Moonlight: um filme que mergulha na humanidade de um jovem negro

“Em certo momento você precisa decidir quem você quer ser! Você não pode deixar ninguém tomar essa decisão por você”. Essa é uma das frases mais marcantes de Moonlight, filme do diretor Barry Jenkins, que conta a história do jovem negro Chiron em 3 fases de sua vida – infância, adolescência e juventude. Na infância, conturbada pela ausência do pai e pelos problemas enfrentados pela mãe, o tímido menino faz as primeiras perguntas através das quais ele começa a tentar entender quem ele é. E é já nessa primeira parte que o filme nos desafia a enxergar todos os temas que veremos a seguir para além de “recortes” que categorizam (e diminuem) pessoas negras.

Chiron e Kevin (Jharrel Jerome) (Foto: Divulgação)

Moonlight não é um filme que fala apenas sobre sexualidade, como algumas resenhas tem classificado de forma rasa, mas sobre a humanidade de pessoas negras, particularmente de um jovem negro, com toda a complexidade que isso traz consigo. O filme mostra como um ambiente de violência, pobreza e de família desestruturada ajudam a construir um determinado tipo de masculinidade imposta aos meninos, jovens e homens negros. Não dá pra entender Moonlight sem esse olhar, sem entender que sobre aquele humano são forçados certos perfis por conta do contexto racial em que vive – e que mesmo assim ele continua humano.

E é nessa situação em que Chiron vai se ver na adolescência e na vida adulta. É a partir dessa fase que ele é obrigado a lidar com vários outros tipos de pressão e violência, ao mesmo tempo em que vê no seu amigo Kevin alguém em quem ele pode confiar, e é com ele que tem a oportunidade de explorar e tentar entender sua sexualidade pela primeira vez. Chiron é, desde a infância, ridicularizado por aparentar ser gay, mesmo que ele nem entendesse direito o que é ser gay. Na adolescência, é agredido frequentemente por outros jovens negros que não o aceitam por isso. Acuado, sem perspectivas, ele recorre também à violência como resposta e cai em uma vida de mais marginalidade por conta disso. Esse tipo de masculinidade rude, agressiva, que nos destrói por fora e por dentro, é imposta a todos nós pelo racismo (com machismo, homofobia e outras coisas que venham do mundo branco) e muitos dos nossos vão ser instrumentos dessa imposição. E tanto a violência que vem do mundo quanto aquela que desenvolvemos como resposta limitam nossas potencialidades como humanos.

Chiron e Kevin (Jharrel Jerome) (Foto: Divulgação)

Homens negros não podem amar, não podem demonstrar sensibilidade, não podem compartilhar afeto. Homens negros tem que ser fortes, duros e insensíveis o tempo todo. Somos violentados física e psicologicamente desde que nascemos e essa violência acaba desabando nas famílias e mulheres pretas ao nosso redor. Nos fechamos, nos endurecemos, nos proibimos e reprimimos qualquer tipo de afetividade ou fragilidade que possa mostrar que somos sensíveis e, portanto, humanos. Sendo assim, um homem negro também não pode não ser hétero, por que isso afronta padrões de sexualidade, afetividade, cultura e comportamento que o racismo nos impôs. E o que Moonlight faz é mostrar como essa masculinidade deformada e imposta ao homem negro é moldada por um mundo racista que confina pessoas negras a viver em um ambiente de violência e miséria.

Sobre se reconhecer na negritude do outro

De alguma forma, Moonlight mostra a desconexão entre as pessoas negras como uma fragilidade que nos torna mais vulneráveis como indivíduos e como comunidade. É quando não nos reconhecemos no outro e não enxergamos mais humanidade entre nós. Paula, mãe do protagonista, é uma mulher divorciada e viciada em drogas que não aceita que Chiron possa ser gay. Mas é uma mulher negra, abandonada e fragilizada, como muitas das nossas mães negras, que se vêem na missão impossível de proteger e cuidar da família, ao mesmo tempo em que não tem quem as proteja. E, nos conflitos com a mãe, Chiron acaba encontrando alguma referência positiva em Juan e Teresa, que se tornam como família para ele. Mas, apesar disso, a construção de Chiron como pessoa está sempre ligada a quem é sua mãe. Não é por acaso que a vida desse jovem volta a ter uma perspectiva positiva quando ele enxerga a humanidade de sua mãe, apesar dos erros que ela possa ter cometido, e se enxerga nela.

Na ausência do pai, Chiron tem Juan como uma figura paterna que o guia em meio a todas as dúvidas que ele começa a ter sobre quem ele é já no início do filme. Aqui Moonlight explicita a importância dessa figura na vida de um jovem negro – e o impacto de sua ausência. O momento mais simbólico disso é quando Juan ensina Chiron a nadar. Nos EUA, 70% das crianças negras não sabem (e/ou tem medo de) nadar e isso é um trauma histórico que vem da soma dos afogamentos de pessoas negras durante escravidão e segregação, e do fato de que até os anos 60 negros eram proibidos de frequentar piscinas ou praias públicas. Por isso, o mar se tornou símbolo de perigo e nadar virou um trauma para muitos afro-americanos.

Juan, ensinando Chiron a nadar e se manter confiante no mar é um símbolo explícito da figura do homem negro guiando e protegendo seu filho em meio a um mundo racista que ameaça o afogar o tempo todo. O problema é que Juan é um vulto, ele não dura muito tempo na vida de Chiron – e isso também é muito simbólico. Muitos de nós não tem essa figura paterna e Moonlight mostra nessa cena como a construção da nossa masculinidade, como homens negros, muitas vezes é feita de restos, ausências e vácuos afetivos quase nunca preenchidos de verdade.

Mas e se nós tentarmos preencher esses vazios entre nós, nos apoiando e compartilhando o que há de positivo em nós, mudando a imagem cristalizada pelo racismo que temos de nós mesmos? Nós, homens negros, somos diversos. E, para nos respeitar como humanos, é preciso respeitar nossa diversidade. O que significa também saber se enxergar no outro homem negro ou na mulher negra, mesmo com nossas diferenças. É nos permitir a liberdade de sermos quem quisermos ser, de extrapolar as fronteiras que o racismo nos impõe. Moonlight, ignorando estereótipos superficiais e humanizando seus personagens, nos lembra que quando nos reconhecemos em outras pessoas negras nós podemos redescobrir e recuperar a humanidade que nos foi negada. Parece simples, mas nós, homens negros, temos muito o que pensar sobre toda a complexidade disso: sim, nós somos humanos.

  • Moonlight: Sob a Luz do Luar” estréia no Brasil no próximo dia 23 de fevereiro.

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