Crianças que não se identificam com seu gênero biológico falam sobre aceitação

Enviado por / FonteBrasil de Fato

Edição conta as descobertas e delicias de crianças com incongruência de gênero, que já sabem defender seus direitos

Olhar no espelho e não reconhecer a imagem que vê. Se sentir incomodado e confuso com seu próprio corpo. Preferir usar as roupas de outra pessoa. Esses incômodos, que podem causar grandes sofrimentos, fazem parte do dia a dia muitos meninos e meninas no Brasil. Eles são crianças que não se identificam com seu gênero biológico. A boa notícia é que com acolhida, empatia e respeito, elas podem passar a viver todo seu potencial da forma como realmente são.

Eu sou um menino trans e sou muito feliz do jeito que eu sou

“Eu gosto de ir ao cinema, tocar violão, jogar bola e caçar Pokémons. Eu tenho muito interesse por jogos, música, esportes e por filmes. Eu sou um menino trans e sou muito feliz do jeito que eu sou”, diz Eduardo, que tem 7 anos e mora em Sergipe, em depoimento a edição especial do Radinho que marca o Dia da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro.

E é para lançar luz às descobertas, às delicias e aos desafios das crianças com incongruência de gênero, a edição de hoje (26) do Radinho BdF ouve meninos e meninas que não se identificam com seu sexo biológico e que já sabem muito bem defender seus direitos e combater preconceitos.

“Eu nasci no gênero masculino e me identifico com o gênero feminino. Eu fui descobrindo isso aos cinco anos e hoje, com 9, ainda me identifico com o gênero feminino pela maneira como eu me sinto”, disse Gabi, que mora em São Paulo.

No universo adulto, parte dessas pessoas que nascem com um gênero mas se reconhecem com outro são chamadas de transgêneros ou trans. E tem também crianças que gostam de se identificar assim. “Uma menina trans, assim como eu, é aquela que nasce com o sexo masculino biologicamente, mas na cabeça se identifica totalmente como uma menina”, explica Heloísa, que tem 13 anos e mora em São Paulo.

Assim como ela, existem hoje no Brasil pelo menos quatro milhões de pessoas trans e não binárias, que não se identificam nem como homem e nem como mulher.

Padrões de gênero

Apesar de avanços e desconstruções, a sociedade brasileira ainda é cercada de muitos preconceitos. Por isso ainda existem atividades, comportamentos, interesses e até produtos que são pensados para meninos ou para meninas. Um dos exemplos mais clássicos é dizer que boneca é um brinquedo de menina e carrinho é um brinquedo de menino. Ou que rosa é cor de menina e azul é cor de menino.

Esses padrões de gênero criam estereótipos de comportamento e de aparência física. Mas afinal, é preciso se identificar como menino ou menina, mesmo que a criança esteja desconfortável com isso? “Não precisa! A pessoa não precisa se identificar nem como homem nem como mulher. Ela pode se identificar com se sentir”, responde Gabi.

Deixar a aparência mais parecida com a personalidade, usar roupas que gosta e até atualizar o corte de cabelo são coisas especialmente importantes para as crianças que não se reconhecem em seu gênero biológico. Assim elas podem deixar a imagem do espelho mais parecida com quem são de verdade.

Tanto que pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é possível ter acesso a serviços médicos específicos para pessoas trans, para que seus corpos possam se desenvolver dentro dos padrões da sua identidade. Além disso, elas e suas famílias podem tem acolhida psicológica e social dentro das unidades de saúde.

Nas crianças, outros tipos tratamentos são usados para inibir a puberdade, aquele momento da vida que as crianças começam a crescer e seus corpos começam a parecer mais com o de uma mulher ou com o de um homem.

“Eu tinha medo e eu não gostava do meu jeito. Aí eu decidi falar com a minha mãe e pude me vestir como eu queria, cortar meu cabelo e fiquei muito feliz”, diz Gustavo de 7 anos, que mora em São Paulo.

Bandeira trans – Foto: Angela Weiss

Acesso a direitos

Não existem dados sobre quantas crianças e adolescentes no Brasil se identificam como trans. Os únicos números disponíveis são do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas em São Paulo, que atualmente atende pelo menos 90 meninos e meninas com essas características.

Especialistas reforçam que não é apenas a aparência que precisa estar alinhada com a forma como a criança se percebe. “Eu quero que as pessoas usem os pronomes femininos para me chamar. Caso contrário eu não aceito”, pontua Gabi.

E além de usar os pronomes femininos para falar com crianças que se reconhecem como meninas, é fundamental que pessoas trans sejam chamadas pelo seu nome social. Isso vale em escolas, hospitais, postos de saúde e qualquer outro serviço que a criança utilize.

No Brasil, mudar o nome nos documentos é um direito das pessoas transexuais. Para adultos essa mudança pode ser feita no cartório, mas para crianças ainda é preciso passar por um processo judicial.

Contra o preconceito

“O que é pior pra mim é quando se fala para uma pessoa ela não entende e separa dos amigos porque tem muito preconceito”, diz Gustavo.

Este é, ainda, um dos principais problemas enfrentados por crianças e adultos que não se identificam com seu sexo biológico. Além de não ter sua identidade de gênero respeitada, de não conseguirem acessar serviços de saúde e não terem seu nome social reconhecido, outros problemas comuns a essa população são o bullying e violência.

Um estudo realizado pela organização não-governamental “Grupo Diversidade”, com apoio das Nações Unidas, apontou que 77,5% das pessoas entrevistadas identificaram casos de bullying transfóbico contra crianças e adolescentes entre 5 a 17 anos. Foram ouvidos responsáveis por pessoas transgêneras nesta faixa etária em 62 cidades, de 17 estados, totalizando 120 famílias.

Outro dado preocupante da pesquisa é sobre quem pratica essas agressões: em mais da metade dos casos, os responsáveis pelo bullying transfóbico foram profissionais que trabalhavam nas escolas.

“Isso atrapalha muito. Eu sofri bastante na minha antiga escola, mas hoje estou em uma escola super-acolhedora. O bullying com pessoas trans e com qualquer outra pessoa atrapalha no desenvolvimento, nas aulas, na escola e na vida”, pontua Heloisa.

Para evitar casos como esse é preciso que as instituições de ensino apoiem e defendam os direitos das pessoas trans. Isso ajuda, inclusive, a evitar problemas de violência no futuro. Infelizmente, o Brasil é um dos mais violentos para a população LGBTQIA+, que sofrem com agressões físicas e verbais.

“O movimento trans tem uma infinidade de pautas, mas a mais importante é viver. Depois é preciso sobreviver, com dignidade, com emprego e com inclusão. Depois vem as outras pautas, como segurança pública, educação, saúde, respeito as identidades, uso do nome social, retificação de registros e que as escolas possam se moldar a atender trans sem estereótipos, compreendendo que essas pessoas têm o direito de viver como querem viver”, pontua Keila Simpson, que é presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Uma maneira de se engajar na luta pelos direitos da população trans é não fazer comentários sobre estas pessoas, mesmo que a intenção seja de uma brincadeira. Ao identificar alguém agindo dessa forma, é importante mostrar que essas atitudes reforçam o preconceito e a violência.

Música, brincadeira e contação de histórias

Nesse episódio especial, o Radinho BdF dá espaço para o talento de artistas trans e travestis. Quem põe a Vitrolinha BdF tocar é a cantora trans Liniker, da banda Liniker e os Caramelows, com a música “Boxokê” e a cantora travesti Linn da Quebrada, com “Serei A”.

Na hora da brincadeira, as crianças aprendem com a educadora Cynthia Arcângelo, das Oficinas Verde e Rosa, como treinar a percepção do outro e como desconstruir padrões, de uma forma muito divertida.

Já na história do dia, a contadora lara chacon conta para a gente a história da Tina e de sua irmã Maria, do livro “Meu Maninho é uma Menina”, escrito por João Paulo Hergesel e publicado pela Editora Jogo de Palavras.

Sintonize

O programa Radinho BdF vai ao ar às quartas-feiras, das 10h às 10h30, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo. A edição também é transmitida na Rádio Brasil de Fato, às 9h, que pode ser ouvida no site do BdF.

Em diferentes dias e horários, o programa também é transmitido na Rádio Camponesa, em Itapeva (SP), e na Rádio Terra HD 95,3 FM.

Assim como os demais conteúdos, o Brasil de Fato disponibiliza o Radinho BdF de forma gratuita para rádios comunitárias, rádios-poste e outras emissoras que manifestarem interesse em veicular o conteúdo. Para fazer parte da lista de distribuição, entre em contato pelo e-mail: [email protected].

+ sobre o tema

Jovem homossexual faz desabafo após ter sido agredido em Olinda

Marcos Valdevino passeava com amigos quando apanhou e foi...

22 países europeus ainda tinham esterilização obrigatória para pessoas trans

Esterilização não é mais obrigatória para pessoas trans em...

Mãe que internou filha ‘trans’ é proibida de se aproximar dela pela Lei Maria da Penha

Defensoria determinou que mulher não pode chegar perto da...

para lembrar

Cauã Reymond é uma travesti em clipe sobre tolerância

Poderia ser um post sobre representatividade, mas é só...

Após ser alvo de ataques transfóbicos e racistas, Érika Hilton irá processar 50 pessoas

Após ser alvo de ataques transfóbicos, machistas e racistas,...

Bullying: Conselho responsabiliza diretora por bullying e racismo

Estudantes de escola estadual de Campo Grande sofreram agressões...
spot_imgspot_img

Aos 76, artista trans veterana relembra camarins separados para negros

Divina Aloma rejeita a linguagem atual, prefere ser chamada de travesti e mulata (atualmente, prefere-se o termo pardo ou negro). Aos 76 anos, sendo...

Comitê irá monitorar políticas contra violências a pessoas LGBTQIA+

O Brasil tem, a partir desta sexta-feira (5), um Comitê de Monitoramento da Estratégia Nacional de Enfrentamento à Violência contra Pessoas LGBTQIA+, sigla para...

“Perda de aulas por tiroteios na Maré agrava desigualdade”

Desde 2014 à frente da editora Caixote, a jornalista e escritora carioca Isabel Malzoni mergulhou no universo das violências sofridas por crianças e adolescentes que moram no complexo...
-+=