“A minha geração, por ter nascido com HIV, foi educada para morrer”

Jovem de 26 anos mostra como aprendeu a conviver com o vírus HIV e a superar as dificuldades

Do Ana Ignacio, do R7

Aline Ferreira do Nascimento nasceu com o vírus HIV. Em seus primeiros anos de vida, os pais morreram em decorrência de complicações da Aids e a jovem foi adotada pelos tios.

Hoje, 26 anos depois, ela aprendeu a lidar com o preconceito e as diferenças. No quarto ano do curso de Psicologia, ela faz estágio na área e mora com o irmão mais velho em São Paulo.

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Aline Ferreira nasceu com o vírus HIV (Eduardo Enomoto/R7)

Conheça a história de Aline:

DIAGNÓSTICO
Tenho 26 anos e eu sou de transmissão vertical, que é quando nasce com o vírus. Meu pai descobriu primeiro, adoeceu e entre adoecer e morrer foi bem rápido. Minha mãe ainda ficou um tempo [viva] depois que adoeceu. Os dois morreram em decorrência dos agravos da Aids.  Temos várias hipóteses [sobre a transmissão]. Pode ter sido na hora do parto, via amamentação já que ela me amamentou o tempo inteiro, até quando já estava bem adoecida. Nessa época não existia uma orientação. Ela fez pré-natal, mas acho que naquela época ainda não era obrigatório exame de HIV. Logo que meu pai faleceu eles pediram o exame de nós três — eu, minha mãe e meu irmão — e foi constatado na minha mãe e em mim.

Eu fui adotada pelos meus tios. Meu pai adotivo é irmão do meu pai biológico e eles já tinham três filhos. Na época, foi um processo bem doloroso porque grande parte da família queria meu irmão porque ele era saudável mas existia até uma pressão dos médicos para que eu ficasse com a minha mãe porque não achavam que eu ia ter muita chance de vida. Então eles achavam que, como eu ia morrer de qualquer jeito, era mais humano eu morrer com a minha mãe do que fazer esse processo de adoção, que ela fez em vida. Meus pais decidiram adotar a gente justamente para evitar que a gente ficasse separado.

Durante a infância foi bem difícil porque minha mãe tinha muito medo que eu adoecesse então eu não frequentava escola. Ela me alfabetizou em casa e eu fazia uma avaliação de dois em dois ou de três em três meses. E foi assim que eu fui sendo aprovada. Já na adolescência, com uns 14/15 anos, é que ela foi percebendo que não dava para ficar só em casa e foi quando eu comecei a frequentar a escola, sair mais. Minha mãe sempre disse que eu ficava em casa por causa do HIV, embora eu achasse injusto porque eu tinha irmãos e via os meus irmãos com a vida deles, comum, e eu dentro de casa. Mas ela sempre me contou que foi por causa disso.

A minha geração, por ter nascido com HIV, foi uma geração educada para morrer, porque demorou muito tempo para que os nossos pais e as casas de apoio entendessem que a gente tinha uma vida, que podia tomar conta dela, mas a gente ficava o tempo inteiro, a cada aniversário achando que ia ser o último. Por mais que a gente estivesse bem e saudável. O HIV era maior e engolia tudo.

ACEITAÇÃO
Onde eu moro é um bairro pequeno, em Embu Guaçu. Quando os meus pais faleceram foi um acontecimento que demorou para abafar. Durante muito tempo eu fiquei marcada como sendo a filha do casal que morreu de Aids. Então na escola todo mundo já sabia. Ninguém falava nada para mim, mas eu ouvia comentários sobre banheiro, de mães que não queriam que eu frequentasse o mesmo banheiro que as outras crianças. Tem um dado momento, já quando eu ia para a escola, em que eu caio na quadra e aí paralisam tudo, suspendem a aula de educação física porque eu estava machucada na quadra. Foi difícil para eu aprender a lidar com essas situações porque até então era minha casa, minha família e era mais fácil. Do lado de fora doía mais.

Despois de um tempo, meu irmão decide fazer cursinho pré-vestibular, e eu achei que seria um bom momento para eu começar a ter uma vida normal. Era longe de casa, até fui morar em Santo Amaro para fazer cursinho. E foi ali que comecei a tomar conta da minha vida mesmo, de fato. Já tinha 17 anos. Fiz cursinho muito tempo, uns quatro anos, e eu queria muito a USP mas não conseguia passar na segunda fase e fui para a PUC fazer psicologia. Estou no quarto ano.

Culpa eu não senti muito. Mas raiva eu tive, principalmente na infância, de me questionar “por que só eu e meu irmão não?” Eu olhava meu irmão com uma vida normal e eu tinha que ficar em casa. Já passei por momentos assim inclusive de não conseguir lidar com meu irmão porque olhar para ele era olhar para uma vida que eu não ia ter. E eu achava que eu não ia ter. Já teve fase de eu achar que minha vida era ficar no quarto, que eu não ia estudar, não ia trabalhar, nada.

RELACIONAMENTOS
Demorou [para acontecer]. Primeiro porque eu sou uma filha bem alimentada do patriarcado. Minha mãe é bem rigorosa. Educou a mim e a minha irmã para casar e ter filho. E isso já era dificultado, mais o fato de eu ter demorado muito para me socializar. Então eu era supertímida, de não conseguir falar com ninguém e isso dificultou muita coisa. Meu primeiro namorado terminou comigo depois que eu contei do HIV. Eu tinha 17 anos e ficamos poucos meses juntos e ele ouvia as pessoas falarem que eu tinha [HIV] e achava que era brincadeira. Um dia ele me perguntou e eu confirmei. Ele quis terminar e disse que não ia conseguir ter uma vida normal. Agora estou com um menino, mas nos conhecemos em um grupo [de discussão HIV] e ele me conheceu falando disso. Mas já teve relacionamento em que eu não falei nada, começou e terminou sem saber, mas já teve relacionamento de eu falar logo de cara. Vai da pessoa.

 TEMOS QUE FALAR SOBRE ISSO
No começo, quando eu era adolescente, não precisava contar porque todo mundo sabia. Quando mudo de casa eu passo por um momento que eu queria que ninguém descobrisse por nada. Mesmo na casa da minha vó eu tirava rótulo dos remédios, guardava o mais escondido que eu podia, não falava sobre isso, não tocava no assunto. Depois comecei a pensar que não falar talvez fosse um preconceito contra mim mesma. Não falar era uma forma de eu não entrar em contato com essa história que é minha e faz parte de quem eu sou hoje. E é quando eu começo a mudar um pouco e a frequentar algumas ONGs para eu entender como eu falaria disso para outras pessoas até chegar nesse ponto em que eu falo normal.Sempre comento que a gente mudou muito no manejo do HIV, as medicações, coisas mais fáceis, menos efeitos colaterais, mas não mudamos a forma de viver com HIV. Ainda é muito difícil falar sobre isso, ainda tem gente que pega resultado positivo e acha que é o fim do mundo, que se desespera, até porque a gente não pensa no HIV só como um possível adoecimento. Tem todo o estigma, uma história, você já se coloca em um lugar de culpa, de achar que mereceu por um motivo ou outro. O HIV está colocado ao lado de algo que não é bem visto na sociedade. É colocado ao lado de uma sexualidade tida como errada, uma promiscuidade e ainda é muito difícil falar sobre isso, mas quando a gente coloca em discussão a gente coloca N outras coisas em discussão como a forma de lidar com o próprio corpo, de como a gente se coloca no mundo, a gente não está falando só do HIV, a gente está falando de um vírus que foi colocado em um momento histórico em várias caixinhas e falar dele é falar sobre essas caixinhas. Por isso eu acho importante.Já aconteceu de eu passar em pronto socorro com uma enxaqueca e falo que faço tratamento de HIV e o médico vem com um sermão superpreparado: “Ah vocês, meninas que não se cuidam, que dormem com todo mundo”. Eu comento que nasci com HIV e é um choque para eles. E falar que eu nasci com isso é colocar que mesmo se eu estivesse transando com todo mundo também seria um direito meu. Então tem essa dificuldade dos médicos. Nem todo pronto socorro aceita atender quem tem HIV. Dizem que não sabem medicar e transferem para hospitais de referência. Eles falam que é por causa da medicação, mas acho estranho e me faz pensar que formação é essa que estão tendo em que você não sabe medicar alguém que faz tratamento antirretroviral. É bizarro. Mas é bem comum.TRATAMENTO
Nesse momento eu não tomo medicação. É uma questão bem polêmica. Eu decidi não tomar porque eu já tomava há muito tempo e como eu já estava indetectável eu pedi para parar um tempo. Com o vírus controlado é possível [parar], o que não pode é abandonar o tratamento. Dar tchau e pronto. Eu faço exames regularmente para ver como está a carga viral e estamos sempre em estado de alerta. Vai fazer quase dois anos que parei e está tudo certo nesse período, mas sou um ponto fora da curva. Geralmente quando para a chance de adoecer é bem maior e sei que vou ter que voltar, mas uma das substâncias que eu tomava tem uns sintomas bem psicóticos. Eu tinha uns delírios, insônia, dor de cabeça. Era difícil lidar porque eu já estava na universidade e eu não conseguia fazer prova, não conseguia sair de casa.

PREVENÇÃO
Acho que primeiro é falar de outras tecnologias possíveis e usar outras formas de chegar [nas pessoas]. O GIV [Grupo de Incentivo à Vida, onde Aline atua com o grupo de jovens] está com um projeto de arte urbana, falar de prevenção com lambe-lambe, grafite, que acho que é melhor do que ficar no farol entregando camisinha. E tem que estar em outros espaços. As ações ficam muito no centro e com o público gay, o que acaba marcando de novo todo o estigma e o estereótipo. É importante diversificar e lembrar que na periferia também tem HIV, que quem morre mais são as mulheres negras, ir para esses espaços, com outra linguagem, com outra forma de chegar. A que a gente não é educado para prevenção, a gente vai ao médico quando estamos muito doentes e a estrutura de saúde é pensada assim. Tem uma estrutura básica sucateada e se investe em áreas especializadas, UTI, grandes obras. Temos que mudar nossa própria concepção se saúde, temos que conseguir falar de HIV e DSTs e todo o resto com naturalidade, sem toda essa moralidade que eles colocam. E hoje não faz nenhum sentido [pensar em limitações]. Eu não deixo de fazer nada por conta do HIV, a vida segue.

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