Sugerir mudanças e novas práticas na maneira como a mídia aborda o racismo no Brasil e, principalmente, avaliar como esse problema afeta a vida da grande maioria das crianças do país: esse é o objetivo de uma série de programações que a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) vêm realizando por cidades do país. Em Belém, a oficina “Mídia, Infância e Desigualdade Racial” aportou no último dia 17 de maio, reunindo jornalistas e membros de entidades representativas e órgãos públicos.
O esforço é crucial: hoje as 31 milhões de crianças negras e outras mais de 150 mil indígenas que vivem no país são as mais vulneráveis frente às desigualdades de acesso a serviços básicos. Os exemplos vêm de dados do próprio IBGE: os mais de 60% da população de 7 a 14 anos que não frequenta a escola no Brasil são negros. Já o índice de mortalidade infantil entre os indígenas é duas vezes maior do que a taxa nacional.
Socióloga e gestora das áreas de Programas de Proteção à Infância e de Raça e Etnia do Unicef no Brasil, Helena Oliveira Silva, é uma das coordenadoras das atividades que discutem o tema pelo Brasil. Ela cedeu entrevista aos jornalistas Ismael Machado e Lázaro Magalhães.
P: Essa oficina faz parte de uma série de ações do Unicef em campanha iniciada ainda no ano passado…
R: A campanha é uma iniciativa do Unicef junto com diversos parceiros governamentais, governo federal e sociedade civil. Foi lançada em novembro e é um grande guarda-chuva, que envolve um conjunto de iniciativas, em ondas de campanha, que os mais diferentes atores, Unicef, escritórios regionais nos estados brasileiros e seus parceiros locais, desenvolvem em nome de uma infância sem racismo. Você tem iniciativas que vão de lançamentos a adesões municipais e estaduais, de bancos, assembleias legislativas, nos Estados. A rede municipal de educação no Rio de Janeiro está assumindo a campanha. Assumiu a aplicação da Lei 10.639, que define a obrigatoriedade do ensino da cultura e história afrobrasileira e africana nas salas de aula. Em março, a gente fez uma agenda importante com o ator Lázaro Ramos, de trabalhar o racismo na infância pela internet. Em maio agora, estamos com a agenda com os jornalistas e profissionais de comunicação, trabalhando a temática de mídia, racismo e infância.
P: Com relação à mídia e a questão da desigualdade racial, houve avanços?
R: Vamos fazer uma análise só após esse ciclo de oficinas, mas a ideia é exatamente conhecer esse perfil, essa representação. Por isso a campanha agendou esse diálogo com os profissionais de comunicação. A gente entende que no exercício de mobilização, na missão da campanha de mobilizar e desenvolver novos parceiros, a mídia, os profissionais de comunicação também são importantes.
P: A campanha parte de um pressuposto muito forte, uma afirmativa de que o Brasil é racista. Inclusive vocês expõem números que comprovam isso. As crianças indígenas têm duas vezes mais risco de morrer; crianças negras, 25% a mais…
R: Não é o Unicef que diz que o Brasil é racista. O país é reconhecido como racista não só pela sociedade civil, mas pelo próprio governo brasileiro, que empreende forças e invida esforços, estruturas, organismos públicos para seu enfrentamento. O Unicef observa e reconhece a existência do racismo no Brasil e trabalha na perspectiva de reduzir e enfrentar o impacto desse fenômeno na vida das crianças e adolescentes. Existe um impacto objetivo, refletido nos números, e um impacto subjetivo, no dia a dia, no cotidiano das crianças. Sobre os números, a gente podia dizer que nos últimos 10, 15 anos se dizia que isso era uma dimensão social, uma questão de acesso. Aí se fez uma série histórica de pelo menos 30 anos dos indicadores agregados por cor, segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], e as diferenças entre brancos, negros e indígenas e homens e mulheres continuam iguais, e a gente sabe que nesses 30 anos o Brasil avançou nas dimensões econômica e social. Houve mudanças, melhorias, o desenvolvimento realmente alcançou o país, só que não foi igual para todo mundo. Em alguns casos, até aumentou a distância entre esses grupos de cores diferentes, então para isso que estamos chamando a atenção. Essas diferenças são gritantes quando a gente olha pra essa população de 60 milhões de crianças e adolescentes. A maioria é de crianças negras e indígenas, o que significa em torno de 54,5%.
Quando olhamos setorialmente a educação, a mortalidade infantil, os números também são desagregadores, então nos assusta saber que, se cada criança vitima de mortalidade infantil com menos de um ano de idade é uma criança branca, crianças indígenas são o dobro. Por que isso acontece? Qual é a política que não está chegando às aldeias? Qual é a atenção materno-infantil que não está sendo garantida às mães dessas crianças nas suas condições, na sua cultura, na sua dimensão? É disso que estamos falando.
P: No censo geral, ainda há uma resistência muito grande ao sistema de cotas. Quais os caminhos para fugir das armadilhas ou críticas abertas por essas políticas?
R: Diria que são armadilhas e não são. Tem um rumo certo na construção de uma universalização, de um direito igual a todo mundo e a cada um. Primeira distinção: a gente sempre conviveu com políticas afirmativas no país. Bolsa família é um exemplo disso. Você prioriza um determinado grupo, dentro da política, para garantir a equivalência do direito do que é devido. Um pouco mais atrás, foi a agenda de políticas afirmativas para mulheres no poder… Há uma distinção entre cotas e apoios afirmativos. Cotas são uma modalidade de apoio afirmativo. A gente precisa primeiro afirmar essas diferenças, assegurar que cada um tenha o direito igual. A ação afirmativa ajuda nesse equilíbrio. Vem pra um momento, um período determinado, com um fim muito específico: equilibrar e fazer uma equivalência dos direitos para que de fato a gente afirme a igualdade.
P: Tem gente que diz que através da defesa do consumidor você pode chegar à cidadania…
R: É uma falácia, porque você pode ter uma classe média negra com acesso aos direitos, com direito do consumidor muito bem esclarecido, reivindicando, conquistando, comprando o que bem entende, vivenciando muito bem o mercado consumidor. Quem garante para você que isso é o passaporte para não ser discriminado? A cidadania não passa pelo mercado, nunca passou e não será agora, com a discussão da equidade racial, que vai passar.
P: Curiosamente a imagem do negro avança no mercado publicitário, mas não avança no mercado de trabalho…
R: Exatamente. Num shopping ou na rua, se você tem uma situação em que duas jovens, aparentando seus 28, 29 anos, uma negra outra branca, com padrões de roupas parecidos empurrando um carrinho de bebê… quem você diria que é a estagiária de um setor de serviço público, quem você diria que é a babá? Precisamos de fato desconstruir imaginários. Esse é um racismo não dito, sutil, como é em qualquer lugar. A África do Sul foi o ultimo país a abolir o racismo previsto em lei, que é a dimensão do Apartheid. Não existe mais um país no mundo onde o racismo seja algo assumido de forma estatal. Então, o Brasil é como qualquer outro lugar do mundo. Tem uma dimensão sutil do racismo, essa dimensão simbólica, marcada, seja xenófobica, seja por gerações.
P: A oficina citou a necessidade de divisão de responsabilidades frente a esse problema, e, obviamente, um dos responsáveis é a imprensa, que legitima, perpetua ou pode mudar discursos. Como anda isso no Brasil hoje?
R: Estamos fazendo essas oficinas para conhecer como anda a imprensa no Brasil na área da infância e do racismo. A resposta está em aberto ainda.
P: Há uma impressão?
R: O setor de comunicação é um setor interessante para dialogar. Então, queremos rever alguns conceitos, reconstituir. Não é dizer que a imprensa está equivocada. A gente quer dialogar justamente para construir isso. As oficinas mostram uma série de conceitos internos, fala de construção de manuais de redação, discute sobre como usar determinado termo, qual a recomendação que a liderança do movimento negro faz sobre como usar, e por aí vai. É um processo de construção conjunta. Um dos produtos dessa oficina será a construção de um guia de mídia, com algumas dicas e orientações sobre esse tipo de coisa. A gente quer contribuir da melhor maneira e até ampliar, sair do campo do jornalismo e avançar para o campo da publicidade. Falar das imagens, da construção de imaginários.
P: Nesses encontros se comenta a necessidade de melhor formação, mas agora não é mais obrigatório o diploma de jornalismo…
R: Acho importante alguém diplomado para exercer a profissão. E do ponto de vista da preparação, para se lidar com esses conceitos, para se combater o racismo, com ou sem diploma, ela é fundamental. Especialmente sobre o racismo e sexismo, é preciso uma atenção mais aprofundada, porque eles são dois eixos estruturantes da sociedade brasileira, e eu diria até da sociedade latino-americana. Os processos estruturais de desenvolvimento são permeados pelo racismo e pelo sexismo. Não só para a população negra brasileira, mas para a população indígena também, dos diferentes países da região.
P: O que vem adiante? Deve haver uma publicação com os resultados desses encontros com a mídia…
R: Esse é um exercício primeiro com os profissionais de comunicação, tentando construir uma agenda de perspectivas, de olhares do fenômeno do racismo nos veículos. Temos mais duas agendas, em Porto Alegre e Recife. É uma primeira experimentação. Na primeira fase, a gente quer ter como produto um guia de fontes que orienta, que ajuda o trabalho do profissional no que se refere ao tema do racismo. Numa segunda fase, ainda por construir, a gente quer observar a continuidade dessas oficinas, aprimorar a metodologia para outras cidades e, possivelmente, criar uma agenda com os empresários das empresas de comunicação. Eles são fundamentais porque determinam. Se são temas estruturantes, tanto o racismo quanto o sexismo, a gente precisa ter diálogos com atores estratégicos nesse momento, atores que querem de verdade uma sociedade e um estado democrático de direito.
Fonte: Diário do Pará