No tempo de Lázaro

Por Rodrigo Cavalheiro

Cubano ganha R$ 0,40 por dia e não aceita esmola

 

HAVANA – Como na maior parte dos países em que há miséria, os moradores de rua no centro de Havana deixaram de chamar atenção. São a parte viva do mobiliário urbano da capital e podem ser contados às dezenas. Lázaro Macías é um deles, mas não mais um deles. Aos 73 anos anos, vive há 12 sob os arcos dos imponentes e arruinados prédios coloniais da cidade. Mas só há pouco, cerca de quatro meses, começou a caçar latinhas no lixo de hotéis e restaurantes.

Ele entrou para o time dos que sem saber salvam o mundo. Com cada saco grande que lota, e isso é coisa para um dia de catação, salva seu dia. Lázaro sabe então que tem no bolso 8 pesos cubanos, R$ 0,40. Esse tanto de dinheiro lhe permite poucos luxos. Entre eles, comer um prato de sopa no bairro chinês da cidade – provavelmente o único do tipo no mundo sem chineses.

Sentado sob a sombra de uma árvore, Lázaro trabalha concentrado. São cerca de 15 golpes com o toco de madeira até tranformar a lata em uma espécie de chapa estampada com cores de cerveja – a vermelha, Bucanero, ou a verde, Cristal – ou de refrigerante – centenas de tipos, nenhum de Coca-Cola. Ao seu lado, há dois cachorros. “Não são meus. Não tenho como manter”, explica, cara de quem responde algo óbvio. Volta a socar. O pedaço de pau de cerca de 300 gramas já ganhou o contorno de sua mão, perdeu as felpas a pancadas. Lázaro não muda a frequência, a não ser que alguém se sente ao seu lado a importuná-lo com perguntas. Aí pode perder o ritmo, mas não a paciência.

IMG 6698

Aos 73 anos, Lázaro Macías vive há 12 sob os arcos dos prédios coloniais de Havana

Lázaro vive em um tempo particular. Veste uma bermuda preta rasgada, sapatos rasgados, camiseta rasgada e, no pulso esquerdo, leva dois relógios. “Este era do meu pai”, explica, apontando o modelo na parte superior do antebraço. É o relógio que o lembra de quem ele foi. De que é filho de Domingo Macías e ganhou a vida entregando água em hospitais em um carro-pipa durante 30 anos.

O outro relógio, descascado, de menor categoria, o lembra de quem é. De que precisa levar as latas ao depósito agora, antes que feche. Cego do olho esquerdo, Lázaro não reclama. “Podia ser pior. Podia não ter o olho direito”, sintetiza. Faz uma pausa, para então completar com o pior cenário que lhe vem à cabeça: “Eu podia estar pedindo”.

Lázaro, R$ 0,40 por dia, um miserável com sobras segundo a ONU, tem em seu código de honra dois artigos. O primeiro: não pede nem aceita esmola. O segundo: não vende (passou quatro dias de fome e não o fez) o relógio que pertenceu a Domingo Macías, aquele que marca quem ele foi. Aquele que parou de funcionar às 18h30, de uma segunda-feira, de um dia 9 qualquer.

 

 

 

Fonte: Estadão

+ sobre o tema

Carnaval: Samba da Vila Isabel em homenagem a Martinho traz reforma agrária

A Unidos de Vila Isabel escolheu, na quarta-feira (30) o samba...

Pan-africanismo: o conceito que mudou a história do negro no mundo contemporâneo

A ideologia Pan-africanista surgiu de um sentimento de solidariedade...

Djavan prepara disco de canções inéditas para este ano

Djavan prepara disco de canções inéditas: o 24º álbum...

para lembrar

Governo prorroga inscrição para bolsa de fomento a artistas e produtores negros

Ana Cristina Campos - Repórter da Agência Brasil  ...

102 anos da Umbanda, a religião dos negros, índios e caboclos

Recebi do amigo André Queiroz, que por sua vez recebeu...
spot_imgspot_img

Mulheres sambistas lançam livro-disco infantil com protagonista negra

Uma menina de 4 anos, chamada de Flor de Maria, que vive aventuras mágicas embaixo da mesa da roda de samba, e descobre um...

Podcast brasileiro apresenta rap da capital da Guiné Equatorial, local que enfrenta 45 anos de ditadura

Imagina fazer rap de crítica social em uma ditadura, em que o mesmo presidente governa há 45 anos? Esse mesmo presidente censura e repreende...

Em junho, Djavan fará sua estreia na Praia de Copacabana em show gratuito

O projeto TIM Music Rio, um dos mais conhecidos festivais de música no país, terá como uma de suas atrações, no dia 2 de...
-+=