociedade portuguesa atual, confrontados com uma desigualdade persistente entre afrodescendentes e comunidade maioritária, marcada por um racismo que vem da visão colonial do que são as pessoas negras e as pessoas brancas, tentamos construir uma resposta política que desconstrua os estereótipos e que aposte na igualdade de direitos e de oportunidades para as pessoas afrodescendentes.
Posso dar diferentes exemplos que marcam a atualidade com alguns picos de particular violência, como aconteceu com Nicol Quinayas no Porto, ou no processo que está a decorrer contra os polícias da Esquadra de Alfragide ou ainda o caso da Discoteca Urban Beach.
De facto, o lusotropicalismo é uma narrativa simpática, mas que não corresponde a uma realidade efetiva. O problema não está na teoria nem sequer nos factos históricos, como a escravatura entre os séculos XV e XIX, ou os massacres como o de Batepá em São Tomé e Príncipe em 1953, ou o de Pidjiguiti na Guiné Bissau em 1959 ou os do norte de Angola em 1961, que num primeiro momento foi contra colonos brancos, porque são isso mesmo, factos históricos.
O Problema está na forma como esta narrativa e toda esta realidade se conjugam na sociedade portuguesa do século XXI na qual, grande parte da diversidade étnico-racial se faz de pessoas que são afrodescendentes, muitas delas nascidas em Portugal, muitas com nacionalidade portuguesa, descendentes na sua larga maioria destes territórios colonizados, que hoje continuam a viver numa sociedade que não olha para elas como iguais.
Basta irmos a Bairros Sociais da área metropolitana de Lisboa para sermos confrontados com a segregação. As pessoas que vivem naqueles territórios vivem à parte, em comunidades que não se integram e cujo modelo de inclusão adotado tem sido pouco eficaz. Estas pessoas não vivem na cidade, vivem no bairro, num território de que se apropriaram e onde têm uma vivência cultural e social fruto da diáspora ou de alguma coisa que foram criando de novo que não é lá nem é cá, mas que não se traduz em inclusão.
Ao fazermos uma visita à Assembleia da República em dia de sessão plenária, olhamos para o hemiciclo e só há um deputado negro do CDS/PP. Mas também nos municípios da região de Lisboa em concelhos como Sintra, Amadora, Cascais, Loures, Almada ou Seixal, os executivos municipais não têm representatividade étnico-racial. É verdade que o atual Governo tem na sua composição um Primeiro-ministro e um Secretário de Estado de origem Indiana, uma Ministra Afrodescendente, um Secretário de Estado cigano e uma Secretária de Estado invisual sendo um marco de diversidade que devemos destacar, mas não deixa de também ser verdade que os Partidos políticos reproduzem um modelo social que não integra a diversidade, não permitindo que a voz destes cidadãos e cidadãs influencie os temas e as prioridades da agenda política.
Também nas universidades, nos altos quadros da Administração Pública, nos lugares de decisão das empresas, entre as pessoas qualificadas no mercado de trabalho, o número de afrodescendentes é residual. Posso ainda falar das prisões onde a percentagem de pessoas negras em proporção às pessoas brancas, tendo em conta a sua representatividade social, é muitíssimo elevada.
É preciso assumir sem demora e sem dramas esta agenda contra o racismo. O primeiro passo a ser dado é conhecer objetivamente a realidade e integrar nos próximos censos a questão étnico-racial. Por outro lado, é necessário integrar este tema na agenda política e assumir que há racismo no nosso país e que este fenómeno contamina toda a sociedade incluindo as instituições.
Nós somos um país, tal como os outros países que foram colonizadores, como a França, o Reino Unido ou a Holanda, com problemas estruturais de racismo que têm uma construção histórica que precisa de ser enfrentada para que possamos incluir esta diversidade, que é positiva e de que nos devemos orgulhar, não pelo lusotropicalismo, mas pela riqueza cultural que nos afirma enquanto nação democrática com uma Constituição que afirma os Direitos Humanos e a Igualdade.