“Não dá pra ter ministro da Educação que nunca pisou em escola pública”

Para Daniel Cara, a estratégia da política ultraliberal é precarizar a oferta de serviços públicos para argumentar incompetência do Estado

Por Ana Luiza Basilio, Do Carta Capital 

Daniel Cara, hoem branco de oculos, sentado em frente a um microfone.
(Foto: Alessandro Dantas)

A nomeação mais recente do Ministério da Educação alçou ao cargo de presidente do Inep o delegado de Polícia Federal Elmer Coelho Vicenzi. Mais um na equipe de não educadores designada para a pasta, capitaneada pelo economista Abraham Weintraub, nome anteriormente ligado à Casa Civil onde atuou como secretário executivo, e às figuras de Ônix Lorenzoni e Paulo Guedes.

Longe de ser ao acaso, o arranjo dá corpo a uma das principais estratégias governamentais, segundo análise do coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara: “A privatização da educação como parte de uma política ultraliberal”.

Cara explica que a tática para justificar o projeto de privatização é a de precarizar o Estado e a oferta de serviços públicos para então atribuir incompetência à máquina. “É uma radicalização do projeto neoliberal, que já prevê a redução do Estado”, atesta o especialista.

A linha de atuação preocupa o educador, que vê a nova composição do MEC mais nociva às políticas educacionais do que a anterior, protagonizada pelo colombiano Vélez Rodríguez.


“Embora eu discordasse 100% de sua visão de política educacional e, sem dúvida, Vélez era incompetente em termos de gestão, existia uma possibilidade de saber o que ele pensava, pois ele sistematizou meia dúzia de ideias em novembro de 2018. Já Weintraub pensa em seguir Olavo de Carvalho na pauta da propaganda de governo e implementar a política ultraliberal de Paulo Guedes, que sofre oposição até de figuras neoliberais que o consideram exagerado”, avalia.

Carta Capital: Como você avalia os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro na educação?

Daniel Cara: Foi um período caótico. Primeiro, tivemos o ministro Vélez Rodríguez que atuou na linha da guerra cultural e que, claramente, não foi capaz de administrar as forças que subsidiaram a sua gestão, os militares e os olavetes, como o próprio Olavo de Carvalho denomina seus seguidores. O resultado foi que, no primeiro revés dos militares dentro do governo, o Olavo de Carvalho conseguiu emplacar um segundo ministro. Em uma entrevista recente dada ao Pedro Bial, o Olavo falou que ele conhecia o trabalho do Vélez, mas que Vélez não conhecia o seu trabalho e que, agora, existe um ministro [Weintraub] que de fato conhece as suas ideias. Esse é um fator importante na consolidação do governo.

Vejo que, de um lado, o Ministério da Educação está entregue como um instrumento de propaganda pela guerra cultural bolsonarista. Do outro, dada a diminuição da força dos militares e a menor ênfase na agenda da militarização das escolas, o que vai imergir é a privatização da educação.

CC: Há uma concepção de educação em disputa?

DC: Não se tem uma concepção de educação. Há uma concepção de política educacional, o que é diferente. A política educacional que eles planejam é, em primeiro lugar, reduzir a área a uma esfera de propaganda da ultradireita. Quando o Olavo de Carvalho diz que é preciso fazer uma guerra cultural, ele quer dominar as universidades e as escolas como um espaço de convencimento da sociedade para agregar novos militantes para a causa da ultradireita, que é ultrareacionária. Não tem preocupação sobre a política educacional pautada nos ditames da Constituição Federal de 1988.

Outra questão que vejo na forma como o governo Bolsonaro enxerga a educação é que a militarização das escolas era uma proposta pedagógica, ou antipedagógica, mas educacional, eles acreditavam que a disciplina autoritária era o melhor substituto para a Pedagogia, não importando o processo de ensino-aprendizagem, a formação integral de seres humanos.

Agora, com essa nova composição do Ministério da Educação, eles vão tentar pautar a guerra cultural, até para chamar a atenção da militância bolsonarista. A nomeação de um delegado de polícia para o INEP diz sobre isso, mas reforço que a grande aposta em termos de política educacional vai ser a privatização. Esse é o objetivo estratégico de Weintraub, o desserviço que ele vai prestar.

CC: Como se constrói essa narrativa pela privatização?

DC: São três etapas para chegarmos ao cenário. A Emenda Constitucional 95 que determina um teto de gastos foi a primeira delas. Ela foi apoiada pelo mercado, mas é insuficiente para as preocupações do mercado financeiro, para os patamares de dívida pública aceitáveis para um investimento especulativo no Brasil.

Então, a segunda estratégia é reduzir ainda mais a ação do Estado e, por fim, acabar com as vinculações constitucionais. O padrão ouro do projeto do Paulo Guedes é acabar com as vinculações constitucionais e aprovar a reforma da Previdência que ele quer. O padrão prata é aprovar uma reforma mais ou menos e aprovar as desvinculações constitucionais e o padrão bronze é aprovar uma Reforma mais ou menos, para os padrões do Guedes, e reduzir ainda mais as vinculações constitucionais, radicalizando a agenda da Emenda Constitucional 95, de Michel Temer e Henrique Meirelles.

Esse é o caminho que ele quer trilhar. Quando você tem um processo de precarização do serviço público, você constrói a ideia na sociedade de que o poder público não é competente para dar conta do que é a necessidade das pessoas. Qual o resultado disso? A argumentação de que o caminho é a privatização, com a defesa de que o setor privado é mais dinâmico, faz mais com menos. No começo, vai parecer que a privatização da educação vai gerar economia, mas na renovação dos contratos ela vai custar muito mais. Ademais, a razão dos serviços públicos responsáveis pela consagração de direitos, especialmente a razão pedagógica, se opõe à razão mercantil. Ou seja, a educação privada é de pior qualidade.

A Emenda Constitucional 95 e o fim das vinculações constitucionais são estratégias de precarização onde o Estado deixa de crescer para depois dizer que é incompetente. É uma estratégia discursiva que mata o serviço público, o torna extremamente ineficaz pelo pouco financiamento, para então justificar a privatização. Isso aconteceu em todos os lugares do mundo que viveram o processo de privatização, passando por países extremamente desenvolvidos como EUA, Reino Unido, Suécia. No mundo escandinavo, a Suécia, que foi a única a mergulhar em certo ultraliberalismo já retrocedeu, com pressão da própria Coroa que determinou que era preciso rever essa perspectiva.

CC: Você fala em uma radicalização do projeto neoliberal. O que isso significa?

DC: Sim, estamos diante de uma radicalização da agenda neoliberal que, embora preveja a redução do Estado em todas as suas funções, não assume que a condição de vida das pessoas não importa. No ultraliberalismo esse tipo de preocupação não existe. É a radicalização do que o George Soros disse, de maneira crítica, que a democracia é o sistema que governa quem o mercado permite.

CC: A pauta de alfabetização é uma das prioridades do governo. Como tem visto a condução dessa agenda?

DC: O Brasil precisa olhar para a agenda da Alfabetização, mas a partir da perspectiva correta que é a científica, que toma como base o trabalho da psicologia, da sociologia e da filosofia da educação que já desenvolveu uma série de análises e vem aperfeiçoando métodos. Isso está sendo totalmente abandonado por esse debate medíocre do método fônico.

Vale lembrar que o método fônico já vinha sendo defendido em círculos da ultradireita desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a partir do João Batista, dono do Instituto Alfa e Beto. Como ele [João Batista] nunca teve espaço real em um conjunto de gestões que eram dominadas por pensamentos de centro direita e centro esquerda, que era o que representava PSDB e PT, ele começa a fazer alianças com setores ultrareacionários e agora tem muito espaço dentro do governo.

Eles semearam e agora estão colhendo. Mas é extremamente pobre imaginar que o método fônico é a salvação da lavoura, ele é arcaico em termos pedagógico e seu resultado vai ser medíocre. É um caminho anti-científico, mercadológico, de tentar retomar uma experiência metodológica do passado numa época em que as escolas públicas eram muito mais produtoras de fracasso do que de formação e acham que essa perspectiva será válida no século XXI, que deveria ser o século do conhecimento.

CC: E o encaminhamento da proposta da educação domiciliar, como a avalia?

DC: É mais uma agenda de honra para a bancada evangélica e para a católica ultraconservadora. Mas vale destacar a mudança que houve no encaminhamento desta pauta. O governo queria tramitar com uma medida provisória [embora o instrumento tenha força de lei, precisa passar por aprovação do Congresso] e recuou porque percebeu que perdeu apoio. Pode passar, mas essa aprovação não será fácil.

Outro ponto que vale considerar na mudança da pauta é o fato do projeto ter começado a tramitar pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Não faz sentido algum tramitar por ali um assunto claramente educacional, o que deixa claro que o problema por trás não é da educação.

A estratégia utilizada pelo governo foi de esperar que o desgaste acerca da pauta passasse e isso não aconteceu, então o lançam como projeto de lei. Eles já perceberam que não vai ser tão fácil passar as pautas ultraconservadoras. Acho que o ultraconservadorismo vai ter ações muito pontuais, uma intervenção no Enem, em políticas específicas. Isso vai ser muito mais pautado pelo twitter dos Bolsonaros como um discurso de propaganda e, por baixo, o que se tem é a tentativa de consolidar uma política ultraliberal na educação, privatizar radicalmente, tanto que as fundações e institutos empresariais já estão com agenda marcada com o novo ministro.

CC: O sentimento diante à educação pública é de pessimismo?

DC: Eu não tenho pessimismo porque a educação brasileira tem uma grande vantagem comparativa. Enquanto para as outras áreas resistência é uma palavra de ordem, na educação é cotidiana, desde a época do Império. O professor resiste, precisa resistir porque nunca teve condições de trabalho adequadas, nunca teve boa remuneração e essa capacidade de resistência nesses momentos de enorme crise consegue fazer com que a área se mantenha pelo esforço profissional.

O que precisamos, com certa urgência, é reivindicar a área para os educadores, de fato. Não dá pra ter um delegado de polícia no Inep, nenhum demérito quanto à função, mas não é o lugar dele. Não dá pra ter mais um ministro da Educação que nunca pisou em uma escola pública, que não sabe o que é o calor de um intervalo de uma escola pública, a sua realidade.

Mas eu não tenho pessimismo com a área de educação porque a crise não é uma novidade, é cotidiana. Como dizia Darcy Ribeiro: a crise da educação não é uma crise, é um projeto.

*Esta entrevista integra o especial “Educação em disputa: 100 dias de Bolsonaro”, uma parceria da Carta Capital, Carta Educação, Ação Educativa e De Olho nos Planos.

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