“Não ver trans como doentes é avanço, mas luta segue árdua”

Enviado por / FonteDW, por Edison Veiga

Transexualidade deixou de ser considerada um transtorno mental pela OMS. Para ativista, apesar de a mudança promover a dignidade, ainda há um longo caminho para a aceitação social de travestis e transexuais.

Desde o primeiro dia deste ano, nenhum dos 194 países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) pode — ao menos oficialmente — classificar a transexualidade como doença.

A decisão foi tomada em 2018, 28 anos depois de a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) começar a tratar a questão como transtorno mental. Foi estabelecido o prazo de 1º de janeiro de 2022 para que todas as nações integrantes da OMS tivessem tempo de adotar a nova edição da CID.

Ao deixar de figura na categoria de transtorno mental, a transexualidade passa agora a ser incluída no campo do direito à saúde, ao lado de condições como a velhice e a gravidez.

“Os impactos são muito positivos para nossa comunidade”, avalia a geógrafa e ativista Sayonara Nogueira, presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), em entrevista à DW Brasil.

“Mas ainda temos um árduo trabalho pela frente para eliminar os preconceitos que existem em relação às pessoas travestis e transexuais, que nos levam a viver à margem, excluídas da convivência familiar, escolar, laboral e social, e que nos matam socialmente no dia a dia.”

Em meio aos trabalhos de compilação de dados e redação de um dossiê sobre a violência contra as populações trans no Brasil, a ser lançado nos próximos dias, Nogueira atendeu à reportagem da DW Brasil para comentar o atual cenário — ressaltando que ainda falta muito para que as pessoas travestis e transexuais sejam completamente incluídas na sociedade.

DW Brasil: De que maneira vocês receberam a notícia de que a transexualidade não é mais, oficialmente, considerada uma doença?

Sayonara Nogueira: A luta pela despatologização já tem anos no Brasil e sempre acompanhamos como referência os trabalho das ativistas Jaqueline Gomes de Jesus [psicóloga e escritora] e Viviane Vergueiro [economista]. Em 2018, nós recebemos a notícia da mudança e já sabíamos que era necessário um tempo para a substituição. É um avanço grande, pois ainda somos identidades carregadas de estigmas criados pela própria sociedade, que nos colocou no lugar do diminutivo, da subalternização e do transtorno. E a mudança é muito importante para afastar a ideia de que somos doentes e precisamos de um diagnóstico para o tratamento, já que deixa de configurar na categoria de transtorno mental e passa a vincular no setor de direito à saúde.

Como isso pode ajudar a evitar que a transexualidade seja abordada com preconceitos?

Os impactos são muito positivos para nossa comunidade. Mas ainda temos um árduo trabalho pela frente para eliminar os preconceitos que existem em relação às pessoas travestis e transexuais, que nos levam a viver à margem, excluídas da convivência familiar, escolar, laboral e social, e que nos matam socialmente no dia a dia.

Refletir sobre saúde trans é importante, e os passos necessários estão sendo dados. Entretanto, temos ainda que pensar sobre a questão do preconceito e da discriminação que no Brasil é estrutural, marcada pela desigualdade social, pelo racismo e pela violência de gênero.

O mesmo ocorreu, anos atrás, quando a homossexualidade deixou de ser classificada como doença. Observando o que ocorreu com os homossexuais a partir de então, de que lições os transexuais podem partir para que a exclusão dessa lista internacional de doenças seja acompanhada por avanços também no reconhecimento social?

A luta pela conquista de uma sociedade mais justa e plural é árdua e nos retirar da “anormalidade” já é um caminho em que se avança, pois promove a nossa dignidade. Mesmo que tenhamos alguns avanços conquistados pelo Judiciário, como o processo de retificação de nome e gênero nos cartórios de registro civil, esse direito não alcança toda nossa população devido ao custo do processo — e nome é uma questão elementar. É preciso que o Estado invista na elaboração de dados sobre nossa comunidade. Precisamos de um diagnóstico completo, para assim cobrar por formulação de políticas públicas para as pessoas travestis, trans e de gênero diverso, no campo da saúde, segurança pública, educação, social, entre outros setores. Quando um Censo nacional, por exemplo, não nos inclui em sua base, o Estado invisibiliza nossas vozes e corpos. 

Que tipo de ações instituições como o IBTE planejam fazer para aumentar a visibilidade trans e diminuir o preconceito, neste momento em que a transexualidade deixa, oficialmente, de ser tratada como doença?

O nosso trabalho é com foco na educação, na educação básica, para que a escola inclua e promova políticas de permanência no ambiente escolar. O nosso trabalho consiste em trabalhar formação continuada de professores, orientar a elaboração de planos de aulas, trazer para o debate a presença das professoras e professores transexuais na sala de aula e de que forma esta presença oferece um novo sentido a sala de aula, promovendo respeito, dignidade e cidadania. Fechamos uma pareceria com a Rede Trans Brasil [organização não governamental que representa as pessoas travestis e transexuais no Brasil], na qual retomamos a escrita dos dossiês [com dados sobre a violência contra essas populações] e vamos lançar uma série de publicações a serem realizadas, cerca de quatro por ano, abordando temas como educação, mercado de trabalho, migração e etc.

Na atual edição do Big Brother Brasil, o reality show da Globo, há uma participante que se identifica como travesti, a cantora Linn da Quebrada. De que forma a participação dela contribui para dar maior visibilidade a travestis e transexuais e, ao mesmo tempo, diminuir o preconceito? Acredita que esse tipo de participação ainda é visto como exceção, como nicho, ou já vem sendo tratado com naturalidade?

Antes da Linn da Quebrada, tivemos, 11 anos atrás, a participação da [modelo e influenciadora] Ariadna no BBB. É um espaço temporal muito grande entre uma participação e outra. Nas redes sociais, era possível observar a cobrança, todos os anos, para que fosse incluída uma pessoa trans no reality show. E a presença da Linn da Quebrada é importante, porque seu corpo ali presente nos educa, por meio de sua arte, de sua luta e de suas narrativas. Ela alcança muitas pessoas, educando socialmente para o respeito à diversidade. 

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