Não devemos nada ao feminismo?

Certa vez ouvi em um debate na televisão que as mulheres não deviam nada ao feminismo, uma vez que a conquista de direitos é um processo inerente ao avanço das democracias, e que, portanto, chegaríamos a uma legislação igualitária – como a que supostamente temos hoje – independente da atuação dos movimentos feministas.

Texto de Vivian Souza. Do Blogueiras Feministas 

Confesso que não estou segura quanto às palavras exatas pronunciadas pela defensora desta hipótese – uma mulher, aliás – mas me lembro que, na ocasião, não pude deixar de me surpreender. Somente uma pessoa que pertence ao estrato mais favorecido da sociedade pode acreditar que a ampliação de direitos é um processo natural dos regimes ditos democráticos. Sim, porque, não obstante os retrocessos anunciados de quando em quando, aqueles protegidos pelo prestígio e pelo dinheiro permanecem sempre assegurados — pouco importando as mudanças na lei. Esquecem que, por exemplo, a simples cor da pele muitas vezes condiciona o indivíduo a ter ou não direitos.

Uma rápida observação nos rumos políticos adotados na última década pelos países desenvolvidos, supostamente situados na dianteira do processo democrático, permite-nos afirmar que a tendência atual aponta para a redução de direitos. Quando o que está em jogo é o desmonte do Estado do bem-estar social e a garantia de pagamento aos credores internacionais, parece não haver nenhum pudor na cassação de direitos dos cidadãos, geralmente por meio da flexibilização de leis trabalhistas e a contração de direitos previdenciários, por exemplo. Os poucos direitos concedidos na última década, da ordem da representação e do reconhecimento, como as cotas para minorias e o casamento civil igualitário, costumam ser alvo de inúmeras críticas por parte expressiva e influente da população em diversos países, tanto no “Primeiro Mundo”, como aqui.

Democracia, portanto, não está ligada de maneira inerente à ideia de expansão gradual de direitos aos cidadãos. Direitos, aliás, apenas em uma minoria dos casos são “concedidos”. A luta por direitos é exatamente isso: uma luta. A ampliação de direitos para uma parcela até então desconsiderada pelo regime jurídico de um país implica necessariamente na perda de privilégios por parte do grupo que já gozava daqueles direitos – fosse este um direito “legal”, ou daquele tipo que se compra com dinheiro ou uma carteirada ou, ainda, com a famosa frase: “sabe com quem está falando?”.

Aquela mulher de postura liberal que afirmou num programa de televisão que “a democracia implica esse processo de inclusão histórica”, parece ignorar e desconhecer que na Constituinte de 1987, quando este país saia das sombras de uma ditadura, um grupo articulado de mulheres feministas com tradição de atuação nos movimentos sociais organizou um lobby em prol da inserção de direitos para as mulheres na nova Carta do país. Esse movimento ficou conhecido como o Lobby do Batom.

Nessa época, também por pressão do movimento feminista, a questão das mulheres ganhou importância, tendo surgido entre 1983 e 1985, diferentes órgãos do Estado destinados a tratar desta temática, como os Conselhos Estaduais da Condição Feminina/da Mulher e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Foram feministas inseridas dentro destes espaços institucionais, em aliança com feministas autônomas e diversos outros movimentos sociais, quem lutaram, por exemplo, pela extinção da tutela masculina na sociedade conjugal; pela eliminação do direito do homem de impedir a sua esposa de trabalhar; pelo enquadramento da violência sexual como um crime contra os Direitos Humanos, em oposição ao crime moral; pela extensão da licença maternidade para 120 dias sem prejuízo do emprego e do salário e pela proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos; direitos garantidos pela Constituição de 1988. Estes direitos não foram conquistados pelas mulheres devido somente ao processo democrático.

Ainda hoje enfrentamos ações ridículas. A Câmara Federal não aceitou que o feminicídio seja entendido como o homicídio praticado contra a mulher em razão de seu GÊNERO. Com isso, algumas cidadãs estão sendo excluídas do sistema de direito deste país. Muito mais do que um avanço, as mulheres trans vivem neste momento a negação institucional da sua condição de mulher. Talvez a defensora da democracia espontânea, que também é filósofa, dissesse: “bem, há que se questionar se estamos vivendo o avanço da democracia”. Mas, ora, que conceito tão amplo e deturpável este de “avanço”, não?

O avanço da democracia não é tarefa simples e ouso dizer que se nossa democracia avança neste momento, não é em uma direção progressista. Respeito o direito da filósofa liberal em não se sentir em débito com o feminismo em nenhum aspecto. O ponto central aqui não é a postura que adota uma pessoa específica num cenário de 200 milhões de brasileiros. O que esta pessoa específica ilustra muito bem, e que pode servir para entender o comportamento de uma parcela significativa desses 200 milhões, é a ignorância e o desconhecimento quanto ao que vem a ser o feminismo, suas concepções, posturas e bandeiras de luta; e um outro fato ainda mais grave: a desqualificação da luta política e da mobilização social como forma de construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Ter influência no Estado é importantíssimo. E, caso os interesses em jogo sejam os de uma parcela subjugada da população, a mobilização social e a pressão popular são fundamentais. A ampliação de direitos para uns pressupõe a perda de privilégios de outros. No entanto, tomando novamente o caso da recentíssima Lei do Feminicídio, é preciso se perguntar: a inclusão desta variável como agravante penal será amplamente adotada pelos juízes e juízas diante de casos de homicídios de mulheres? Será que juízes, promotores e advogados, socializados e educados nesta sociedade ainda profundamente machista, que deposita sobre os colos femininos a responsabilidade pelo comportamento agressivo e abusivo de muitos homens que perseguem, ameaçam, estupram e matam, serão capazes de compreender que por trás de muitos assassinatos de mulheres existe a condição subordinada da mulher na estrutura social de poder? Que o assassinato de mulheres está, em muitos casos, ligados à concepção da mulher como um bem a ser possuído pelo homem – e, caso haja distúrbios nesta suposta “ordem”, o homem pode tirar a vida daquilo que supostamente lhe pertence?

O movimento feminista e o feminismo difuso na sociedade (isto é, não articulado em grupos) serve primeiramente para modificar crenças, padrões de comportamento e concepções tidas como “normais”, “tradicionais”, aceitas socialmente e que subordinam as mulheres, as culpabilizam quando são vítimas de assédios e discriminações, as responsabilizam exclusivamente por questões como gravidez e cuidado com os filhos, as objetificam para o consumo dos homens, etc. Só assim a modificação da legislação pode ser verdadeiramente efetiva (não ignorando, por suposto, o caráter educativo de algumas medidas).

O feminismo serve, portanto, para construir uma outra sociedade, em que as diferenças entre os gêneros não signifiquem desigualdades entre os gêneros. Que as diferenças entre mulheres brancas e mulheres negras não signifiquem desigualdades entre estas, nem entre homens brancos e negros. Que as diferenças entre mulheres e homens indígenas e não-indígenas não signifiquem desigualdades entre estes, não signifiquem a primazia dos grupos não-indígenas perante os grupos indígenas. Que as diferenças entre sujeitos e casais heterossexuais e homossexuais não signifiquem diferenças nem em termos sociais, nem em termos de direitos entre estes. Que as diferenças entre sujeitos cissexuais e transexuais não signifiquem desigualdades entre estes, não impliquem na marginalização de uns. Que as diferenças entre sujeitos com deficiências e aqueles que não as possuem não signifiquem desigualdades, nem limitação social dos primeiros.

Reconhecer as diferenças não é defender nem reafirmar as desigualdades. É assumir a perspectiva de que neste mundo cabem muitos mundos, e que todos devem ser respeitados à sua maneira, acolhendo-os na sociedade geral e concedendo-lhes a prerrogativa de escolherem viver os seus modos de vida. Ninguém é superior ou deveria ser mais detentor de direitos. A luta por uma transformação radical na sociedade é uma luta feminista e, como tanto, deve se desenvolver prioritariamente na esfera política do cotidiano.

Resgatar o 8 de março como uma data de luta pela transformação radical da sociedade, destituindo a legitimidade de campanhas meramente celebratórias e destinadas a alimentar o capitalismo, é uma das tarefas mais belas que as feministas têm empreendido. Assumir o 8 de março como uma data de luta feminista anticapitalista é tarefa das mais grandiosas. Que a luta, portanto, continue!

Autora

Vivian Souza é feminista descolonial. Está terminando um Mestrado em Ciências Sociais e se interessa em oferecer sua força de trabalho às causas libertárias. Buscando caminhos para desconstruir-se de seus privilégios de mulher branca e, assim, ajudar a construir um mundo onde caibam muitos mundos.

 

Foto de Tânia Rêgo/Agência Brasil.

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