Ao longo da ditadura militar nós mulheres lutamos pela redemocratização das instituições políticas do país e pela qualificação do conceito de democracia, para que incluísse o princípio da igualdade entre mulheres e homens.
Em 1985 a criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, foi uma conquista política do movimento feminista e de movimentos diversos de mulheres unidas na afirmação da necessidade de criar um órgão com autonomia administrativa e recursos orçamentários que levasse a cabo políticas públicas para as mulheres, em sua diversidade.
O Conselho inaugura a institucionalização de políticas públicas para as mulheres a nível federal. Atuou com as mulheres brasileiras na luta para inscrever na Constituição de 1988 os princípios da igualdade e da equidade em todas as dimensões da sua vida: na família, no trabalho, na saúde, na educação, na política, para afirmar a plena igualdade entre os cônjuges no casamento, a ampliação da licença maternidade, o dever do Estado em coibir a violência doméstica, o direito de decidir livremente sobre sua vida reprodutiva. Compreendendo a heterogeneidade da categoria mulher, inscreveram direitos das trabalhadoras domésticas, de mulheres rurais, de mulheres negras, de mulheres em situação prisional.
No segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi instituída, em 2002, a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, com status de ministério, vinculada ao Ministério da Justiça. A este novo patamar de institucionalidade se acrescenta importante medida do governo do Presidente Lula que, em 2003, estabelece a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, com status ministerial, fortalecida e consolidada no governo da Presidenta Dilma, com recursos orçamentários e de pessoal, próprios
Até 2016, através de diversos programas, as políticas públicas para as mulheres foram institucionalizadas no país. Em diálogo com os movimentos de mulheres, e ações articuladas com outros ministérios, avançou a igualdade de gênero. São muitas as conquistas formalizadas através das Conferências de Políticas para as Mulheres e a elaboração de Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, a implementação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, o Programa Mulher, viver sem violência e a criação da Casa da Mulher Brasileira, o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, o apoio à aprovação e implementação da Lei Maria da Penha, à Lei do Feminicídio, o programa Gênero e Diversidade nas Escolas, Mulher e Ciência, o PNAISM voltado para a saúde da mulher, o Pronatec de qualificação para o trabalho e a PEC das Trabalhadoras Domésticas são alguns exemplos.
Nos foros internacionais o Brasil foi escutado e respeitado por sua postura de compromisso com o avanço dos direitos humanos das mulheres. Inicialmente representado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e depois pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, o país contribuiu com exemplos de uma política institucional voltada para a plena igualdade e autonomia das mulheres, em sua diversidade.
Nesse percurso democrático, na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), no começo do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o CNDM assumiu a delegação oficial do Brasil e trouxe consigo a Plataforma de Ação de Beijing, conjunto de compromissos assumidos pelos país e que ocupariam sua trajetória na implementação desses compromissos em Estratégias da Igualdade.
Nos anos 2000, a SPM deu continuidade à representação na política internacional, ampliando a participação do governo federal nos foros regionais e internacionais de direitos humanos. Como resultado desse processo, construiu importantes alianças com os países que defendiam os direitos das mulheres, sua autonomia sexual e reprodutiva, e combatiam as desigualdades de gênero em todas as suas expressões, principalmente a violência contra meninas e mulheres.
Ao longo de 40 anos, em contextos políticos e econômicos diversos, os princípios de igualdade e equidade das mulheres com relação aos homens, o respeito à diversidade e ao pluralismo e a afirmação da laicidade do Estado, foram considerados pilares das políticas públicas desenvolvidas nos governos democráticos que se sucederam. Pilares afirmados também nas esferas internacionais onde o Brasil sempre foi respeitado por sua afirmação dos direitos humanos.
O golpe institucional contra a Presidenta Dilma Rousseff, em maio de 2016, marcou o ponto de inflexão nesse processo e passamos a assistir ao desmantelamento do que foi construído ao longo destas décadas e ao fechamento do ciclo virtuoso de afirmação dos direitos humanos das mulheres.
Nós, que entre 1986 e 2016, exercemos os cargos de Presidentas, Secretárias e Ministras de órgãos voltados para a afirmação e o exercício dos direitos das mulheres, nos reunimos hoje, profundamente consternadas com as milhares de vida perdidas em nosso país pela pandemia do coronavírus. E, pelo grave momento de retrocessos e desrespeito aos espaços de controle social, que caracterizam a atuação do governo federal, principalmente em relação as conquistas e avanços das políticas públicas para as mulheres, jovens e idosos.
Alertamos para o avanço de uma agenda política de moral e costumes que desrespeita a laicidade do Estado e utiliza a religião para atentar contra os direitos humanos das mulheres, arduamente conquistados na Constituição, regulamentados em legislações nacionais, afirmados em tratados, convenções e acordos internacionais das quais o país é signatário, e exercidos através de políticas públicas.
O atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, atua como o “braço forte” do chamado núcleo ideológico deste governo. Impõe uma perspectiva fundamentalista/religiosa, familista e patriarcal a seus programas e a transversaliza aos Ministérios da Saúde, das Relações Exteriores, da Educação, sob a orientação da Presidência da República e com o aval de grupos conservadores presentes no Legislativo e no Judiciário.
Com particular empenho, em um esforço concertado de vários Ministérios, o governo atua, nacional e internacionalmente, no sentido de negar a todas o direito a interromper a gestação, mesmo nos casos previstos em lei, visando impor, em nome de princípios religiosos que devem guiar vidas individuais, normas coletivas. Atua também no sentido de dificultar o funcionamento dos serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva, rejeitando inclusive orientação da OMS neste sentido, com graves consequências para a saúde integral das mulheres e o agravamento da mortalidade materna durante a COVID-19.
A atual Secretaria das Mulheres ignora os avanços anteriores, desconsidera o papel de monitoramento e deliberação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher e, não possui recursos orçamentários suficientes para viabilizar políticas públicas para as mulheres, principalmente neste momento de aumento da pobreza, da fome, do desemprego e da violência doméstica.
A educação também sofre com o conservadorismo atual – o conceito de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres são banidos de planos educacionais e de programas governamentais, proibindo a educação sexual nas escolas.
Destacamos as três importantes Leis aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo ex Presidente Lula e a ex Presidenta Dilma, que hoje correm sérios riscos de retrocesso com propostas da bancada fundamentalista: Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio e PEC das Trabalhadoras Domésticas.
Vexatória é a postura do Brasil nos foros internacionais, unindo-se a países que, historicamente, negam os direitos humanos das mulheres, o que é exemplificado na liderança exercida pelo Brasil no chamado Consenso de Genebra, que reúne países árabes, além da Hungria e a Polônia, com governos de extrema direita.
É urgente chamar atenção das mulheres, em sua diversidade, para este projeto de destruição de seus direitos – preconceituoso, racista, homofóbico e transfóbico e, para a necessidade de que seja revertido por nós, da geração que contribuiu para escrevê-los, e sobretudo, pelas jovens, para que as futuras gerações vivam em um país que respeita as mulheres como cidadãs plenas de direitos em suas vidas educacional, profissional, afetiva, familiar, sexual, reprodutiva, política. Para que vivam sem violência e a imposição de dogmas e preconceitos que tolhem sonhos, liberdades, autonomia e dignidade.
Nossa caminhada conjunta fez e com certeza continuará fazendo a diferença. Resistam e fortaleçam as trincheiras de luta e de trabalho em defesa dos direitos das mulheres.
São Paulo, 14 de maio de 2021
Subscrevem,
Jacqueline Pitanguy, Presidenta do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (1986-1989)
Rosiska Darcy de Oliveira, Presidenta do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (1995-1999)
Solange Bentes Jurema, Presidenta do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (1999-2002)
Emília Fernandes, Ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (2003-2004)
Iriny Lopes, Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres (2011-2012)
Eleonora Menicucci, Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres (2012-2015)
Nilma Lino Gomes, Ministra do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (2015-2016)