Manhattan: onde os maridos ricos pagam bônus a suas esposas

Man putting necklace on woman's neck --- Image by © Stock4B/Corbis

Num sistema capitalista de produção, fruir de uma condição socioeconômica considerada favorável significa, na maior parte das vezes, ter uma vida de inúmeras vantagens. No embalo dos privilégios de classe vivenciados pelos grupos mais ricos, outras formas de opressões também costumam ser abrandadas, como as de gênero e raça.

Texto de Karen Polaz para as Blogueiras Feministas.

Só para citar um exemplo, jogadores de futebol negros que fizeram fortunas através do esporte conseguem se esquivar de algumas situações de racismo, comum à maioria dos homens negros jovens e pobres do Brasil, como serem parados por blitz policiais em espaços públicos, já que podem pagar para circular por ambientes sociais blindados da atuação policial mais truculenta, inclusive dentro de carros luxuosos e caríssimos — literalmente blindados.

No caso das mulheres, o fator classe social faz uma diferença imensa quando falamos de opressões de gênero. As opressões de gênero vivenciadas por mulheres ricas, definitivamente, não são as mesmas daquelas vivenciadas por mulheres pobres. Como já discutimos em outros textos, dinheiro costuma trazer poder e maior autonomia relativa às mulheres — digo relativa, pois quaisquer conceitos, como o de autonomia, não podem ser avaliados fora do contexto social em que são produzidos.

No entanto, mais e mais riqueza não significa, necessariamente, maior independência proporcional. Em um estudo ainda inédito sobre as riquíssimas mulheres do Upper East Side, um bairro nobre do condado de Manhattan em Nova York, a antropóloga Wednesday Martin mostra que, num país como os Estados Unidos, onde as mulheres avançam cada vez mais na direção da igualdade de direitos em relação aos homens, o estrato da mais alta elite ainda permanece num estágio de estagnação.

Em artigo publicado no The New York Times, Wednesday conta seu choque cultural ao conhecer as mulheres que ela veio a chamar de “glamorous stay-at-home-moms“, algo como “mães-donas-de-casa glamourosas”. Em sua maioria, essas mulheres são brancas, têm 30 e poucos anos e diplomas avançados em universidades de prestígio e famosas escolas de negócios. Elas são casadas com homens ricos e poderosos e têm, em média, de três a quatro filhos com idade inferior a 10 anos. Elas não trabalham fora de casa.

Em vez disso, elas se ocupam do que a socióloga Sharon Hays chama de “intensive mothering” ou“maternidade intensiva”, que se caracteriza pela dedicação exaustiva das mães em cuidar de todos os aspectos da vida de seus filhos, com o objetivo de enriquecer a vida deles e melhor prepará-los para o competitivo futuro que os espera.

Contudo, os cuidados com elas próprias não são deixados de lado. Pelo contrário, vestem roupas caras e requintadas e costumam parecer uma década mais jovens do que são. Wednesday conta que, assim, foi fácil cair na crença de que todas essas ricas, competentes e belas mulheres, muitas delas com ironia, inteligência e um senso de humor sobre sua própria “tribo”, também eram poderosas.

A antropóloga percebeu, rapidamente, uma inegável segregação sexual que definia a vida dessas mulheres, uma espécie de “enclausuramento” dos homens. Por exemplo, havia almoços e cafés-da-manhã só para esposas, saídas noturnas movidas a álcool apenas para as “meninas”, eventos de “compras por uma causa” (“shopping for a cause”) e festas “só para as namoradas” em aviões privados, onde todas usavam roupas da mesma cor. Eram comuns os jantares em que maridos e esposas se sentavam em mesas diferentes em salas completamente separadas.

Quando perguntados sobre essa evidente segregação sexual, tanto maridos quanto esposas afirmavam que se trata de uma questão de “preferência” e de “escolha”, como preferir/escolher não trabalhar fora de casa.

Até que, um dia, Wednesday ouviu falar dos “bônus de esposa”.

Os “bônus de esposa”, acordados antes ou depois do casamento, são distribuídos com base não só na quantidade de dinheiro que o marido consegue acumular, mas também no desempenho da esposa, isto é, em quão bem ela administrou o orçamento doméstico ou em que medida as crianças frequentam ou não uma boa escola. Num processo bastante similar ao que seus maridos são recompensados em bancos de investimento de acordo com suas performances no mundo dos negócios, podemos observar a reprodução, em casa, desta lógica corporativa pelo prisma da desigualdade de gênero.

Por sua vez, estes “prêmios”, concedidos às esposas por seus maridos, dão acesso a um mínimo de independência financeira e participação em uma esfera social na qual não basta apenas você ir a um almoço, você tem que comprar uma mesa de 10.000 dólares no almoço beneficente onde um amigo é o anfitrião.

Enquanto os maridos fazem milhões, suas esposas privilegiadas com filhos tendem a abrir mão de habilidades adquiridas na pós-graduação e em suas profissões para se dedicarem aos cuidados da família e à “aparência” de sucesso familiar, como quando organizam festas de gala, por exemplo. Tudo de forma não remunerada.

Para a antropóloga, os dados etnográficos em todo o mundo não deixam dúvidas: quanto mais estratificada e hierárquica, e mais segregada sexualmente uma sociedade é, menor é o status das mulheres. Comparando diferentes comunidades em diferentes contextos e países, parece ser recorrente o fato de que mulheres que contribuem com recursos para o grupo ou o bem-estar da família, trazendo comida, por exemplo, são mais empoderadas em relação àquelas em sociedades onde as mulheres não contribuem desta maneira. Segundo Wednesday, como em comunidades do Deserto do Kalahari e da floresta tropical amazônica, os recursos também são o ponto de partida no Upper East Side, em Nova York: se você não trouxer “tubérculos” e “raízes” para casa, seu poder é enfraquecido em seu casamento. E no mundo.

Wednesday conclui que, mesmo sendo parceiros no casamento, sob esse arranjo as mulheres ainda são dependentes de seus maridos — ele pode dar um bônus a sua esposa ou simplesmente não dar, ignorando, a qualquer momento, o compromisso prévio com essa ideia abstrata. Assim, um abismo separa a versão de poder dessas mulheres da versão de poder dos seus maridos: o acesso ao dinheiro do parceiro pode trazer uma sensação confortável à esposa, mas, para Wednesday, não pode comprar o poder que uma pessoa adquire por ser aquela a ganhar e a juntar o próprio dinheiro.

Por ser um grupo de difícil acesso, entre outros fatores, ainda faltam estudos mais aprofundados sobre os modos de vida das minorias mais ricas do mundo, inclusive no contexto brasileiro. Para além do que é propagado na mídia, como uma vida de luxo e ostentação, confirmada pelos bens materiais, pouco sabemos sobre eles. Pouco sabemos sobre elas, as mulheres ricas.

Enquanto inúmeras pesquisas apontam a relação direta entre autonomia financeira das mulheres e outros tipos de independência, ainda são as mulheres que mostram maior probabilidade de abdicar de suas carreiras para se dedicarem exclusivamente à família e aos filhos, mesmo quando têm origem social privilegiada ou são altamente graduadas em profissões de prestígio. Como sabido, as que não têm condições financeiras de abandonar seus empregos costumam sujeitar-se à dupla e até tripla jornada, trabalhando dentro e fora de casa numa rotina, em geral, demasiado estafante.

Embora as justificativas para as desigualdades de gênero aleguem tratar-se de “preferências” e “escolhas pessoais”, por que ainda são as mulheres que, na grande maioria das vezes, renunciam a suas carreiras? Apesar dos progressos, isso indica uma situação de menor poder dentro do casamento e maior vulnerabilidade social, no caso em que venham a se divorciar, por exemplo, e se vejam pressionadas a voltar para o mercado de trabalho depois de anos fora dele.

Num país como os Estados Unidos, onde as diretorias das grandes empresas têm mais homens chamados John do que mulheres, não surpreende que no topo da elite econômica estejam as esposas ricas e diplomadas de Manhattan que recebem bônus de seus maridos de acordo com suas performances no ambiente familiar. Como se percebe, ainda há muito que se avançar tanto no entendimento sobre os estilos de vida dos estratos sociais mais abastados, quanto nos direitos das mulheres.

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