‘Não ter uma tatuagem foi minha versão da rebeldia’: por que as indianas estão se negando a ser tatuadas

Em vários lugares do planeta, fazer uma tatuagem é hoje visto como um sinal de independência, rebeldia e afirmação da identidade. Mas, para mim, a decisão de não me tatuar foi a minha versão da rebeldia, uma afirmação da minha duramente conquistada independência. Era minha maneira de dizer: “Eu não vou andar na linha”.

Por Geeta Pandey, da BBC

Há dois milênios, mulheres da tribo Baiga são tatuadas | Foto: WaterAid/ Ronny Sen

Cresci vendo as tatuagens, assim como os piercings no nariz e na orelha, como símbolos da subordinação das mulheres. Minha mãe tem algumas tatuagens, e minha avó tinha ainda mais. E elas me disseram que não tiveram escolha sobre isso.

Em muitas comunidades rurais do Estado indiano de Uttar Pradesh, no norte do país, de onde vem minha família, é obrigatório que as mulheres casadas tenham tatuagens – conhecidas localmente como godna.

Minha mãe me contou recentemente que sua família lhe disse que, “se não tivesse uma tatuagem, ninguém na casa (após o casamento) beberia água ou receberia comida” oferecida por ela. “Seria algo considerado impuro e intocável”, ela me explicou. Meu pai, é claro, não precisou tatuar-se porque, como mamãe disse, “ele era um menino”.

Ela foi noiva ainda criança e não tinha nem 11 anos no seu casamento, na década de 1940. Poucas semanas depois da cerimônia, uma mulher idosa que morava na vizinhança foi convocada para tatuá-la.


Tatuagens na história do mundo

 

* Acredita-se que existam há milhares de anos.

* Foram usadas para marcar prisioneiros, servos e escravos.

* Gregos e romanos antigos as possuíam, assim como os indianos antigos.

* Judeus foram marcados com números nos campos de concentração.

* Foram usadas também para identificar castas.

* Muitas vezes entendidas como punições, já foram usadas para humilhar e representar subordinação.

* Às vezes, foram símbolos de propriedade sobre uma mulher, trazendo os nomes de seu pai ou marido.


Suas ferramentas eram rudimentares: uma agulha que era aquecida com fogo, posteriormente introduzida na camada superior da pele queimada, preenchida com pigmento de cor preta. Naquele tempo, não havia anestesia para conter a dor ou pomadas para acelerar o processo de cicatrização. Era preciso um mês para que a tatuagem cicatrizasse.

Mais de sete décadas depois, as tatuagens da minha mãe desapareceram um pouco, mas a memória da dor infligida na infância permanece viva. “Eu chorei. Eu fiquei chutando a tatuadora. No final, ela reclamou para o meu avô. Ela disse que eu era problemática”, lembra.

Ela não tem ideia do que os pequenos desenhos padronizados em seus braços significam, algo que eu também não consigo descobrir. “Talvez seja um phool-patti“, diz ela, referindo-se às flores e folhas.

Minha mãe me contou que, se não tivesse uma tatuagem, seria encarada como impura

Keya Pandey, uma antropóloga social da Universidade de Lucknow, na Índia, que tem feito uma pesquisa ampla sobre tatuagens na parte rural e tribal do país, diz que a flora e a fauna estão entre os desenhos preferidos nestes locais. Também estão na lista os nomes de maridos ou pais, ou mesmo da aldeia, além de totens e ícones da identidade cultural local.

Pandey diz que viu tatuagens em todas culturas rurais na Índia e estima que milhões de mulheres nas aldeias as possuem.

Em algumas comunidades, especialmente em áreas tribais, tanto homens quanto mulheres têm tatuagens. “É um símbolo de identidade, na vida e mesmo após a morte. A ideia é que, quando você morrer e sua alma viajar para o céu ou para o inferno e você for perguntado de onde vem, poderá traçar sua ascendência através de suas tatuagens”, diz ela.

Há também comunidades onde as mulheres fazem tatuagens pela estética – embora existam casos em que as mulheres de castas baixas se tatuam para tornarem-se menos desejáveis, evitando ataques sexuais. Mas, em muitas comunidades, como na minha aldeia ancestral, as tatuagens são destinadas apenas à mulher, um sinal de seu estado civil.

Para minha mãe e minha avó, elas eram um símbolo de pureza – segundo a ideia de que a mulher deveria ser submetida a um ritual de purificação doloroso, representando sua adequação ao patriarcado.

A prática, no entanto, está em declínio – e muitas mulheres jovens, mesmo meninas, estão dizendo “não” para as tatuagens. Com a modernidade e o desenvolvimento frutos do contato com o mundo exterior, as coisas estão mudando na Índia rural e tribal.

As tradições estão sendo modificadas, e as meninas nas aldeias não estão mais interessadas em se tatuar, diz Pandey. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que entre as meninas da tribo Baiga, no centro da Índia.

Por mais de 2 mil anos, as mulheres ali têm sido marcadas. “A tatuagem começa quando elas atingem a puberdade, recebendo um sinal na testa. Ao longo dos anos, a maior parte do corpo é coberta pouco a pouco”, diz Pragya Gupta, da ONG WaterAid India.

Gupta, que recentemente viajou para conhecer o acesso dos Baiga à água potável, disse à BBC que todas as mulheres que conheceu tinham tatuagens – mas cada vez mais meninas se recusam a seguir a tradição.

À medida que a malha rodoviária melhorou, a televisão e os celulares chegaram e as crianças começaram a ir à escola, muitas começaram a rejeitar o que foi transmitido ao longo das gerações.

“Uma criança de 15 anos chamada Anita tem uma tatuagem em sua testa e me disse que foi algo muito doloroso, que nunca mais faria outra. Sua mãe, Badri, de 40 anos, tem tatuagens cobrindo a maior parte de seu corpo “, diz Gupta.

A rebeldia de Anita ganhou apoio de sua mãe. “Eu era analfabeta e aceitei sem questionar o que meus pais me disseram. Mas ela vai à escola e, se não quer uma tatuagem, tudo bem por mim”, diz Badri.

Nos últimos anos, indianos educados nas cidades começaram a fazer tatuagens voluntariamente, inspirados por imagens de atores de Hollywood e músicos de rock. Muitos dos meus amigos também fizeram isso.

Mas, para mim, por conta do meu patrimônio cultural, as tatuagens continuam sendo um tabu – um símbolo de subordinação.

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