Há um ano e meio, na primeira fase da pandemia, aconteceu uma das histórias mais terríveis e sintomáticas da crise do Coronavírus no Brasil. Sarí Corte Real, uma mulher de 30 e poucos anos, rica e então primeira-dama de Tamandaré, em Pernambuco, colocou o menino Miguel Otávio, de 5 anos, no elevador do seu prédio sozinho e apertou um andar alto. Miguel saiu do nono andar, de onde caiu e morreu.
O menino, filho da então empregada doméstica da família, Mirtes Renata, tinha ido ao trabalho com a mãe porque sua escola estava fechada. No momento da queda, Mirtes passeava com o cachorro da família enquanto Sarí tomava conta de Miguel e de sua filha pequena.
Desde então, Mirtes luta por justiça. E Sarí tenta, por meio de advogados, negar seu envolvimento com a morte de Miguel.
No momento, tudo indica que a dona de casa será, sim, condenada. Não sabemos por quanto tempo e se de fato ela ficará presa, mas o Ministério Público pediu a sua condenação.
A estratégia de Sarí e sua defesa, de acordo com Mirtes, é colocar a culpa no garoto.
“Estão querendo adultizar Miguel e transformar Sarí em vítima de uma criança de cinco anos. Ela tenta também colocar a culpa na filha dela, falando que foi distraída por uma menina de três anos. Em nenhum momento ela assume a culpa. Ela joga a culpa para incapazes de fazer qualquer mal”, disse Mirtes a Universa.
Culpar a vítima é algo comum no Brasil. Mas culpar uma criança é algo raro, ou que só acontece com crianças negras. Crianças são vulneráveis e, por isso mesmo, precisam de adultos por perto que tomem conta delas.
Se uma mulher adulta está no momento sendo responsável por uma criança, ela precisa cuidar dela. E não, não tem nada que uma criança faça que justifique o maltrato. Muito menos uma displicência que leva à morte.
Mas, segundo Mirtes, a defesa afirma que Miguel “tinha um distúrbio”. Ele não tinha, mas, se tivesse, isso também jamais justificaria o crime.
Eles querem provar que o Miguel tinha algum distúrbio, mas ele não tinha. Ainda chamaram um médico ou psicólogo para falar que atendia o Miguel, o que não era verdade. No depoimento, ele caiu em tanta contradição que o juiz disse para ele sair da sala.
“O Miguel fazia acompanhamento psicológico para lidar melhor com a minha separação do pai dele. Levei ao psicólogo porque ele estava muito triste. E agora ela está usando isso! Mas Miguel era uma criança educada!”, desabafa a mãe.
Essa estratégia, como Mirtes mesmo lembrou, é ligada a antigos mitos racistas, que existem desde o Brasil colonial. A mulher branca, a sinhá daqueles tempos, era vista como uma pessoa ingênua e frágil. Praticamente uma criança. Já as crianças negras, bem, elas faziam trabalho escravo, tinham suas infâncias roubadas e eram vistas como “maliciosas”.
“Tratam criança negra como forte, como um ser que sabe se virar. Isso é racismo e me machuca muito. Querem transformar Miguel num monstro e Sarí em uma santa”, diz Mirtes
O caso Miguel é uma prova de que esses mitos racistas ainda estão vivos. E Sarí Corte Real, pertencente à elite pernambucana, é a prova disso.
A “coitada” não seria capaz de controlar crianças. De tão delicada, Sarí teria ficado sem saber o que fazer em uma situação de estresse causada por crianças pequenas, afinal, ela tinha que fazer as unhas.
Sim, no momento do ocorrido, ela cuidava das unhas, tal qual uma sinhá do tempo colonial, que “precisa ser cuidada”. É revoltante.