“Mudança está em reconhecer os comportamentos e recuar”, diz especialista

Enviado por / FonteEcoa, por Berta Marchiori

A avaliação é uma ferramenta fundamental não só para a gestão de políticas públicas e projetos sociais, mas também para promover mudanças sociais com equidade. É com esse pensamento que a especialista norte-americana Jara Dean-Coffey fundou a EEI (Equitable Evaluation Initiative – Iniciativa de Avaliação Equitativa) e atua há 25 anos com fundações e organizações sem fins lucrativos para aprofundar e ampliar o entendimento sobre a relação entre equidade e avaliação.

Apesar de a discussão sobre questões como diversidade e equidade continuar a crescer no setor filantrópico, assim como em outras áreas, o processo de avaliação das ações muitas vezes não considerava a visão de mundo e mentalidade adotadas, que, tradicionalmente, priorizam um mundo branco dominante. É preciso questionar e ajustar as abordagens de avaliação em prol da equidade e para que não reforcem as mesmas desigualdades que as ações buscam solucionar.

“Os dados que coletamos no processo de avaliação não existem por si só. É feito por humanos —lembrem-se de que mesmo softwares são programados por humanos. Quem são essas pessoas, a experiência e expertise delas, os valores e crenças que moldam o que elas perguntam, veem, ouvem, entendem e valorizam são fatores importantes de serem explicitados e, em alguns casos, mudados”, diz Jara, que é negra e descendente de escravizados. “É tempo de questionar e tornar explícito os valores e pressupostos e assegurar que eles façam sentido para as complexidades do século 21”, reforça.

A avaliação, em sua visão, deve ser usada para investigar e alinhar as práticas e políticas ao contexto de equidade e inclusão racial e cultural. Para Jara, que falou sobre a experiência norte-americana no 15º Seminário Internacional de Avaliação, só caminharemos em direção à equidade quando as instituições que trabalham para as mudanças sociais tiverem de fato absorvido esse princípio e considerarem em todas as suas atividades e processos marcadores sociais como raça, gênero e classe. “Isso vai requerer que os avaliadores desaprendam essa estrutura branca dominante, controlem as tensões que estarão presentes enquanto mudamos os paradigmas e continuem a desenvolver a prática para estar a serviço da equidade.”

“A mudança está em ser capaz de reconhecer os padrões e comportamentos e recuar […]. Estar presente e atento permite que valores e ideais estejam na linha de frente de cada empreitada, seja pequena ou grande”, afirma.

Em tempos de pandemia e protestos contra a violência policial nos Estados Unidos, “o desafio será estar presente no trabalho e evitar o não cumprimento que frequentemente vem em tempos de ruptura e estresse. Em vez de correr para reagir, momentos como este requerem que se desprendam das velhas maneiras de ser, pensar e fazer, o que significa desacelerar para ser intencional, atencioso, reflexivo e responsivo.”

Para Jara, o momento em que vivemos pode proporcionar uma porta para reflexão e mudança de cultura e práticas “para focar em equidade e abraçar as complexidades do século 21”.

Leia abaixo a entrevista com a especialista:

Ecoa – O que são a Equitable Evaluation Initiative – EEI e o Equitable Evaluation Framework? – EEF e como são aplicados?

Jara Dean-Coffey – A EEI é uma iniciativa de cinco anos (2019 – 2023) que busca mudar o paradigma para que a avaliação se torne uma ferramenta para a equidade, da mesma maneira que desenvolve as definições de validade, rigor e complexidade no século 21. É focada em instituições que já adotam a equidade como a essência do seu trabalho e têm abertura para desafiar diversas “normas” dos EUA.

Nossos objetivos em 5 anos são apoiar e avançar em: uma visão compartilhada da prática da avaliação que melhor serve, em direção a um mundo em que todos prosperem; liderar e colocar em prática o Equitable Evaluation Framework (EEF)?; uma “investigação” compartilhada no ecossistema de avaliação e equidade sobre todos os aspectos do processo avaliativo; expansão de uma prática de avaliação que desafie e adote novos caminhos e conceitos de validade, rigor e complexidade; e a criação de um campo sustentável de praticantes de EEF.

Pelo seu próprio desenho, a EEI focou seus esforços iniciais na filantropia, um ponto de entrada crucial por ser o principal comprador e usuário de avaliação nos Estados Unidos fora do governo. Fundações guiam a oferta, ou seja, os serviços que os avaliadores e consultores oferecem. Elas também têm o poder de moldar e criar demanda em organizações sem fins lucrativos e comunidades que não são bem atendidas pelo paradigma de avaliação predominante. A iniciativa é dedicada a trabalhar com e através desses três setores para construir um entendimento compartilhado, desafiar premissas e criar novas abordagens. Nós esperamos desenvolver a estratégia de consultoria mais para o fim do ano e estamos começando a explorar caminhos para apoiar professores na academia.

O Equitable Evaluation Framework? não é um método. Não é algo a ser aplicado, mas um conjunto de princípios que exige que nós, como humanos, sejamos diferentes no trabalho. Acreditamos —e vimos até agora—que isso transforma como pensamos e definimos dados, evidências, rigor, validade e prova, de forma que eles sejam mais complexos, facetados e contextualizados e, como resultado, o que é metodologicamente possível também evolui.

O EEF é um conjunto de três princípios e ortodoxias, que são:

  • o trabalho de avaliação está a serviço da equidade e contribui para ela: produção, consumo e gestão da avaliação e do trabalho avaliativo devem ter em sua essência a responsabilidade de progredir em direção à equidade;
  • o trabalho avaliativo deve ser elaborado e implementado de uma maneira que seja compatível com os valores fundamentais do trabalho de equidade: multiculturalmente legítimo e orientado para que os participantes sejam donos do processo.
  • o trabalho avaliativo pode e deve responder questões cruciais sobre o efeito da estratégia em diferentes populações, o efeito da estratégia nos impulsionadores sistêmicos subjacentes da iniquidade e os caminhos nos quais a história e o contexto cultural estão enredados nas condições estruturais e na própria iniciativa de mudança.

As ortodoxias —são nove atualmente— são práticas que são consideradas “corretas” em relação ao trabalho avaliativo dentro do ecossistema da filantropia nos EUA. Todos os atores as manifestam de alguma maneira e elas refletem uma mistura do capitalismo e uma estrutura dominante branca. Elas são obstáculos ao avanço dos princípios da Avaliação Equitativa. É fácil focar no primeiro princípio como principal, mas todos os três princípios proporcionam um ponto de entrada para um entendimento e conhecimento mais profundos.

Quais são os impactos desse trabalho para a sociedade?

Primeiramente, é difícil falar sobre avaliação de um setor inteiro e ainda mais difícil sobre a sociedade em geral. Sempre há exceções. Depois, o foco mais importante dessa questão é para onde podemos ir na próxima era como resultado da aplicação do EEF. De novo, nosso foco é os EUA, mas [esse trabalho] parece ter ressonância em outros países, e estamos no início de nossos esforços.

Avaliação —tanto passada quanto presente — por fundações têm sido primeiramente focadas em organizações não lucrativas que recebem financiamento e as pessoas que fazem parte. Enquanto alguns trabalhos avaliativos podem focar em aprender mais sobre uma comunidade ou grupo, e outros na efetividade de uma estratégia de longo prazo, eficiências são o foco mais intenso. Avaliação é um elemento crítico e a função de estratégia e aprendizado ainda é mantida separada e silenciosa, o que, em parte, resulta em relações transacionais interna e externamente. Isso pode apoiar o modelo de eficiência e alocação de recursos para avaliação e aprendizado, mas o faz com consequências involuntárias ou resultados inconscientes (ou conscientes em alguns casos) que agravam as circunstâncias apresentando soluções não realizadas e resultados inalcançáveis.

Nós não acreditamos que a avaliação deva continuar a estar a serviço de avaliar o valor humano, motivação ou realização. Essa estrutura presume que existe um “bem e um mal” e frequentemente o que é considerado “bom” foca na branquitude e na estrutura branca dominante como ideal. Nós enfatizamos o fazer a avaliação. A entrega do serviço. A tentativa de melhorar a vida de alguém, das crianças ou da comunidade — a eficiência do fazer como se eficiência e efetividade fossem simbióticas quando não são.

Conforme avançamos o EEF, nós vislumbramos um campo de avaliadores que expandem as definições de rigor e validade e abraça as complexidades do século 21. Isso vai requerer que os avaliadores desaprendam essa estrutura branca dominante, controlem as tensões que estarão presentes enquanto mudamos os paradigmas e continuem a desenvolver a prática para estar a serviço da equidade. Essa construção assegura que todos nós tenhamos a responsabilidade de fazer melhor porque estamos aprendendo a como sermos melhores nesse espaço. Nos próximos 3 anos, continuaremos a trabalhar com nossos parceiros para cocriar os caminhos para aplicar o EEF na prática. Conforme aprendemos nós seremos capazes de atualizar o campo.

Você poderia dar um exemplo que ilustre a EEI na prática?

Conforme nossos parceiros colocam o EEF na prática, estamos notando mudanças importantes. No início do reconhecimento e reação à pandemia nos EUA, nossos parceiros, como outros, estavam descobrindo como responder às necessidades da comunidade. Frequentemente a urgência é a cama para o abandono de ideais e valores. Não há tempo suficiente para desacelerar, prestar atenção, ser intencional, com a esperança de que quando houver tempo nós consertaremos as coisas. Mas muitas vezes esse olhar retrospectivo não acontece ou fica tão distante para ser reexaminado, recalibrado e redistribuído. A mudança está em ser capaz de reconhecer os padrões e comportamentos e recuar —algumas vezes só uma ou duas respirações e uma ou duas conversas para levantar questões decisivas sobre quem, como, por quê e até que ponto, de modo a estar totalmente de acordo.

Estar presente e atento permite que valores e ideais estejam na linha de frente de cada empreitada, seja pequena ou grande.

Nossos parceiros se aproximaram uns dos outros durante a pandemia. Essa aproximação foi liderada pela Fundação Oregon Community, que quis conhecer e engajar uma conversa sobre como os outros na nossa comunidade estavam garantindo os esforços guiados pelo EEF. A partir do trabalho que a EEI estava fazendo com a Fundação Annie E Casey, o Opportunity Spectrum foi criado para apoiar outros que buscam engajar esse framework nas suas respostas. Isso é a EEI em ação. Não é sobre uma organização, um projeto específico ou um esforço. É sobre construir um campo sustentável de prática e praticantes que estão forçando os paradigmas e fronteiras e apoiando uns aos outros durante o trabalho.

Você acredita que a avaliação, da maneira que é feita hoje, está atendendo a sociedade da melhor maneira? O que poderia ser aperfeiçoado?

Avaliação “determina o mérito ou valor” de alguma coisa. Quem determina? O que está informando essa determinação? Os dados que coletamos no processo de avaliação não existem por si só. É feito por humanos —lembrem-se de que mesmo softwares são programados por humanos. Quem são essas pessoas, a experiência e expertise delas, os valores e crenças que moldam o que elas perguntam, veem, ouvem, entendem e valorizam são fatores importantes de serem explicitados e, em alguns casos, mudados.

Dados são relacionais e o significado deles ainda mais. O “conhecimento” que reivindicamos dos esforços de avaliação reflete pontos de vista. Os métodos que escolhemos também refletem quem somos e, dadas as origens da avaliação, escondem algumas crenças nomeadas como objetividade e rigor, para citar algumas. É tempo de questionar e tornar explícito os valores e premissas e assegurar que eles façam sentido para as complexidades do século 21. E, se você for comprometido com a equidade, em qualquer formato, você tem a função de reconceituar sobre o quê e para quê é a avaliação.

Como a pandemia da Covid-19, os protestos nos EUA contra a violência policial e o escrutínio da iniquidade e do racismo sistêmico afetam seu trabalho?

Pensamos nosso trabalho levando em conta o momento em que vivemos, mas esse trabalho começou antes de nós o iniciarmos. Nós simplesmente vimos uma oportunidade e abertura para colocar luz nessa conversa em 2013. A EEI é focada no ecossistema filantrópico, especialmente naqueles que já estavam no trabalho de desafiar a cultura branca dominante e os paradigmas de avaliação. O desafio para nós, que também está em prática na EEI, e para nossos parceiros será estar presente no trabalho e evitar o não cumprimento que frequentemente vem em tempos de ruptura e stress. Em vez de correr para reagir, momentos como este requerem que eles se desprendam das velhas maneiras de ser, pensar e fazer, o que significa desacelerar para ser intencional, atencioso, reflexivo e responsivo.

Nós esperamos que este momento ofereça a todos nós no setor filantrópico um outro ponto de entrada para fazer melhor por meio de uma profunda reflexão pessoal e organizacional, realinhamento de recursos e mudando suas culturas e práticas para focar em equidade, abraçar as complexidades do século 21 e avançar as definições de rigor e validade.

 

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