Nahima Maciel
Nos últimos 10 anos, o número de escritores mulheres e negros pode até ter aumentado na literatura brasileira, mas não será tão significativo quanto o foi nos anos 1970. Os personagens de pele escura podem deixar de aparecer como bandidos ou empregados domésticos, mas a cor dos autores dificilmente será equilibrada. Enquanto a educação não mudar o mapa da classe média brasileira, a literatura permanecerá confinada a um quadrado que reflete a organização social do país em que pouco fala sobre a periferia desprivilegiada. O tema é um dos capítulos do livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, que a pesquisadora Regina Dalcastagnè acaba de lançar pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Em 2004, Regina, que é professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Grupo de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, deu início a um mapeamento quantitativo dos personagens e autores na produção literária nacional. Na época, os números confirmavam uma suspeita: havia poucos negros e pobres na narrativa brasileira. E isso valia para o universo fictício das histórias e para a cena real na qual circulam diariamente os autores. O grupo leu 258 romances escritos por 165 autores entre 1990 e 2004. Com o auxílio de fichas preenchidas com rigor acadêmico, a equipe chegou à conclusão de que 78,8% dos escritores brasileiros são brancos, e 72,7%, homens.
O cenário se repete nas narrativas. Em 71,1% dos romances pesquisados, os protagonistas são homens e, em 56,6%, representam a classe média. É uma realidade bem diferente das décadas de 1960 e 1970. Para estabelecer parâmetros e um mapa completo, Regina voltou a pesquisa para o período entre 1965 e 1979. Na época, escritoras do sexo feminino não passavam de 17%, hoje são 27,3%. Agora, ela se prepara visando à terceira e última etapa do trabalho. Dessa vez, serão analisados os romances publicados entre 2005 e 2014. A lista de 300 livros está pronta e os colaboradores já deram início às leituras. Será uma análise detalhada da geração 2000, na qual Regina já observa algumas particularidades.
A pesquisadora acredita que os dados podem vir mais animadores. “Acho que o número de mulheres vai aumentar, mas não será tão significativo quanto as pessoas estão pensando. Tenho a expectativa de que tenha aumentado um pouco em relação aos 27,3%, mas não muito”, avalia. Ela também acredita que haverá uma pequena mudança na quantidade de autores negros e isso se deve, em parte, ao sistema de cotas implantado nas universidades brasileiras. “Tenho esperança de que vem aumentando, só que mais lentamente que a situação das mulheres. É um longo processo. As mulheres vêm brigando para participar desse universo da construção de discursos desde os anos 1970, enquanto os negros vêm lutando para ter educação básica. Tem uma distância ainda dentro dessas lutas”, explica.
Ela acredita que o cenário começou a mudar em 1997, quando Paulo Lins publicou Cidade de Deus. Na época, o mercado editorial atentou para o fato de que histórias da periferia podiam dar lucro. Na esteira, nomes como Sérgio Vaz e Ferrez começaram a emergir de uma periferia nem sempre valorizada. No meio acadêmico, os olhares também se voltaram para expressões como o hip-hop e o rap.
Resistência
No período em que os primeiros números da pesquisa foram divulgados, muitos escritores torceram o nariz para os números e defenderam que a cor ou o sexo do autor pouca ou nenhuma importância tinha para a qualidade e a legitimidade do fazer literário, assim como a classe social, cor ou sexo dos personagens. A representação só é possível se o autor tiver total liberdade para se apropriar das histórias, independente de suas origens sociais ou raciais. Mas o que preocupava Regina não era o discurso, e sim a falta de instrumentos que possibilitassem a boa parte da população brasileira se apropriar de suas próprias histórias e auto representar-se.
Os números, a pesquisadora lembra, são apenas um levantamento. Eles não podem e não devem ser considerados como definitivos. A leitura do livro pode ser fundamental para a compreensão dos números. “O problema desse levantamento é que todos os interesses se chocam. O perfil é abrangente e é sempre muito mais interessante fazer uma leitura mais aprofundada de um romance. “Minha mirada na literatura é sempre um pouco mais aberta, mais panorâmica, tentando entender esses jogos de poderes de quem tem legitimidade para produzir e quem não tem, assim como a dificuldade que determinadas classes sociais têm de escrever e de os livros serem aceitos como literatura.”
No cinema
O curioso é que os dados da pesquisa se repetem no cinema. A pesquisadora Paula Lins seguiu a mesma metodologia utilizada pelo grupo de literatura para analisar 211 filmes nacionais e 841 personagens criados por 139 diretores. Desses, 82% eram homens e apenas 18%, mulheres. No protagonismo diante das telas, os números até que se equilibram — 59% dos personagens principais são do sexo masculino —, mas no quesito origem social e etnia, refletem o panorama literário com 82,3% dos personagens brancos e 70% de classe média.
O perfil da literatura 2005-1990
Os personagens
79,8% são brancos
56,6% são de classe média
81% são heterossexuais
71,1% dos protagonistas são homens
82,6% dos romances acontecem nas metrópoles
56,3% dos adolescentes negros retrataddos nos romances atuais são dependentes químicos contra
7,5% de adolescentes brancos na mesma situação
Os autores
72,7% são homens
93,9% são brancos
78,8% possuem ensino superior
36,4% são jornalistas
O perfil no cinema 1996-2006
Os personagens
59% dos que ocupam papeis de protagonistas são homens
41% são mulheres
Entre os narradores, 20% são mulheres
82,5% dos personagens são heterossexuais,
5% são homossexuais
1% tem sexualidade indefinida
82,3% são brancos
17,5% são negros, indígenas e mestiços
70% integram a classe média ou elite econômica
27,5% são pobres ou miseráveis
Os diretores
82% dos diretores são homens
18% são mulheres
Fonte: Interjornal de Notícias