Por: João Brant
Primeiro foram as críticas desqualificadoras da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Depois, os ataques contra as medidas do Programa Nacional de Direitos Humanos. Agora, os grandes jornais apontam suas armas para o texto-base da Conferência Nacional de Cultura. Em comum, propostas que visam algum grau de democratização da comunicação e veículos que não aceitam os princípios constitucionais e são contra a punição para violações de direitos humanos praticada pelos meios de comunicação.
Os últimos dois meses foram agitados para os interessados na defesa da liberdade de expressão e do direito à comunicação. Leitores desavisados terão certeza de que a liberdade de expressão nunca esteve tão ameaçada. Segundo uma campanha do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), estão querendo soltar o monstro da censura. Para os mais tarimbados, fica ao menos a dúvida: que propostas justificam tamanho alvoroço das grandes corporações de comunicação? Por que motivo as matérias e argumentos são tão parecidos? Se a análise vai a fundo, desvela-se uma cobertura que escamoteia interesses privados e que se transforma em campanha propagandística. Com requintes de má fé.
Farsa em três atos
Em geral, quando se fala de “ações orquestradas da grande mídia”, esta é muito mais uma figura de linguagem do que uma literalidade. Na maioria das vezes, os grandes meios de comunicação são como um quarteto de cordas, que não precisa de maestro – os músicos se acertam pelos ouvidos e por discretas trocas de olhares. Mas isso não se aplica ao tratamento dado ao tema da comunicação no último mês. Quem leu os grandes jornais, por exemplo, percebeu que a Associação Nacional de Jornais assumiu o literal papel de maestrina para este tema.
No caso da Confecom, o grande bloqueio se deu antes de sua realização, quando as principais entidades representativas do setor empresarial resolveram abandonar o barco. Bandeirantes, RedeTV! e as empresas de telecomunicações continuaram no processo até o fim. Das 665 propostas aprovadas, 601 obtiveram consenso ou mais de 80% de aprovação nos grupos de trabalho e nem precisaram ser votadas. Outras 64 foram aprovadas na plenária final, dentre elas nenhuma entendida por qualquer setor como tema sensível.
Nenhuma das 665 propostas atenta contra a liberdade de expressão ou contra a Constituição Federal. Ao contrário, várias delas buscam ampliar o alcance da liberdade de expressão nos meios de comunicação (hoje restrita a seus donos) e regulamentar artigos da Carta Magna que estão há 21 anos sem ser aplicados, especialmente pela pressão contrária de parte do setor empresarial. Dois temas foram destacados pelos grandes veículos ao criticarem as resoluções: uma proposta que estabelece um Conselho Nacional de Comunicação e outra que estabelece um Conselho Federal dos Jornalistas.
No primeiro caso, trata-se de um órgão para formulação, deliberação e monitoramento de políticas públicas, baseado nos princípios da Constituição, justamente com o papel de buscar equilíbrio no setor. Conselhos similares existem em várias democracias avançadas, inclusive nos Estados Unidos, onde ele é entendido como garantidor da liberdade de expressão. No segundo caso, trata-se de um conselho profissional da categoria, como já têm os médicos e advogados, cujo projeto inclui, como uma das infrações disciplinares de um jornalista, “obstruir, direta ou indiretamente, a livre divulgação de informação ou aplicar censura”. Como se vê, o oposto do que a maioria das notícias veiculadas tentaram dizer ao leitor.
Segundo ato
A farsa seguiu com a acusação de que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos representaria uma peça autoritária. Um conjunto de medidas de defesa de direitos humanos, da memória e da verdade foi tachado como se fosse o oposto do que é. Deve ser por isso que os setores militares conservadores se rebelaram para defender os “princípios democráticos” que sempre os guiaram contra o “autoritarismo” daqueles que lutaram contra a ditadura. Alguém consegue acreditar?
Nas propostas relacionadas à comunicação, duas pseudo-ameaças à liberdade de expressão. No primeiro caso, a defesa da regulamentação de um artigo da Constituição Federal com a indicação de que ele aponte punições para violações a direitos humanos. De novo não há aí nenhuma restrição, apenas a determinação de responsabilidades posteriores a publicação, como estabelece a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), ratificado pelo Brasil. Na ausência destas definições, estaremos legitimando o racismo, a homofobia e o uso de concessões públicas para defender assassinatos de pessoas, fato infelizmente recorrente.
A outra proposta atacada foi a de “elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações”. Na prática, essa é a proposta de institucionalização da Campanha pela Ética na TV (“Quem financia a baixaria é contra a cidadania”), que nunca serviu para atacar liberdade de expressão, mas, ao contrário, ajudou a criar pontes entre os espectadores, usuários do serviço de rádio e TV e as emissoras. Estas, embora recebam uma concessão para cumprir um serviço público, nunca admitem se submeter a obrigações de serviço público, nem mesmo àquelas estabelecidas pela Constituição Federal. Alguns podem até questionar a utilidade desse ranking, mas certamente ele não representa ataque à liberdade de expressão. O restante da diretriz 22 (que trata sobre comunicação) do PNDH-3, trata da garantia ao direito à comunicação democrática e ao acesso à informação. Mas disso nenhum meio de comunicação falou.
Terceiro ato
As recentes críticas ao texto-base da Conferência Nacional de Cultura são o ápice da farsa (termo talvez mal-apropriado aqui, já que ela nada tem de cômica). O Estado de S. Paulo, O Globo e a Folha de S. Paulo atacaram o texto por ele dizer que “o monopólio dos meios de comunicação representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural”.
A contestação foi à afirmação de que há ocorrência de monopólio nos meios de comunicação no Brasil. O trecho fica mais claro se citada a frase imediatamente anterior: “A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais”. É um texto, portanto, que defende as liberdades, e aponta a concentração nos meios de comunicação como ameaça à democracia e aos direitos humanos. Com ele concordariam até os republicanos dos Estados Unidos, como demonstram recentes votações no Congresso daquele país. Mas não os jornais brasileiros.
É preciso deixar claro que “monopólio” ali é usado em sentido amplo e agregador. Até porque, embora a Constituição Federal (de novo…), em seu artigo 220, proíba a existência de monopólios e oligopólios, nunca houve a regulamentação deste artigo. Portanto o Brasil não tem como estabelecer critérios precisos para determinar se há ou não ocorrência de monopólio neste setor. Qual a referência? A propriedade? O controle? A participação na audiência? A participação no mercado publicitário? Todas as democracias avançadas estabelecem medidas não apenas anti-monopólios e oligopólios, mas anti-concentração, combinando os diferentes critérios citados acima. No Brasil, os únicos limites à concentração existentes foram estabelecidos em 1967 e são mais tênues do que os aplicados nos Estados Unidos, França e Reino Unido. O próprio Estadão já tocou, em editoriais recentes, no problema da concentração no rádio e na TV; agora nega sua existência.
Também não passou despercebida pelos jornais a proposta de regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal, que prevê a regionalização da produção de rádio e TV e o estímulo à produção independente. A matéria usa uma declaração completamente equivocada do deputado Miro Teixeira para dizer que o artigo não admite regulamentação. Embora haja pareceres que defendem que o artigo pode ser auto-aplicável, o seu inciso III diz justamente que as rádios e TVs deverão atender ao princípio de “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”. Isto é, ele não só admite como solicita regulamentação. Bola fora ou má fé?
Outro ponto atacado pelos jornais é o trecho em que o texto defende o fortalecimento das rádios e TVs públicas e sua maior independência em relação aos governos. Diz o texto preparado pelo Ministério da Cultura: “As TVs e rádios públicas são estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto, elas precisam aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União”. Assim, o texto defende o controle social sobre as mídias públicas justamente para que estes veículos não sejam apropriados pelos governos. O foco é justamente a defesa da liberdade de expressão para todos e todas. Onde há ataque à mídia? Onde há ameaça à liberdade de expressão?
Dejà vu
Para quem acompanha esse debate, esse comportamento não é novidade, embora o tom raivoso e histérico nunca deixe de assustar. Parte dos meios de comunicação não aceita nenhum tipo de medida que possa diminuir o poder absoluto exercido hoje por eles. Regras que em outros países democráticos são entendidas como condições mínimas para o exercício democrático, aqui são tratadas como ameaças à liberdade de expressão. A grita esconde, na verdade, a defesa de interesses corporativos, em que a liberdade de imprensa se transforma em liberdade de empresa.
A liberdade de expressão defendida por esses setores não é a liberdade ampla, mas a liberdade de poucas famílias. Contra qualquer medida que ameace esse poderio, lança-se o discurso da volta da censura, independentemente de não haver em nenhum desses documentos propostas que prevejam a análise prévia da programação. Independentemente de esses veículos negarem o direito à informação de seus leitores e omitirem informações e opiniões relevantes para a compreensão autônoma dos fatos, agindo de forma censora. Independentemente de os setores proponentes dessas medidas terem sido justamente aqueles que mais lutaram contra a censura estabelecida pela ditadura militar, da qual boa parte desses veículos foi parceira.
Nessa situação, quem deve ficar apreensivo com a reação são os setores que tem apreço à democracia. Como lembra um importante estudioso das políticas de comunicação, foi com este mesmo tom de “ameaça à democracia” que estes jornais prepararam as condições para o acontecimento que marcaria o 1º de abril de 1964. De novo, aqui eles não mostram nenhum apego à Constituição Federal e ao verdadeiro significado da democracia. Obviamente não há hoje condições objetivas e subjetivas para qualquer golpe de Estado, mas os meios de comunicação já deixaram claro de que lado estão.
Fonte: Observatório do Direito à Comunicação