Mais de 700 obras de arte afro-brasileiras serão repatriadas dos EUA para o Muncab, de Salvador, em 2025

Peças foram reunidas durante três décadas de viagens ao Brasil por duas colecionadoras americanas

José Adário tinha 11 anos quando, no final dos anos 1950, começou a aprender com um mestre o ofício ao qual dedicou sua vida e que levou sua obra a lugares então impensáveis: galerias de arte e ao exterior. Esse brasileiro de 77 anos é um ferreiro de santos. Ou seja, forja esculturas de ferro e instrumentos de percussão que fazem a mediação entre os devotos e os orixás do candomblé. O artista está encantado que 16 de suas obras façam parte da maior repatriação de arte afro-brasileira, que prevê o retorno de uma coleção de 727 obras de Detroit (EUA) para Salvador. As colecionadoras e doadoras, duas octogenárias americanas que também dedicaram suas vidas à arte, e o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) são os grandes artífices da operação.

Alguns dos cerca de cem autores das obras doadas vivem e poderão participar do evento. Um deles, Adário, o ferreiro, conhecido como Zé Diabo considera “um mérito [que as obras retornem] porque esse é o museu mais belo de Salvador. Estava fechado há muito tempo, reabriu e isso é bom para a Bahia”, diz em mensagem de áudio. A chegada das obras revolucionará o Muncab pelo volume da coleção, que reúne esculturas em ferro e madeira, pinturas, gravuras, objetos religiosos e folclóricos…

“Sol da Bahia, Revolta dos Malês”, obra que será repatriada e irá para o acervo do Muncab – Con/Vida

Peças reunidas durante três décadas de viagens ao Brasil por Marion Jackson, de 83 anos, professora emérita de História da Arte da Universidade de Michigan, e por sua colega de faculdade, Barbara Cervenka, de 85 anos, artista e monja dominicana, em incontáveis visitas a mercados e estúdios de artistas. Obras frequentemente criadas por artistas autodidatas e, na época, consideradas mera arte popular por um cânone limitado às escolas europeia e norte-americana.

A primeira viagem das americanas ao Brasil foi em 1992. “Abrimos os olhos para uma riqueza artística que nos deslumbrou”, explica Jackson de Detroit em uma entrevista. “Voltamos todos os anos, às vezes por vários meses, visitávamos artistas, começamos a comprar peças que refletiam essa mestiçagem de culturas, da primeira capital colonial, o coração da influência africana na América do Sul, os indígenas, ou peças e vestimentas que falavam das tradições espirituais que chegaram com a população escravizada.” A especialista conta que, como retornavam a cada ano, estabeleceram relações enriquecedoras com os artistas. “Não chegamos lá sabendo, chegamos perguntando”.

Para Jackson, o cânone sempre foi insuficiente. Ela conta que começou a explorar a arte afro-americana, após anos estudando a arte dos nativos americanos no ártico canadense, quando se deparou com um dado que a deixou atônita. Daí nasceu seu desejo de conhecer o Brasil e mergulhar em sua cultura. Como diz o catálogo de uma das exposições que organizaram ao longo dos anos, “Quantos americanos sabem que dez vezes mais africanos foram trazidos cativos ao Brasil do que aos Estados Unidos?”. De fato, chegaram aos EUA cerca de meio milhão de escravos africanos; ao Brasil, cinco milhões, segundo a Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos.

A diretora artística do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, Jamile Coelho, de 34 anos, explica, em entrevista, que a coleção que se preparam para receber inclui “obras raras que precisam ser melhor investigadas. E, a partir do conjunto, poderemos construir uma reflexão teórica sobre a arte da diáspora africana”. A ideia é que a instituição tenha a custódia dessas peças, mas que elas estejam disponíveis para outros museus e curadores, para que circulem por outras regiões brasileiras e países ibero-americanos, incluindo a Espanha.

A repatriação, agora em fase de negociação dos detalhes técnicos, está prevista para o segundo semestre de 2025. Isso ocorre no contexto do crescente debate sobre o legado do colonialismo e como reparar o legado do espólio. Em um momento em que muitos museus do Ocidente estão reavaliando suas coleções para incorporar as perspectivas de quem foi excluído do estreito mundo dos homens brancos ocidentais.

O Brasil recebeu restituições recentes, como o manto indígena tupinambá devolvido pela Dinamarca, o Ubirajara jubatus e o milhar de fósseis que o acompanharam desde a Alemanha, ou centenas de obras indígenas devolvidas da França. A diretora do museu enfatiza que este caso se distingue dos anteriores, pois a coleção não é fruto de roubo, mas de compras legais e doações. Isso representa um desafio, pois é um terreno desconhecido no Brasil. A historiadora da arte aponta: “Sempre tentamos pagar tanto quanto podíamos, mas não éramos a Fundação Rockefeller!”

Para essas duas colecionadoras não se tratava de acumular peças para deleite pessoal, mas de apresentar a seus compatriotas obras de arte — e, com elas, outras perspectivas e compreensões do mundo — ignoradas pelo euro-americanocentrismo imperante. Jackson e a irmã Cervenka foram organizando exposições por conta própria até que, no oitavo intento, conseguiram uma generosa bolsa do Fundo Nacional para as Humanidades dos EUA. Graças a esse dinheiro e com a colaboração do museu The Wright de história afro-americana, em Detroit, montaram uma exposição de arte popular do nordeste do Brasil que percorreu os EUA durante sete anos, visitando 25 grandes cidades. Cruzou até o Pacífico, chegando ao Havaí.

Exu, obra de José Adario – Con/Vida

A coleção repousa agora em Detroit, a 7.600 quilômetros de Salvador. “Éramos voluntárias muito apaixonadas”, diz Jackson. E chegou o dia em que começaram a pensar sobre o futuro dessas coleções que haviam acumulado ao longo de décadas. “E decidimos que tinham que voltar para casa.” E começaram a contatar seus contatos, a buscar uma instituição que acolhesse essas mais de 700 obras com o mesmo cuidado com que elas as reuniram e divulgaram. Recentemente, doaram as peças peruanas ao Museu de Arte de Lima e à Universidade de Michigan.

Uma vez inventariada a coleção, o museu Muncab iniciou negociações com vários ministérios, desde a Cultura até a Fazenda, e outros órgãos para que a repatriação se torne realidade no próximo ano. Entre outros aspectos, as peças precisarão de uma quarentena para garantir que a brusca mudança de temperatura entre Detroit e Salvador não as danifique.

Adário não lembra das duas clientes americanas que têm 16 de suas obras, mas insiste que elas devem ter pedido. “Porque eu só trabalho sob encomenda”, enfatiza. Ele conta com orgulho que agora sua arte está exposta em galerias, e se estende falando sobre a forte relação com Ogum, o orixá ferreiro. Os navios negreiros trouxeram a mão de obra que colocou os alicerces do Brasil, mas com os que sobreviveram à travessia chegaram também os conhecimentos de inúmeros povos africanos. Entre eles, as técnicas que os impérios de Oió e Ifé usaram a partir do século XV para forjar o ferro entre as atuais Nigéria e Benin.

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