Luta pela saúde pública passa pelo combate ao racismo

Sandra Martins*

Discutir o racismo como uma das principais causas da desigualdade no tratamento entre brasileiros, comprometendo a saúde e a vida de mais da metade da sociedade, foi o mote da conferência Saúde da população negra em debate: uma política do SUS, realizada no dia 23/11, no salão internacional da Escola. A existência de uma política específica para a população negra é evidência dessa questão e busca corrigir as distorções que impedem um tratamento igualitário de negros e negras. “Sendo assim, não temos uma vida tão saudável porque o racismo não permite. Adoecemos mais e, com maior gravidade, assim como morremos mais. Para nós, tem sido mais difícil diagnosticar, tratar, prevenir e promover a saúde. É isso que aborda a política relacionada à saúde da população negra: o racismo faz mal à saúde para quem é vítima do racismo”, disse Jurema Werneck, da ONG Criola, durante o encontro.

A conferência teve como cenário o Ano Internacional dos Afrodescendentes e o Dia da Consciência Negra e apoiou a Mobilização Pró-Saúde da População Negra. Estimular a discussão sobre a importância de políticas públicas que contemplem a população de afrodescendentes, incluindo a sua saúde, foi a proposta do evento, organizado pela Assessoria de Cooperação Social da ENSP e que contou com as presenças de Isabel Cruz, do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (Nesen/UFF) e membro titular do Comitê Nacional de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde, e de Jurema Werneck, coordenadora da ONG Criola e do Conselho Nacional de Saúde.

Ao longo da construção de políticas públicas no campo da saúde, desde a instalação das Santas Casas de Misericórdia, em 1582, até a criação do Sistema Único de Saúde, em 1990, persiste o problema de parcela considerável da sociedade brasileira ainda não ser contemplada de forma digna: “Por várias razões ainda não se consegue proteger, prevenir, tratar a população negra. Daí termos criado o Programa Saúde da População Negra, para ajudar o SUS a melhorar”, disse Jurema Werneck, ao alertar que essa não é a única proposta para a melhoria do SUS e, sim, mais uma delas.

Jurema observou que muitos conhecimentos presentes no nosso cotidiano vieram através dos africanos escravizados e traficados para o solo brasileiro e foram preservados através da memória do espaço religioso. “Diferentes técnicas de promoção da saúde, que incluíam o conceito de lutar pela sua preservação e por um futuro, apesar das condições adversas, faziam parte do conceito de saúde dessa população e foram oferecidos à cultura brasileira. A preservação dessa memória foi fundamental para a nossa saúde, pois com ela veio o uso de plantas (chás, banhos, infusões), de minerais (pedras, cristais) etc.”.

Entre outras técnicas para recuperar o equilíbrio e a rigidez da saúde podiam ser contabilizadas as rezas, as danças, a comida, o jogo de búzios e de cartas como técnicas de diagnóstico – quer gostem ou não. “Hoje em dia temos essa guerra religiosa, que não é religiosa, é étnica – de gente atacando outras pessoas porque são diferentes. Mas antes dessa guerra, todos, independentemente de suas origens religiosas, culturais e como povo, todos se beneficiaram e se beneficiam até hoje dessa história. Mas temos que lembrar que esse saber veio dali, e foi preservado nos espaços religiosos”, afirma Jurema.

A luta pela política de saúde no Brasil inclui essa memória, ou pelo menos deveria, segundo Jurema Werneck, “o que significaria a inclusão de um olhar mais apurado para essa população negra sempre aviltada”. Mas para que tais preocupações entrassem na agenda nacional, grupos organizados em prol da questão racial, denominados de Movimento Negro, tiveram que se manter mobilizados e construir uma pauta comum de reivindicações: a derrubada do mito da democracia racial e a denúncia do racismo; a produção de dados qualitativos e quantitativos sobre impactos do racismo na saúde; boas práticas de equidade racial em saúde no Brasil e no mundo; criação do conceito de saúde da população negra (“longe da academia, que não aceitavam os dados apresentados pelos pesquisadores que tinham essa preocupação”); a defesa e elaboração preliminar de proposta de política nacional; a instituição da política; e o monitoramento da implementação.

O conceito de saúde da população negra está baseado em três pilares: racismo – presente nas relações sociais, nas instituições e nas políticas públicas; disparidades – diferenças na incidência, prevalência, mortalidade, carga de doenças e outras condições de saúde adversas; e cultura afro-brasileira – processos de diagnóstico, alívio e cura que devem ser conhecidos e valorizados. Segundo Jurema, para falar em saúde da população negra esses três aspectos devem ser considerados, caso contrário, nada irá mudar. “O racismo continua de variadas formas e todo mundo sabe.”

Apesar de o Conselho Nacional de Saúde ter aprovado a Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra em 2006, ela não foi posta em prática: faltou o pacto entre o Ministério da Saúde e as secretarias de Saúde dos estados e municípios, acordo que saiu em 2008; faltou a publicação da portaria (992), que saiu em 2009; e, mesmo assim, sua implementação precisou de uma lei federal, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 20/07/2010). Essa legislação contempla a discussão da política da saúde da população negra. O problema, segundo a médica e ativista, não foi resolvido, mas agora existe a Lei, “que serve para esfregar na cara de quem não está cumprindo a lei”.

As resistências são grandes para a implementação da política em todas as instâncias governamentais que não enfrentam um aspecto importante, que é o racismo institucional, a ser combatido inclusive na formação do profissional de saúde. “A academia também é uma das principais fontes de resistência. Ainda continuam a produzir artigos afirmando que nós estamos inventando que a população negra morre mais,” critica a médica e ativista. “Infelizmente, a academia é um instrumento do atraso por não contribuir qualificadamente para o debate e para agilizar a consolidação da agenda do antirracismo e a implementação das políticas, como, por exemplo, a implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e Política Nacional de Doença Falciforme.”

Para o enfrentamento do racismo institucional são necessárias medidas que visem ao fortalecimento da sociedade civil por meio de suas organizações e movimentos. “A sociedade civil precisa continuar a enfrentar o racismo, que ainda não acabou, assim como precisa continuar mobilizada, participando.” Ela elogiou a iniciativa do fomento à gestão participativa por meio dos conselhos de saúde e pontuou ser fundamental a inclusão desse tema em sua pauta de debates. “O SUS precisa enfrentar o racismo institucional. A Fiocruz é parte do SUS, precisa enfrentar os ataques que o sistema vem sofrendo. O SUS é aquilo que um dia vai salvar as nossas vidas. O plano de saúde é para alguns. E quando se precisa da alta complexidade, o caminho é o SUS.”

A mediadora do encontro, Carla Moura Lima (doutoranda em Ensino em Biociências e Saúde no IOC/Fiocruz e membro do GT de Educação Popular em Saúde da Abrasco), lembrou que a academia deveria ser um lugar de produção de conhecimento sem tolhimento, mas que também existem pesquisadores engajados que sofrem penalizações, como está ocorrendo com dois pesquisadores – um da ENSP e outro da Fiocruz -, que estão sendo processados pela ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico por terem denunciado publicamente os impactos ao ambiente e aos moradores em uma área de Santa Cruz. “Nós temos exceções, sim, na academia. E espero que essa seja uma primeira provocação para a discussão da saúde da população negra aqui nesta instituição. Porque se a Fiocruz formar quadros combativos e qualificados não é pouco para a contribuição do SUS. Debates como esses são fundamentais para enriquecer a formação dos pesquisadores e profissionais da saúde. E quem ganha sempre é a população, quando se debate sobre a saúde da população negra.

Para falar sobre iniquidades e disparidades raciais em saúde, a professora titular de Enfermagem da UFF, Isabel Cruz, se utilizou dos indicadores sociais com recorte racial, que mostram o persistente abismo entre negros e brancos, discutindo o problema em relação aos gestores, políticos eleitos pela sociedade e administradores. “Eles têm a noção do coletivo e não tomam as providências para contenção dessas iniquidades, dessas disparidades. A sociedade se constitui de uma perversidade em que até as pessoas que teoricamente deveriam estar protegidas de situações adversas, por conta de sua origem, de sua condição racial, são aviltadas, mortas. Porque o olhar do discriminador vê o negro, e não uma pessoa, um ser humano, mas uma coisa que ela despreza. Assim como essa pessoa é vista também como uma ameaça ao seu poder na sociedade. Porque essa luta também é de poder.”

Refletir sobre as dimensões do racismo institucional sinaliza possibilidades de se estabelecerem estratégias para sua prevenção e seu combate. Isabel alerta que o racismo institucional é a causa principal da morbimortalidade da população negra e questiona como seria então eliminar os diferenciais raciais nos resultados do SUS. A resposta para essa pergunta não é uma tarefa fácil, muito menos de solução imediata. “Vários são os tipos de racismo: individual, das relações, de xingamentos, o racismo que está dentro da gente, que está internalizado; e o racismo institucional e o estrutural – que está no Brasil como um todo.”

No seu entendimento, o racismo deve ser conscientemente combatido e não discretamente tolerado, porque o racismo mata, mesmo por dentro. E, entre as medidas de promoção da equidade racial no SUS, ela sinaliza caminhos. Contudo, o primeiro passo é treinar o olhar para essas questões. Em seguida, analisar a necessidade de compreender a perspectiva do usuário, com a criação de manuais do SUS; criação de uma agência sobre saúde da população negra com a responsabilidade de implantação da PNSIPN (nível macro); revisão e correção de cada política, processo ou procedimento que revela iniquidade ou disparidade racial no resultado (nível macro); criar comissões para investigação de como e por que as iniquidades ou disparidades são reproduzidas (nível micro); estratégias proativas (contínuas) e não reativas; equidade racial como padrão ouro para avaliação das políticas públicas, uma vez que racismo é crime contra os Direitos Humanos.

Um caminho possível de diálogo, também uma provocação, foi apresentado por Isabel Cruz ao público presente no debate, constituído de pesquisadores, profissionais da saúde e moradores, muitos integrantes de conselhos gestores: a criação de conselhos gestores e a discussão sobre as iniquidades e desigualdades dentro do contexto em que eles estão atuando e a implantação de uma comissão de igualdade racial dentro das unidades de saúde, a exemplo da comissão de infecção hospitalar. Esse tipo de iniciativa já está em andamento no Grupo Hospitalar Conceição, uma instituição modelo também para o Ministério da Saúde, em Porto Alegre, que tem uma comissão de promoção da igualdade racial. Essa comissão é tripartite (usuário, gestor e profissional de saúde) e começou a discutir o racismo institucional e a promoção de estratégias de equidade racial, seja nas relações de poder da própria instituição, seja na relação com o usuário. “Fica aqui a sugestão da criação de uma Cepir, que pode ajudar na implementação da política de saúde da população negra.”

Outro indicativo de solução apresentado pela palestrante é a pactuação de metas diferenciadas dentro das unidades de saúde, que devem constar do planejamento. “Devemos mostrar as disparidades e dizer que queremos metas diferenciadas. Eu quero zerar as desigualdades e tem que haver propostas de ação para isso. É esse tipo de atitude (assim como o nome de uma ONG em Manguinhos, Mulheres de Atitude) que temos que ter, temos que ter homens de atitude, idosos de atitude, homossexuais de atitude, gordos de atitude, todo mundo tem que ter atitude. É chegar na mesa de negociação e dizer que quer isso e aquilo.”

Como proposta de encaminhamento do evento, Mayalu Matos, coordenadora da Assessoria de Cooperação Social da ENSP, afirmou que a campanha Pró-Saúde da População Negra durante o ano de 2012 estava sendo incluída no planejamento de trabalho da ACS/ENSP e conclamou a colaboração dos presentes para estarem juntos nessa empreitada: “Espero contar com a colaboração de vocês também, a população de Manguinhos está aqui presente, parceiros, conselheiros” e acrescentou outro ponto importante a ser incluído na agenda de trabalho que é continuar esse debate dentro da academia, da Fiocruz e da escola.

*jornalista da Cooperação Social da ENSP/Fiocruz

Fonte: Fiocruz

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