“Meu filho é negro, eu não”: a luta antirracista que começa dentro de casa

Fabiana Ramos Gotardo, profissional de marketing, é uma mulher branca de 39 anos, mãe de Maria Luiza, de 10 anos, negra. “Toda vez que eu ouvia uma pessoa negra reclamando de um episódio de racismo, eu pensava: devia ter respondido, gritado, botado o dedo na cara do racista. E quando isso aconteceu pela primeira vez com a minha filha, quando ela era pequena, fiquei completamente sem reação”.

Por Marcella Chartier, do Universa

Fabiana e Ader: ela está aprendendo a lidar com o racismo para proteger a filha
Imagem: Arquivo Pessoal

Malu tinha quase dois anos de idade e estava fantasiada de Mulher maravilha em uma festa infantil. Um convidado se aproximou e disse, rindo: “Que mulher maravilha escura, será que está queimada de sol?”. Fabiana só conseguiu, depois de se sentir paralisada pelo comentário, pegar a filha e deixar a festa. “Comecei a entender por que as pessoas que passam por isso a vida inteira muitas vezes não respondem”.

A cor da pele de Fabiana garantiu que ela vivesse por mais de três décadas sem viver nada parecido com o choque que a experiência acima lhe causou. Tornar-se mãe de uma menina de pele escura fez com que ela tivesse uma amostra da sensação que pessoas negras vivenciam todos os dias no Brasil, seguida de um silenciamento e uma fuga que ela antes não compreendia. É por esse motivo que ela preferiu não expor fotos da filha nessa matéria.

Grada Kilomba, que é psicanalista e professora da universidade de Humboldt, na Alemanha, escreveu “Memórias da plantação — Episódios de racismo cotidiano” (editora Cobogó). No livro, ela diz que esse tipo de experiência é traumática e a repetição das ocorrências não atenua os efeitos desse tipo de violência na saúde emocional de alguém. “Uma pessoa nunca está preparada para assimilar o racismo porque, assim como em qualquer outra experiência traumática. Somos assombrados por memórias e experiências que causaram uma dor da qual se tem pressa em fugir”, explica.

O fotógrafo Ader Gotardo, de 41 anos, pai de Maria Luiza, sabe bem disso. Para além das situações de racismo pelas quais passa desde a infância existem também as que começaram a acontecer desde que ele começou a namorar Fabiana. Violências de diversos tipos, inclusive as disfarçadas de bom humor, elogios e fetichização são comuns também nesse contexto.

“Arrumou um negão!”, alguém diz em pleno almoço com amigos. Olhares de espanto em ambientes majoritariamente brancos de amigos de sua mulher. Familiares brancos que tentam convencer o casal a alisar o cabelo da filha. “É outro nível de racismo, que é mais difícil de combater e denunciar, aquele que dizem ‘isso é coisa da sua cabeça'”, diz. “Depois que as crianças nasceram (Malu tem um irmão de 5 anos, Jorge) aumentou minha atenção em relação ao assunto. Quando aconteceu o episódio da festa, eu não estava presente, só soube depois, no carro. Senti raiva e uma frustração por não ter conversado com a mãe de uma filha minha sobre isso antes, pra ela tentar dar conta de responder”.

A montadora e documentarista Manoela Ziggiatti, de 44 anos, é mãe de Vitor, de 8 anos e Ana Beatriz, de 4. Quando o mais velho tinha por volta de 2 anos, ela e o marido, o produtor de cinema Max Eluard, de 46, o levaram a um espaço de lazer para crianças pequenas. Como é brincadeira comum nessa faixa etária, Vitor passou por algumas almofadas em forma de blocos que tinham sido empilhadas pela mãe de outra criança e as derrubou no chão. “A mulher olhou pra ele com muita raiva e disse: ‘sai daqui moleque feio!'”, lembra Manoela. Eles também preferiram não expor as fotos na matéria.

“Fiquei muito irritada e discuti com ela. Se fosse uma criancinha branca de bochechas rosadas, ela jamais falaria naquele tom”. Manoela e Max, que são brancos, explicaram ao filho que tinham se exaltado, mas que era importante que ele nunca deixasse ninguém falar com ele daquela maneira. Até hoje Vitor repete o que aprendeu naquele dia, se alguém o chama de moleque: “Eu tenho nome, é Vitor”.

Ambas as famílias acumulam episódios de discriminação racial, sendo mais frequentes os que se enquadram na categoria de racismo cotidiano. Como quando uma vendedora de uma loja ofereceu apenas os produtos mais baratos para Manoela por pressupor que o fato de ela ter uma criança negra consigo a identificava como alguém de uma classe social mais baixa. Na peça de teatro da escola, uma professora propôs que Malu representasse a Tia Anastácia (personagem de Monteiro Lobato), por ser a única menina negra da turma. Em espaços públicos, pessoas pedem para fotografar Vitor por identificar seu cabelo afro como “exótico”. “Uma criança branca de chinelo e roupa velha num shopping vai ser vista de uma forma. Se for negra, de outra. Meus filhos precisam estar sempre bem vestidos, é um cuidado que tomamos para contradizer a imagem preestabelecida no olhar das pessoas”, afirma Manoela.

O viés da branquitude

Lia Vainer Schucman, doutora em Psicologia Social pela USP, pesquisa, há mais de dez anos, a identidade racial branca — ou branquitude — como construção social na cidade de São Paulo, e a hierarquia estabelecida e inabalada em que pessoas negras estão sempre em posições de desvantagem em relação aos privilégios simbólicos e materiais que só podem ser plenamente desfrutados por quem tem pele clara.

Racializar as pessoas brancas foi o caminho de estudos escolhido pela psicóloga — que é branca —, rompendo com o padrão racista de colocar o sujeito negro como objeto de estudo e buscando compreender, detalhadamente, os mecanismos que fazem com que a branquitude se autodetermine como o centro, o universal, classificando todos os não brancos como “os diferentes”.

No livro “Famílias inter-raciais – tensões entre cor e amor” (EDUFBA), que é resultado de sua pesquisa de pós-douturado, Schucman analisa essa mesma hierarquia racial — e suas consequências — dentro dessas famílias. O racismo aparece de diversas formas: em uma das famílias entrevistadas pela pesquisadora, por exemplo, uma mãe, branca, insiste em definir como “moreno” o pai de sua filha, negro, em uma negação de suas origens.

Em outra, uma mulher filha de mãe branca e pai negro conta que era embalada, pela mãe, com cantigas de ninar de conteúdo racista quando criança. Há também um caso em que o contato de pessoas brancas com um familiar negro fez com que os primeiros se conscientizassem a respeito do racismo — e é nesse tipo de contexto que Schucman enxerga possibilidades de “enfrentamento, acolhimento e elaboração da violência racista vivida na sociedade de forma mais ampla”.

Nas famílias de Fabiana e Manoela, a participação ativa nas escolas das crianças é uma das maneiras de enfrentamento. Dentro de casa, a valorização da negritude e o fortalecimento da identidade negra das crianças é constante. O cabelo é símbolo potente de poder e resistência, assim como na história do movimento negro. Fabiana assiste, com a filha, a tutoriais de cuidados com os fios da curvatura dos de Malu — e se antes eram frequentes na família os comentários sobre o alisamento, hoje a garota comemora os potes de cremes e finalizadores de cachos que ganhou de uma tia. A própria Fabiana, que tem fios cacheados, parou de fazer escova progressiva e compartilha os produtos com a filha.

E se referências culturais da negritude são importantes na composição de repertório da sociedade como um todo, inclusive da branquitude, no processo de identificação racial e na autoestima de crianças negras, elas são fundamentais. Ader faz questão de povoar o imaginário dos filhos com heróis africanos e personagens negros em contextos positivos e inspiradores. Manoela evitou, na primeira infância, qualquer conexão da negritude com a escravidão. “É muito cedo para uma associação dolorosa como essa. Nós nos dedicamos a relacionar a cor da pele deles com beleza, dança, África, poder, luta, alegria, espiritualidade, tudo o que é mágico na negritude”, afirma. O casal também sempre exaltou as características físicas dos filhos. “Sei que minha filha vai passar por situações desagradáveis por causa do nariz largo que ela tem. Eu sempre falo muito sobre como ele é lindo, para que ela esteja fortalecida quando isso acontecer”, diz Manoela.

E, de fato, é uma boa estratégia. Maria Aparecida Bento, que é doutora em Psicologia Social pela USP e diretora executiva do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e da Desigualdades (CEERT), reuniu, em artigo sobre a construção da identidade racial em crianças pequenas, informações que atestam que desde a primeira infância (entre 3 e 5 anos de idade) as crianças detectam os valores associados à cor da pele. E que, já nessa faixa etária, as brancas frequentemente consideram feias pessoas, personagens, bonecas negras. Sinais de que a perversidade do racismo e a manutenção de privilégios da branquitude precisam, de fato, ser atacadas com urgência. E desde bem cedo.

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