Ryan, de apenas 4 anos, morreu com um tiro de fuzil na barriga durante uma ação policial, em Santos (SP), enquanto jogava bola com o irmão e os amigos em frente à sua casa nesta terça (5). O pai dele, Leonel Andrade, já havia sido morto, no começo deste ano, em outra operação policial na mesma comunidade pobre — tinha uma deficiência física e usava muletas. A tragédia em dois atos mostra o que acontece quando um governo adota a força bruta como política, enterrando a inteligência.
Este texto, já aviso, é inútil. Porque boa parte dos paulistas não vai perder uma noite de sono se mais uma criança pobre morreu com as tripas para fora. Enquanto o número de mortos estiver subindo, a sua (falsa) sensação de segurança está garantida. A sensação da viúva, Beatriz, que em nove meses perdeu o marido e o filho caçula simplesmente por morarem no morro? Dane-se.
“João, o irmão mais velho, de 10 anos, me contou que eles estavam jogando futebol e a bola tinha caído numa casa do outro lado da rua. Ele correu para pegar quando ouviu os tiros. Disse: ‘daí eu me joguei no chão, no meio do mato’. Perguntei a ele porque tinha se jogado no chão ao ouvir tiros, ao que ele respondeu: ‘porque é assim que a gente faz quando tem tiroteio, tia’. Uma criança não deveria ter que saber lidar com esse tipo de situação”, conta Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Segundo ela, que foi ao enterro de Ryan, João se sente culpado pela morte do irmão. “Acha que se tivesse levado o irmão junto com ele para buscar a bola, a história seria diferente.” Crianças também não deveriam se sentir culpadas pela morte do irmão durante uma ação policial. Quem precisa pedir desculpas é o governador Tarcísio de Freitas e o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, por não serem capazes de protegê-las.
Aliás, durante o velório de Ryan, a polícia estava lá. Mas não se desculpou, pelo contrário, assediou e intimidou os presentes.
Óbvio que os policiais envolvidos não foram à comunidade com a intenção de matar Ryan, mas ao serem executores da política paulista, que, assim como as políticas baiana e fluminense, tem na letalidade policial um foco central, sabem que isso pode acontecer em confronto com criminosos. Eles mesmos acabam se colocando em risco por conta disso, matando e morrendo.
Além do pedido de desculpas, o governo de São Paulo precisa explicar a morte de um menino de quatro anos, não ficar irritado com quem cobra explicações. Ao ser questionado sobre o caso e criticado pela codeputada Paula Nunes (PSOL), Derrite disse que a parlamentar fazia “vitimismo barato” usando a morte do menino para fazer politicagem. O que é uma ironia, porque São Paulo é que vem adotando a morte como política de Estado. E isso sai caro para muita gente.
Dados da própria secretaria apontam que a polícia matou 496 pessoas de janeiro a setembro, número que supera os anos de 2021, 2022 e 2023 inteiros. O governo diz que “as mortes em decorrência de intervenção policial são resultado da reação de suspeitos à ação da polícia”. Ou seja, se morreram é porque são culpados, o que dá ao cano da arma do agente de segurança o poder de investigador, promotor, juiz e carrasco.
Após a morte do menino, Tarcísio saiu em defesa do seu secretário. “Você tem se saído muito bem e se tornado uma referência para todo o Brasil”, diz. Ryan e Leonel discordam, mas não estão mais aqui para questionar.
Enquanto crianças morrem em comunidades pobres, pelas mãos da polícia e do tráfico, São Paulo vai sendo controlado aos poucos pelo PCC. Sim, o crime mais perigoso passa ao largo das favelas.
Por exemplo, reportagem de Flávio Costa, Josmar Jozino e Luís Adorno, no UOL, em outubro, mostrou que, na avaliação da Polícia Civil, as instituições municipais do Guarujá foram “sequestradas” pelo Primeiro Comando da Capital. E cita parecer do relatório da Operação Hereditas, que investiga fraudes em licitações que beneficiaram empresas ligadas a integrantes da facção, que está nas mãos do Ministério Público.
As sacanagens nos contratos chegam a R$ 70 milhões e três vereadores são investigados, tendo sido alvos de mandados de busca e apreensão – entre eles Edmar Lima dos Santos (PP), o Juninho Eroso, presidente da Câmara. Todos foram reeleitos no dia 6 de outubro. Não é a única prefeitura nessa situação.
Quem acha que o fundo do poço é um grupo político tentar um golpe de Estado ao perder a eleição, precisa urgentemente rever seus conceitos. Sim, no fundo do poço há um alçapão que nos leva muito mais fundo, talvez em direção a um narcoestado.
O PCC virou uma máfia e descobriu que desviar dinheiro público pode ser mais seguro e lucrativo que fazer logística de cocaína. Na capital, tivemos risco de um partido, o PRTB de Pablo Marçal, cuja cúpula se orgulha da relação com o PCC ganhar a eleição. Lembrando, é claro, que a facção usou empresas de transporte urbano para lavar dinheiro na gestão Ricardo Nunes, segundo o próprio Ministério Público.
O avanço do PCC na política acontece paralelamente à matança realizada por policiais militares na Baixada Santista, com epicentro no Guarujá. Entre julho de 2023 e abril de 2024, 84 pessoas foram mortas nas operações Escudo e Verão.
Um dos contrastes mais chocantes é o abismo entre os relatos de parentes dos mortos e os dos policiais envolvidos. Quem diz a verdade? O problema é que muitos policiais não usavam as câmeras corporais, que poderiam resolver isso. E imagens dos que as usavam chegaram, convenientemente, com problema ao Ministério Público. O governo Tarcísio de Freitas? Pareceu confortável com a falta de resposta. Afinal, em São Paulo, chacina de pobre e negro gera votos nas eleições.
A crítica ao comportamento violento da polícia não é defesa de “bandido”, mas sim do pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de todos os conflitos.
A polícia, um dos braços armados do Estado, deve seguir as leis e não usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de cometer injustiças e gerar filhotes monstruosos. Como as milícias que mantêm o poder político ou econômico em comunidades, decidindo quem morre e quem vive, tornando-se piores que outras formas de crime organizado.
Parte da população que não vive áreas ocupadas pelo tráfico ou pela milícia, cansada da violência, apoia desvios de Justiça por parte do Estado. E festeja mortes aceitando sem questionar o julgamento sumário trazido pela bala: se a pessoa morreu pelas mãos da polícia é porque era culpada de algo.
Que culpa tem Ryan além de ter nascido em um estado onde o poder público está despreparado para lidar com vidas?