Naomi Campbell e as modelos negras que mudaram a indústria da moda

“Você quer ser modelo?”, perguntou a caçadora de talentos Beth Boldt, ao se aproximar de um grupo de estudantes na região de Covent Garden, em Londres.

Naomi Campbell, então com 15 anos de idade, achou que Boldt falava com suas amigas loiras e se separou do grupo. Mas era ela quem atraía os olhos da caça-talentos.

“Estou falando com você”, disse ela para Campbell.

A adolescente tímida se tornaria a mais famosa modelo negra da história – uma supermodelo de extraordinária versatilidade (considerada o melhor “andar” da passarela), além de uma personalidade midiática e defensora da igualdade de direitos em um setor onde as pessoas negras, por muito tempo, foram negligenciadas.

Para celebrar os 40 anos de carreira da modelo, foi inaugurada em 22 de junho, no Museu Victoria & Albert de Londres, a exposição NAOMI: In Fashion.

Ela mostra os altos e baixos de Naomi Campbell e apresenta várias das roupas e acessórios memoráveis, como os sapatos azuis com salto de 30 cm, da estilista Vivienne Westwood (1941-2022), que ficaram famosos quando derrubaram a modelo na passarela, em 1993.

Também está em exposição o vestido prata de alta costura Dolce & Gabbana que ela vestiu no seu último dia de trabalho comunitário – uma sentença de cinco dias por um delito causado pelo seu notório temperamento.

Questionada pela revista Grazia por que ela se vestiu daquela forma para a ocasião, Campbell respondeu: “Por que eles deveriam esperar que eu fosse aparecer esfarrapada ou algo assim?”

Naomi Campbell lutou muito para conquistar a igualdade de representação na indústria da moda – Getty Images

O direito a ser vista

Esta recusa a ser diminuída pelas expectativas da sociedade deve ter ajudado Naomi Campbell a ser a primeira mulher negra retratada na capa da edição francesa da revista Vogue, em 1988.

Quando a revista retratou suas amigas supermodelos brancas e ela foi recusada, Campbell dobrou a aposta. Ela procurou o estilista Yves Saint Laurent (1936-2008), um dos maiores anunciantes da Vogue, que concordou em suspender roupas e publicidade até que a revista cedesse.

“Definitivamente, eu precisei lutar muito”, conta Campbell no livro que acompanha a exibição no Museu Victoria & Albert.

“Algumas pessoas estavam simplesmente sendo honestas quando me diziam que nunca haviam pensado em usar uma garota negra. Por isso, nem sempre tomei como racismo. Eu só pensava, ‘OK, você nunca tentou, agora está na hora de tentar’.”

Campbell rapidamente reconheceu outras pioneiras. Em entrevista ao apresentador de TV Michael Parkinson em 2004, ela disse: “Quando consigo uma capa, acho que não é só para mim, é para a geração de mulheres antes [e] depois de mim.”

Uma das que abriram o caminho para modelos revolucionárias como Campbell foi Donyale Luna (1945-1979). A modelo americana foi a primeira estrela negra a aparecer na capa da revista Harper’s Bazaar, em 1965.

Mas o resultado foi decepcionante. Era uma ilustração, não uma fotografia – e sua pele era rosa-claro.

A modelo americana Donyale Luna foi pioneira ao ser retratada em capas de revistas nos anos 1960 – Getty Images

Também foram decepcionantes as reações contraditórias do público à inclusão de pessoas negras em páginas que, há muito tempo, eram consideradas privilégio dos brancos. Nos Estados Unidos, alguns patrocinadores ameaçaram retirar sua publicidade e alguns leitores cancelaram assinaturas da revista.

Mas, no ano seguinte, a edição britânica da Vogue colocou Luna na capa. Desta vez, sua pele era mais escura, mas sua representação como uma antiga egípcia seguiu a metáfora da mulher negra “exótica”, representando os papéis limitados que eram oferecidos a elas na época.

O conceito da beleza negra

“Historicamente, as mulheres negras da América branca foram chamadas de muitas coisas. ‘Belas’ foi uma das últimas”, afirmou a escritora e modelo americana Barbara Summers (1944-2014) na sua histórica obra de 1998, Skin Deep: Inside the World of Black Fashion (“Superficial como a pele: dentro do mundo da moda negra”, em tradução livre).

O livro rompe o contexto histórico e social das noções sobre a beleza negra.

A autora destaca a representação “impessoal… e, muitas vezes, indelicada” das mulheres negras na arte do século 20 e a internalização de um “triste legado de escravidão” que, para ela, ditou “os parâmetros da nossa existência, desde o que poderíamos vestir até quem poderíamos ser”.

No início do século 20, novos produtos, como clareadores da pele e cremes alisantes dos cabelos, enviaram a mensagem de que as características negras naturais precisavam ser corrigidas. Com isso, surgiu o que Summers chama de “confusão” sobre o que seria a beleza negra.

Paralelamente, os linchamentos nos Estados Unidos comunicavam claramente os riscos de entrar nos espaços dos brancos. Foi assim que, apenas com o movimento pelos direitos civis, nos anos 1950 e 1960, as pessoas começaram a se mobilizar em maior número contra o racismo norte-americano.

A modelo Beverly Johnson foi retratada na capa da edição americana da revista Vogue, 50 anos atrás – ALAMY

Naomi Sims (1948-2009) foi um exemplo de uma nova geração de modelos valentes que não esperaram permissão nem convite para entrar em uma indústria predominantemente branca.

Cansada de ser rejeitada pelas agências, ela procurou diretamente os fotógrafos, até chegar às capas das revistas e desfilar para os estilistas Halston e Giorgio di Sant’Angelo.

Sims promoveu sua colega americana Beverly Johnson, a primeira estrela negra a ser retratada na capa da edição americana da Vogue, em 1974 – exatamente 50 anos atrás.

Johnson comemorou a data com o espetáculo Beverly Johnson: In Vogue. O show é baseado nas suas memórias, Beverly Johnson: The Face that Changed It All (“Beverly Johnson: o rosto que mudou tudo”, em tradução livre), de 2015.

“Ela foi muito gentil comigo e eu disse para mim mesma que é assim que vou tratar outras modelos jovens”, declarou Johnson no ano passado, ao canal de TV por assinatura BET.

Em 1988, duas famosas modelos negras fundaram a Coalizão das Garotas Negras, para reivindicar igualdade de pagamento e representação à indústria da moda. Elas são Iman, que é originalmente da Somália, e a nova-iorquina Bethann Hardison.

Campbell entrou para a Coalizão um ano depois. Desde então, ela descreve Hardison como “uma segunda mãe”.

Hardison havia participado da lendária Batalha de Versalhes, em 1973 – um impasse na passarela entre estilistas europeus e americanos, que mudou a história da moda. As modernas casas da moda norte-americanas ofuscaram inesperadamente a velha-guarda da alta costura parisiense, com um exército de majestosas modelos negras.

“A moda nunca mais seria colonizada da mesma forma”, escreveu Summers.

As modelos Bethann Hardison, Karen Bjornson, Alva Chinn e Iman, com o estilista Stephen Burrows – Getty Images

Uma das conquistas da coalizão foi o movimento que levou a uma edição totalmente negra da Vogue Itália. Publicada em 2008, com quatro capas diferentes (incluindo Campbell), a edição esgotou no Reino Unido e nos EUA em 72 horas.

O editor Edward Enninful, responsável pela produção, destacou: “Nunca pensei que conseguiria ver algo como isso – meu povo, minha raça, vestindo as coleções, mulheres lindas, chiques, reais daquela forma.”

“Mas o mais importante é que isso prova que somos financeiramente viáveis. Nós vendemos.”

O ativismo deu resultado

Inspirada nas suas valentes predecessoras e na sua amizade com Nelson Mandela, que ela conheceu nos anos 1990, Naomi Campbell lançou o ativismo que se tornou fundamental para o seu trabalho.

Ela é uma importante defensora dos estilistas africanos, como Marianne Fassler e Tiffany Amber. Campbell promove seu trabalho participando dos seus desfiles e apoiando a ARISE Fashion Week, que celebra a moda africana.

Modelos ativistas como Campbell estão gradualmente vencendo suas batalhas.

Segundo o relatório de diversidade do site The Fashion Spot, sobre a Semana de Moda de Nova York, na primavera de 2015, apenas 20% das modelos eram não brancas. Em 2022, elas já eram mais da metade.

Mas ainda há trabalho pela frente até que as modelos não brancas se sintam totalmente em casa.

A modelo Megan Milan, de Detroit, nos Estados Unidos, declarou no ano passado, em uma postagem viral no TikTok, que ela precisou refazer sua maquiagem para uma apresentação na Semana de Moda de Nova York porque a artista não sabia trabalhar com a pele negra. “Eu parecia um fantasma”, lamentou ela.

O modelo britânico-ganês TJ Sawyerr descreve Alton Mason como ‘o primeiro supermodelo homem da era moderna’ – Getty Images

O modelo, criador de imagens visuais e contador de histórias britânico-ganês TJ Sawyerr trabalhou para a Calvin Klein, Vivienne Westwood e Lacoste. Para ele, persiste uma questão que ele descreve como “simbolismo performático” no interesse de parte da indústria pelos modelos negros.

“Se você tiver plena consciência de que a sua inclusão se baseia no atendimento a uma exigência ou estratégia de relações públicas, acho que, para muitas pessoas, pode parecer algo desvalorizador”, declarou ele à BBC.

Mas a experiência de Sawyerr tem sido predominantemente positiva.

“Ver exemplos de pessoas parecidas conosco… me ofereceu enorme confiança, a ponto de realmente não ter havido muito questionamento sobre a possibilidade de que eu, como pessoa negra, entrasse neste setor”, ele conta.

Sawyerr menciona o exemplo do modelo americano Alton Mason, que ele descreve como “o primeiro supermodelo homem da era moderna”. E também menciona seu bom amigo e compatriota ganês Ottawa Kwami como “possivelmente, um dos melhores exemplos do que a recém-descoberta acessibilidade desta indústria está fazendo para as pessoas de origens marginalizadas”.

Sawyerr agora passa mais tempo atrás das lentes e vem formando uma corrente do bem. Ele contrata cenógrafos, modelos, diretores de arte e estilistas negros para projetos que, segundo ele, “promovem a valorização da nossa cultura e das nossas origens” e “homenageiam indivíduos que podem não receber o brilho que eu acho que eles merecem”.

Como Campbell, Sawyerr cresceu no sul de Londres. Ele fotografou a supermodelo no que ele relembra como “um momento muito belo, de uma volta completa”.

Sawyerr a descreve como “uma enorme impulsionadora”, que “abriu o caminho para uma indústria comercial muito mais acessível, no que se refere aos modelos negros”.

Com base no sucesso das suas predecessoras e, agora, promovendo os talentos emergentes, Naomi Campbell mudou a indústria da moda para sempre, destruindo as restritas noções de beleza do setor.

“A mulher negra tem mais DNA neste planeta do que qualquer outra”, destacou a modelo americana Veronica Webb no documentário Supreme Models (2022).

“Nossa aparência tem 100 milhões de formas diferentes e nunca devemos negar isso. Não devemos nunca negar nenhum aspecto da nossa beleza.”

A exposição NAOMI: In Fashion está em cartaz no Museu Victoria & Albert de Londres, de 22 de junho a 6 de abril de 2025. No livro do mesmo nome que acompanha a exposição, Naomi Campbell aborda 20 dos seus visuais mais emblemáticos.


Leia a versão original desta reportagem (em inglês)

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