Mulher negra na comunicação: gestão em favor das TVs públicas

Acho que se nós estivéssemos unidos, o campo público de comunicação seria imbatível. Comunicação tem a ver com política de Estado. Interação e trabalho coletivo podem gerar produtos melhores”. Esses são algumas das considerações de Regina Lima, presidenta da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, que lidera uma rede nacional para fortalecer as TVs públicas. Ousadia e criatividade são atributos dela, que já reergueu a TV Cultura do Pará e recuperou 75% das retransmissoras públicas, antes nas mãos da iniciativa privada.

 


Por Valéria Lima e Isabel Clavelin
Com colaboração de Regina Adami

Regina Lima é presidenta da Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais) desde outubro de 2009, quando foi empossada em cerimônia na Câmara dos Deputados, em Brasília. Mulher negra, paraense de nascimento, ela morou por quase 10 anos no Rio de Janeiro, período em que se dedicou ao mestrado e doutorado em Comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

No seu retorno ao Pará, ingressou como professora na UFPA (Universidade Federal do Pará), onde chefiou o curso de Comunicação, no período de 2002 a 2004. De lá pra cá, entrou no universo das TV públicas. Área em que inovações como a reestruturação da Funtelpa (Fundação Paraense de Radiodifusão) e a valorização da cultura local, com a ousada cobertura dos jogos do campeonato de futebol estadual, a credenciaram para comandar a Abepec. Nesta entrevista para o Ìrohìn, concedida no Rio de Janeiro, Regina Lima lista oportunidades e desafios para as emissoras públicas brasileiras, como inovação tecnológica e programação que valorize a pluralidade de vozes e conteúdos.

 

Ìrohìn – Como a mulher negra chegou nesse espaço? Na presidência de uma associação nacional de TVs públicas?
Regina Lima – Tenho o histórico de movimento estudantil e movimento sindical no sindicato dos jornalistas. Investi na carreira acadêmica porque a universidade é um campo de conhecimento e não adiantava apenas minha experiência prática. Minha área sempre foi de reflexão da mídia, comunicação e política. Voltei ao Pará, em 2004, e fui convidada para dar aula. Coordenei o curso de comunicação por um período e desenvolvi uma série de ações. Geralmente, em órgão público, as pessoas dizem que não dá pra fazer algo, porque fazer dá trabalho. Qualquer ação dentro de órgão público dá muito trabalho, então precisa querer. Fiquei no curso, estava dando aula quando a governadora [Ana Júlia Carepa] se reuniu com uma série de professores da Federal. Foi quando ela me convidou para dirigir a Funtelpa (Fundação Paraense de Radiodifusão), que engloba rádio, TV, portal na internet e revista.

 

Ìrohìn De que forma você encarou esse desafio de comandar o sistema público de comunicação do Pará?
Regina Lima – A Funtelpa era mais um problema para o governo. Como é que iria administrar? Ou eu fazia diferente ou eu faria como todo mundo fez. Lembro que o pessoal me cobrava muito: – “antes a gente investia em conteúdo”. Chamei os funcionários no auditório e disse pra eles: “eu vou investir em conteúdo agora pra quê? Se essa TV não vai pra lugar nenhum”? A TV não chegava em casa nenhuma, cobria Belém, mas não ia para outros lugares do Pará. Não ia para o estado, porque as concessões e outorgas estavam nas mãos da iniciativa privada. Por que eu iria gastar um dinheiro com conteúdo pra ninguém assistir? Pra ninguém ver. Não adianta você dar uma entrevista se ninguém vai conseguir ver, nem no município.

 

Ìrohìn – Estrutura tecnológica e técnica em busca da qualidade.
Regina Lima – Eu fiz ação estruturante dentro da Funtelpa. Percebi que era preciso pegar as retransmissoras de volta, e foi o que fizemos. Hoje é outra realidade. Talvez seja a emissora que mais cresceu. Cresceu do ponto de vista de que ela retomou. A governadora foi quem mais levou pancada porque estava tirando da mão do cara. É uma afiliada da Globo, então não é um processo fácil. De 80 retransmissoras, recuperamos 60. Por exemplo, as OTs (ondas tropicais) para um estado como o Pará é um meio de comunicação importantíssimo, porque é o único sinal que sobe e qualquer pessoa pega esse sinal, até mesmo fora do Brasil. A OT não tem limite de alcance. Retomamos a OT no final de outubro de 2009 e a TV está fazendo o maior sucesso. O que a gente recebe de ligação até das Guianas… Na verdade, não fiz nada de novo. Nada que não existisse na Funtelpa, só que não estava sendo usado por ela. O meu trabalho foi de retomada de tudo aquilo que era dela e que estava fora. Hoje se você olhar, a Funtelpa é uma TV vista. Agora que a gente está no estado, a gente vai começar a mexer no conteúdo.

 

jornalistas2Ìrohìn – Como vocês conquistaram o público do Pará?
Regina Lima – O Barbero [Jesús Martín-Barbero, pesquisador de Comunicação] sempre diz: a gente precisa de uma matriz cultural que agregue e atraia os olhares. E onde a gente foi? Convencemos a governadora a comprar o campeonato paraense de futebol. Aí duas coisas legais: os times estavam cobrando do estado uma contribuição e o estado entendia que dar uma contribuição por dar não resolveria. Então qual foi a lógica? A governadora ajudou os times, mas a contrapartida foi a exclusividade da transmissão dos jogos pela TV Cultura. Foi para o estado todinho. Recentemente, fizemos uma pesquisa e a audiência foi lá pra cima. Nos dias de jogos, podia ter o campeonato nacional que tivesse…

 

Ìrohìn – Como incorporar a pluralidade racial e de gênero nas TVs públicas?
Regina Lima – Você corre o risco de entrar em programa de auditório que começa a trazer um monte de gente que às vezes não tem nada a ver. Pode ser um programa, por exemplo, de debate que traga para a discussão todas essas questões que estão aí. Mas não tem um modelo definido, não tem nenhuma fórmula. A gente precisa trazer os movimentos para discutir e encontrar uma fórmula que com certeza não é: “eu quero um espaço na TV pra mulher fazer um programa”, isso necessariamente não atende.

 

Ìrohìn – E a participação social?
Regina Lima – Não adianta só discutir que o espaço está lá, nós não temos espaço, e aí? A gente dá o espaço, vamos supor, e aí? Vocês vão se sentir contemplados? Claro que não. Porque se eu não tiver no transversal da grade da programação uma maneira de respeitar o movimento, não adianta nada dar o espaço pra vocês. Eu posso até dar por um desencargo de consciência, mas será que é isso que nós queremos? A gente precisa sentar, e sem ter medo. Fica um grupo de um lado com medo de ser criticado e do outro, querendo criticar cada vez mais. A gente tem que baixar a guarda, sentar e começar a discutir. É isso que a Abepec vai fazer agora no debate sobre conteúdo. Que conteúdo é esse? Até hoje a gente só pensa em grade. Queremos fazer um programa, queremos, mas qual é a discussão, que conteúdo é esse? Vamos supor que a gente vai faça um programa sobre as mulheres, qual é o conteúdo que nós queremos?

 

Ìrohìn – Como os interesses sociais estarão representados?
Regina Lima – Quando você descobre o pulo do gato como projeto, todo mundo tem dificuldade de fazer projeto, emplacar projeto nos grandes órgãos, estadual ou federal. Na hora que você descobre como faz isso e como é que aceita lá, todos os teus projetos emplacam. Então precisamos encontrar o caminho. Inegavelmente com todas as deficiências dessas TVs, é onde há espaço. Talvez o que esteja faltando é não só pensar na grade e garantir o espaço, mas pensar o conteúdo que queremos e como vamos trabalhar

 

Ìrohìn – A cobertura parcial nos estados impede o aumento da audiência. Temos a experiência da Bahia. A maioria das cidades do interior não tem acesso à TV Educativa nem à TV Brasil. O que está sendo feito em relação a isso?
Regina Lima – Você tem que conhecer que é uma estrutura de comunicação, que é o caso da Bahia, do Pará, enfim, é o caso das TVs todas, nós geramos da capital, onde ocorre todo o processo de produção e geração. O que vai para os municípios é o que se chama de RTV, são as retransmissoras. Passa aquilo que a capital está produzindo. Como você tem dificuldade de estar nos municípios, você reproduz para o interior um modelo que é de notícias ali da capital de vocês, e os municípios ficam à parte desse movimento. Então qual é o mecanismo? Eu não consigo, pedi quatro geradoras pra quatro municípios pólos do Pará. E o Ministério das Comunicações negou, disse que eu não posso ter geradoras nesses municípios.

 

Ìrohìn – A situação voltou pra vocês e a população perde…
Regina Lima – O governo do Pará tem um projeto chamado “Navega Pará”, que é a distribuição de internet grátis para todo o estado através de fibra ótica. E o que estou fazendo como TV? Estou negociando com o projeto para que em cada localidade que ele vá seja criado um infocentro, que é uma lan house ampliada. Eu estou pedindo pontos dedicados para qualquer pessoa no município que chegar naquele local com o celular, ligar, passar informação no infocentro, pluga, chega imediatamente pra mim. Se eu mesmo mandar alguém pra lá, eu não tenho como fazer isso. Vai lá grava, pega a fitinha, volta. Tentamos encontrar mecanismos e aproveitar a estrutura que pode agregar para a TV.

 

Ìrohìn – Mas as TVs culturais, educativas e públicas são mais abertas aos temas sociais.
Regina Lima – Há uma tendência. Mas as TVs estaduais estão vinculadas aos governos do Estado. E isso cria uma dificuldade muito grande até para o gestor, porque são raros os governadores que querem investir nessas Tvs, sem necessariamente aparelhar. Ele nem precisa fazer isso por uma razão muito simples, o governo de qualquer estado por si só é o maior produtor de pauta. Então vai estar dentro da TV sem necessariamente aparelhar, e sim discutindo política. Inegavelmente o governo federal e os governos estaduais são os maiores produtores de pauta, inclusive da TV privada, não só da TV pública. Nós temos uma série de problemas com as Tvs, boa parte delas está com o parque tecnológico defasado e enfrentam problemas para migrar para o sistema digital. Até o final deste ano, todas devem alterar esse sistema.. Fazer TV é um negócio muito caro e temos que criar uma política de financiamento. Os governos precisam entender que comunicação é uma política de Estado.

 

Ìrohìn – E a participação social?
Regina Lima – Não adianta só discutir que o espaço está lá, nós não temos espaço, e aí? A gente dá o espaço, vamos supor, e aí? Vocês vão se sentir contemplados? Claro que não. Porque se eu não tiver no transversal da grade da programação uma maneira de respeitar o movimento, não adianta nada dar o espaço pra vocês. Eu posso até dar por um desencargo de consciência, mas será que é isso que nós queremos? A gente precisa sentar, e sem ter medo. Fica um grupo de um lado com medo de ser criticado e do outro, querendo criticar cada vez mais. A gente tem que baixar a guarda, sentar e começar a discutir. É isso que a Abepec vai fazer agora no debate sobre conteúdo. Que conteúdo é esse? Até hoje a gente só pensa em grade. Queremos fazer um programa, queremos, mas qual é a discussão, que conteúdo é esse? Vamos supor que a gente vai faça um programa sobre as mulheres, qual é o conteúdo que nós queremos?

 

Ìrohìn – Como os interesses sociais estarão representados?
Regina Lima – Quando você descobre o pulo do gato como projeto, todo mundo tem dificuldade de fazer projeto, emplacar projeto nos grandes órgãos, estadual ou federal. Na hora que você descobre como faz isso e como é que aceita lá, todos os teus projetos emplacam. Então precisamos encontrar o caminho. Inegavelmente com todas as deficiências dessas TVs, é onde há espaço. Talvez o que esteja faltando é não só pensar na grade e garantir o espaço, mas pensar o conteúdo que queremos e como vamos trabalhar

 

Ìrohìn – Fale um pouco mais da Abepec. Quanto tempo você tem de mandato?
Regina Lima – Dois anos [mandato vencerá em 2011]. E minha área sempre foi de reflexão da mídia, comunicação e política. Dá trabalho, mas eu me sinto altamente gratificada. Porque uma ação que você faz, o benefício é enorme. Quando eu vou aos municípios, as pessoas dizem que assistem a Funtelpa. Na Abepec, os projetos que nós vamos encaminhar são todos para que as TVs possam ser beneficiadas. Se a gente conseguir, vão poder se estruturar minimamente. Há ainda a discussão sobre esse conteúdo, o que nós estamos fazendo? Como nós vamos abrir espaço para que os movimentos entrem? Que critério nós vamos usar?

 

Ìrohìn – Como a Abepec poderá contribuir para a inclusão das questões raciais nos conteúdos das TVs públicas?
Regina Lima – Não existe uma fórmula pronta e acabada, é uma questão da sentar, pra começar a discutir como é que a gente faz isso. De repente é muito mais ganho pro movimento, se o conjunto dos conteúdos da TV trate conceitualmente e dialogue com esses movimentos do que ter um espaço na grade, que ele pode se esgotar. Nós temos que encontrar uma maneira. Além disso, ter uma discussão dentro das redações das TVs, porque a pessoa que está lá trabalhando não tem nada a ver, não tem compromisso com nada. Embora seja dada a ela a responsabilidade de definir o que entra e o que não entra. Porque o critério para ela entrar lá não foi um critério político, foi o critério profissional. É uma boa jornalista, é uma boa redatora, ela vai pra lá. Então, a gente tem que abrir essas discussões para o conjunto, inclusive de quem está fazendo televisão. Agora, vamos discutir com o pessoal que está fazendo a comunicação pública. As ações que a Abepec está colocando não entram propriamente dentro de conteúdo específico, mas ela abre para o campo de ações e é dentro desse campo de ações que nós vamos ter abertura pra discutir questões mais específicas dentro do conjunto de políticas sociais. Mas o que é mais importante é garantir para que essa TV possa funcionar, e pra isso ela tem que sair de alguns guarda-chuvas que ela está hoje.

 

Ìrohìn – O que são os guarda-chuvas?
Regina Lima – Isso é uma coisa certa. Essas ações estão lá dentro, estão previstas. Agora, ao meu ver, o nosso grande desafio não é no documento. Porque no documento eu coloco, o problema é cumprir. O que nós temos que garantir? A inclusão desses temas e ter um poder de fiscalização muito grande pra que essas ações sejam efetivadas.

 

Ìrohìn – Qual é a relação da Abepec com o governo federal?
Regina Lima – O Ministério das Comunicações eu digo que tem vida própria hoje. O movimento ainda é o da barganha, da troca. E como a gente vai trabalhar com isso? Essa é uma realidade que o próprio governo federal teria que mudar. Precisaria que tivesse alguém lá dentro com sensibilidade pro movimento social. Essa seria a grande mudança e aí teríamos condições de ampliar o mínimo de negociação. Hoje do jeito que está é quase impossível. Não pense que é só com as TVs comunitárias. Isso é geral, a menos quem tem acesso maior lá dentro. Não temos conseguido. O quê a gente faz? Procurar mecanismos dentro da estrutura existente, para que a gente possa resolver esses problemas. Agora acho que tem – nada que uma boa criatividade não resolva. No Ministério da Cultura, a Abepec faz a administração do DOC TV [projeto de incentivo à produção de documentários]. Temos também o DOC CPLP das comunidades portuguesas, mas com menos produção. Ainda acho muito pouco diante do volume que a gente tem. Acho sinceramente que a gente deveria se juntar, por isso que os conselhos curadores das TVs são muito importantes, principalmente com a participação da sociedade. Ainda com todas as deficiências do Conselho Curador, ainda é uma forma de fiscalização dessas TVs.

Fonte: Comissão de Jornalistas

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