Mesmo que as correntes sejam diferentes, somos todas prisioneiras

Por Ana Carolina Bartolamei Ramos e Fernanda Orsomarzo Do Justificando

Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas Audre Lorde

Penitenciária Talavera Bruce/RJ, 11 de outubro de 2015. Isolada numa solitária e prestes a dar à luz, ela percebe que não aguentaria o castigo por muito tempo. A bolsa logo romperia. E assim aconteceu. Enquanto gritava as dores do parto naquela cela imunda e escura, as companheiras da cela vizinha clamavam por ajuda. Ninguém ouviu – ou quis ouvir. A mulher foi retirada do isolamento com o filho nos braços, ainda ligado ao seu corpo pelo cordão umbilical. E, para que não se duvide da perversidade humana, a detenta retornou à solitária após o tardio atendimento médico. O bebê fora encaminhado a um abrigo.

Esse texto poderia começar trazendo uma série de constatações, mas o que vem revelar é a dificuldade que mesmo nós, que estamos atentas, temos em dar voz às mulheres invisíveis que estão nas prisões brasileiras.

Dizemos invisíveis porque o que marca a vida de uma mulher no cárcere no país da punição pela punição é justamente o esquecimento.

Como dar voz ao esquecimento?

Quão surdos estamos – e será que é exatamente de surdez que se trata – quando nos tornamos uma sociedade que utiliza o cárcere como forma explícita de segregação social, sem que isso nos abale?

Não nos abala a história daquela que teve sua prisão provisória justificada por ser uma “furtadora contumaz”, quando de fato se tratava de alguém que havia subtraído latas de leite de 100 reais na farmácia para o neto de dois anos que não podia tomar leite comum. Não nos comove o caso da menina de dezenove anos, universitária, presa por tráfico de drogas, apesar da substância estar na bolsa de outra pessoa, a qual assumiu que a droga era sua – mas a jovem estudante era negra. Não nos impressiona a gestante que deu à luz algemada, tratada e enxergada como ser descartável e indesejável.

Uma mulher encarcerada diz muito mais do que os fatos que levaram aquela mulher até ali. Porque cada vez que a punição sem garantias, especialmente as constitucionais, tira de uma mulher a liberdade, e muitas vezes a maternidade, para jogá-la no esquecimento, se está legitimando não apenas o Estado de Exceção que vivemos desde o golpe na democracia, mas principalmente se evidencia qual o papel que se dará às mulheres neste Estado.

Não podemos nos deixar enganar pelos mesmos discursos rasos utilizados para justificar o fato de que os agentes públicos, polícia, promotores e juízes estão ultrapassando todos os limites legais e constitucionais diariamente, como o falso problema da impunidade no país e o suposto respeito à igualdade entre os gêneros.

A realidade é que o aumento absurdo das prisões femininas é apenas uma forma de nos lembrar diariamente qual o custo da liberdade que tanto lutamos.

Crimes e contravenções são cometidos todos os dias, em todo lugar, por gente de todos os níveis da pirâmide social, da base ao topo. Contudo, é certo que o sistema penal tem em sua mira a população pobre, negra e periférica. E mais certo ainda é que as prisões são construídas para essa parcela da população, na medida em que, desgraçadamente, reproduzem as condições precárias e absolutamente degradantes que marcam sua vivência extramuros.

No caso da mulher, o julgamento é, antes de tudo, moral.

Fruto do machismo imperante na sociedade, que a encara como ser submisso, responsável pelos afazeres domésticos e educação dos filhos, o estigma que recai sobre a mulher presa é muito mais negativo quando comparado àquele que atinge o homem, já que ultrapassa o julgamento do fato criminoso para atingir a questão do próprio gênero.

O cárcere é espaço pensado por homens para abrigar homens, desconsiderando as necessidades específicas da mulher. A visão e o tratamento da mulher presa, assim, sofrem dura interferência cultural, tornando utopia cada vez mais distante o cumprimento da Constituição Federal. O distanciamento da realidade faz com que, a cada dia, vidas sejam destruídas por meio do mentiroso e alienado discurso de combate à criminalidade, eficaz na função de esconder nossos erros enquanto sociedade absolutamente desigual, que não proporciona o mínimo de dignidade àqueles e principalmente àquelas escolhidas para o descarte.

Segundo dados do Infopen Mulheres, entre os anos de 2000 e 2014, o número de detentas no Brasil subiu de 5.601 para 37.380, ou seja, 567,4%.  No mesmo período, a média de homens presos cresceu 220,2%, revelando que a política de encarceramento em massa tem atingido em cheio as mulheres.

O aumento exponencial da população carcerária feminina, assim, é diretamente proporcional às violações de seus direitos. Centenas de mulheres são diariamente lançadas nos porões sujos do cárcere, sem qualquer amparo ou assistência. E assim seguem invisíveis as mais de 40 mil mulheres presas, das quais 30% ainda não possuem condenação definitiva, no país em que o clamor público e o sensacionalismo se sobrepõem ao cumprimento da Constituição Federal.

Como compreender um sistema que joga na cadeia uma gestante como presa provisória? Como entender que crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, por mulheres primárias, sejam antecipadamente punidos em razão da genérica garantia da ordem pública? Como aceitar a prisão que desconsidera a situação peculiar da mulher encarcerada, silenciando qualquer resquício de humanidade em nossas instituições?

Ora, não devia ser tão difícil perceber, caso se quisesse ultrapassar o discurso fácil, na maior parte das decisões que decretam as prisões no Brasil, que a exclusão é o que escapa do jogo das palavras vazias. O excluído não desaparece apenas porque insistimos em não dizê-lo, tanto é assim que as minorias sobrevivem, apesar de toda a força que os mesmos privilegiados de sempre empregam nesta missão.

Do mesmo modo, as mulheres do cárcere, apesar de esquecidas e malditas (mal ditas), sobrevivem.

 

E o que ultrapassa o silêncio de seus abandonos singulares, tanto pelo Estado, quanto pelas próprias famílias, é o que escancaram disso: são presas por todas que ousaram e ousam ter um lugar de diferença e, mais que isso, são a prova viva, ainda que latente, de que a segregação não consegue causar os seus apagamentos por completo.

Se somos uma sociedade que não só violenta e mata mulheres, mas que as condena quando são vítimas e também quando são supostas agentes de crimes, principalmente se forem negras e pobres, prisioneiras somos todas nós. A questão aqui é que apenas algumas pagam o preço na carne, com suas vidas e liberdades.

Então, quando a palavra perde o sentido, porque já não diz, como a palavra de muitos policiais, promotores e juízes, responsáveis pelo encarceramento em massa no país, é preciso escutar as vozes das invisíveis para que a palavra assim encarne-se e possa gerar movimento capaz de perfurar a atual paralisia social, que é gerada por um abismo definido pelo Estado Patriarcal.

Ana Carolina Bartolamei Ramos Fernanda Orsomarzo, Juízas de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Membras da Associação Juízes para a Democracia. Escrevem na coluna Sororidade em Pauta.

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