Me deixem em paz – Por: Fernanda Pompeu

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 4)

por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Eu morri no 9 de outubro de 1967. Tinha 39 anos. Sempre acreditei que ficaria velhinho para, pelo menos, contar minhas incontáveis aventuras para meus netos. E para os netos dos outros que quisessem ouvir. Falo em netos dos outros, porque minha vida foi pautada pela ideia de outros. A filosofia comunista na verdade é bem simples – ela inclui. Quando jovem, fazendo uma viagem de motocicleta por países latino-americanos, vi diretamente a mais escandalosa miséria. No ambiente miserável, nada e nem ninguém conseguem crescer. É uma condenação que atinge gerações. Foi contra esse estado de coisas que me insurgi.

Mas agora estou morto. Fui caçado, cercado, assassinado por militares bolivianos, certamente financiados pela CIA. Os americanos só acreditam numa verdade, a deles. Usam palavras como democracia, liberdade, livre arbítrio, mas atrás ou embaixo de todas elas há o interesse absoluto das empresas imperialistas. O que elas querem é dominar para explorar. Explorar para lucrar. Só lamento que muitas vezes os explorados não percebam tal obviedade. Por exemplo, os camponeses – aqui na selva boliviana – pouco ou nada entenderam da minha proposta: pegar em armas para destruir as forças opressoras.

Para vocês que seguem vivos o trabalho será duro, a luta árdua, há um longo caminho até a vitória final – a redenção dos pobres e oprimidos. Eu participei da Revolução Cubana, da imensa alegria de derrubar o ditador Fulgencio Batista, lacaio dos ianques. Também participei do paredón, ordenei fuzilamentos. Mas nunca o fiz com frieza. Foi tudo em nome de uma nova humanidade! Disse uma vez e volto a repetir: Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás. Quem não tem estômago para isso é reformista, não um revolucionário.

Lutei ombro a ombro com Fidel Castro. Fui ministro de Estado. Recebi do presidente brasileiro Jânio Quadros a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Os gringos e os militares brasileiros ficaram tiriricas. Contam até que tal homenagem estimulou ainda mais o golpe de 1964. Esse Jânio tinha algo de palhaço, mas ser homenageado é sempre bom para causa. Dizem que eu era um homem bonito. E devo ter sido mesmo, pois por mim muitas moças suspiraram. Os maldosos também incluem suspiros de alguns rapazes. Mas essa conversa não é séria. É provocação de gente alienada.

Hoje, passados quase 50 anos, voltei à Bolívia para revistar-me morto. Engana-se quem acha que os mortos não têm saudade. Há muita ignorância e preconceito para com os finados. De qualquer forma, resolvi retornar para protestar: não suporto mais vê meu rosto – fotografado pelo Alberto Korda e popularizado pelo Jim Fitzpatrick – estampado por todo lado. Sei que nos primeiros anos até foi útil. Meu rosto virou ícone do revolucionário, do guerrilheiro da rebeldia. Daquele que morreu sem se dobrar.

Agora estou enjoado de me ver estampado em milhões de camisetas, pôsteres, cartazes, panos de prato, chaveiros, canetas de sindicatos, flâmulas, adesivos para traseiras de caminhões, figurinhas de álbum, botons, estandartes. Outro dia, dei com a minha cara tatuada no ombro de um carcereiro de um presídio de segurança máxima. Também vi meu rosto em uma roupa para cachorro em uma butique Pet em Nova York. Tive curiosidade de olhar o preço, uma barbaridade capitalista! Daí imploro, companheiros e companheiras, leiam o que eu escrevi, pesquisem o que eu fiz. Mas, por favor, enterrem minha imagem aos pés da Sierra Maestra.

* * * * * *

Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

Fonte: Nota de Rodapé

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