Em 2 de agosto de 2014, no bairro da Calçada, em Salvador, Geovane Mascarenhas de Santana estava em sua moto, quando foi abordado por alguns policiais. Após essa abordagem, registrada por uma câmera local, Geovane foi colocado no porta-malas de uma viatura da Rondesp, por volta das 17h. Depois disso, nunca mais foi visto. Sua moto também foi levada pelos policiais e nunca mais encontrada. Se não fosse a persistência de seu pai, o comerciante Jurandy Silva de Santana, seu corpo jamais teria sido encontrado. Após treze dias de intensa busca, o corpo de Geovane foi achado no IML carbonizado, decapitado e sem suas tatuagens. O documentário “Sem Descanso”, do cineasta francês Bernard Attal, já traduz em seu título a saga desse pai em busca da verdade sobre o que aconteceu com Geovane. Mais do que isso, debate o sistemático uso da violência nas abordagens policiais em que invariavelmente culminam no extermínio de jovens negros.
A coluna Geledés no debate conversou com Bernard Attal, que estudou cinema na New School de Nova York e é residente no Brasil desde 2005. De Salvador, Attal nos contou que entre os motivos que o levou a rodar o longa foi o fato de o crime ter acontecido na mesma semana em que o jovem Michael Brown foi assassinado nos Estados Unidos, em um caso que repercutiu muito mais na imprensa americana do que a morte de Geovane no país. O filme deverá ser lançado até o final deste ano, e com o debate proposto sobre a autuação da polícia em nosso país, promete fazer bastante barulho. Veja abaixo a entrevista concedida à coluna:
Geledés – O que o levou a contar a história de Geovane Mascarenhas de Santana?
Três elementos captaram minha atenção e deram a essa história um diferencial: primeiro, se tratava de um pai que não desistiu de encontrar o paradeiro do seu filho; segundo, um jornal local resolveu ajudar esse pai nessa busca em uma época em o que o jornalismo de investigação se tornou cada vez mais raro; finalmente, o crime aconteceu na mesma semana do assassinato do jovem americano Michael Brown que teve muita repercussão nos EUA, demonstrando assim como duas sociedades com situações em comum reagem de uma maneira distinta.
Geledés – O título do filme “Sem Descanso” remete à trajetória de um pai à procura pela verdade sobre a morte de seu filho. Como vê a importância de se trazer a veracidade dos fatos diante da sistemática violência policial?
Os fatos revelaram uma barbaridade difícil de imaginar. Então era muito importante fazer essa pesquisa e trazer à luz a crueldade do que acontece no dia a dia na periferia das cidades. Já nos acostumamos por demais com a violência do Estado. Precisa-se mostrar o que ela significa, para que finalmente a sociedade saia de sua passividade.
“Os fatos revelaram uma barbaridade difícil de imaginar. Então era muito importante fazer essa pesquisa e trazer à luz a crueldade do que acontece no dia a dia na periferia das cidades.”
Geledés -O que acredita ter sido a real motivação de os policiais terem decapitado, carbonizado e ainda retirado as tatuagens de Geovane?
Queimar a tatuagem com o nome do pai de Geovane tinha como objetivo claro de não poder identificar o corpo. Em muitos casos, não se acha ou não se identifica o corpo, e aí não se pode comprovar o crime. O motivo do crime mesmo, ainda não se sabe. Como nunca foi encontrada a motocicleta do Geovane e há testemunhas que ouviram uma conversa sobre a moto entre os policiais, existem especulações de tráfico de motos por parte de alguns deles. Um dos policiais foi preso e afastado por dois anos depois de participação em um furto. Mas nada foi comprovado até hoje sobre o motivo do assassinato de Geovane.
Geledés – Os depoimentos dos psicólogos e historiadores no filme remetem ao racismo estrutural e institucional nas esferas públicas brasileiras, em especial à polícia. Como analisa essa situação em relação ao caso de Geovane?
É muito importante entender que casos como o de Geovane não são isolados de alguns maus policiais, como os governos gostariam que a sociedade acreditasse. Há policiais ótimos, dedicados, e há policiais corruptos, como acontece na maioria das profissões. O sistema em si, a formação dos policiais, a disciplina que recebem, as ferramentas do universo judiciário para lutar com a violência policial, a tolerância da sociedade e dos órgãos públicos são os pilares podres dessa situação, dessa tragédia, e símbolos do racismo estrutural que o país vive há séculos.
Geledés– A taxa de homicídios de jovens negros no Estado da Bahia é cerca de cinco vezes maior que a de jovens brancos, segundo relatório “A Cor da Violência na Bahia”, publicado em março deste ano pela Rede de Observatórios da Segurança. No entanto, segundo a organização relatora, este mesmo levantamento se baseou em dados do Sistema Único de Saúde (SUS) sem correlacioná-los às estatísticas da segurança pública por justamente não estarem disponibilizadas pelo governo de Rui Costa (PT). Governos de esquerda e de direita tratam a questão do genocídio negro da mesma forma?
A violência policial não para de crescer há mais de dez anos, e agora acelerou ainda mais. Quase nenhum governo de esquerda ou de direita leva o assunto a sério, porque não vê uma mobilização por parte da sociedade. Em nível estadual, os governos temem a reação da polícia, com greves, afrontamentos nas ruas. O governo do Ceará recusou essa chantagem, entrou em conflito com a PM e conseguiu reduzir os números de homicídios decorrentes de confrontos com a polícia, no ano passado. Veremos se essa tendência se confirma por lá. Na Bahia, sob o governo do PT há 14 anos, a situação é dramática: número elevado de homicídios e falta de transparência nos dados. Quanto aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, com os governos que foram eleitos em 2018, nem se fala. É carta branca para os policiais.
“É muito importante entender que casos como o de Geovane não são isolados de alguns maus policiais, como os governos gostariam que a sociedade acreditasse. Há policiais ótimos, dedicados, e há policiais corruptos, como acontece na maioria das profissões.”
Geledés – O caso do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos fez eclodir um debate substancial sobre a reforma das polícias. Como vê̂ essa situação no Brasil?
Parece que achamos que Vidas Negras Importam lá fora, mas nem tanto no Brasil. As organizações antirracistas têm muita dificuldade em mobilizar multidões por aqui. Poucos artistas no país se pronunciam. Na semana passada, participei de uma manifestação em Salvador em apoio à família de um menino de onze anos morto pela polícia enquanto brincava de pipa. Éramos menos de cinquenta pessoas, a maioria formada por parentes e amigos da família. Tinham mais policiais nos vigiando.
Geledés -Nesse sentido, o que poderia ser feito em relação à abordagem policial e também sobre as ouvidorias?
Há muito bons especialistas em segurança pública que publicam no Brasil e muitos bons exemplos de reforma das polícias em outros países. Existem alguns países que não apresentam violência policial, com pouquíssima criminalidade. A criminalidade não é uma fatalidade do Brasil que faz da violência policial uma ferramenta obrigatória. Pelo contrário, ela agrava a violência como um todo. Dentre as reformas que já trouxeram resultados efetivos estão a obrigação de colocar câmera na farda dos policiais, a proibição de os policiais mexerem no corpo das vítimas (como se faz cada vez mais para apagar os indícios), a proibição de se modificar a área onde ocorreu o afrontamento, a criação de um circuito especial de investigação independente no sistema judiciário, sem a interferência da polícia ( como está sendo experimentado nos EUA após o assassinato de George Floyd) , a reorganização do orçamento dos departamentos de polícia, a reaproximação da polícia com a sociedade civil etc.
“A criminalidade não é uma fatalidade do Brasil que faz da violência policial uma ferramenta obrigatória. Pelo contrário, ela agrava a violência como um todo.”
Geledés – De que forma a sociedade brasileira é conivente com o genocídio dos jovens negros no país e como ela pode colaborar para que seja interrompida essa tragédia?
Simplesmente ela não reage à altura da gravidade do problema e, por muitas vezes, a população procura uma desculpa para isentar os policiais. As multidões que foram às ruas em protesto do assassinato do George Floyd nos EUA, mesmo no meio da pandemia, raramente se levantam aqui. Temos poucos formadores de opinião com vozes potentes que mobilizam sobre esse assunto. Alguns jornais ou revistas sim procuram chamar a atenção, como esse jornal da Bahia, O Correio, ou a revista Carta Capital. Temos ONGs, movimentos no campo, como As Mães de Maio na luta desde 2006, por exemplo, que são corajosas, persistentes. Os próprios governantes nunca fazem homenagens às vítimas, quase nunca atendem os enterros, e primeiro sempre procuram desculpar o corpo da PM.
Geledés – O filme foi apresentado em vários festivais pelo mundo. Que tipo de discussão surgiu e como a temática é vista lá́ fora?
Até o governo Bolsonaro, o Brasil era visto lá fora como um país de harmonia racial. Agora mudou radicalmente. Então no começo das apresentações do filme, a reação nos festivais era de grande surpresa e as pessoas começaram a entender que aqui, o racismo é muito sutil, disfarçado, mas não menos violento, até mais do que nos EUA ou na África do Sul durante o apartheid.
Geledés -Diante de um governo que dá costas aos Direitos Humanos, qual a urgência de se debater o tema?
Parece-me que é uma oportunidade e um risco ao mesmo tempo. A oportunidade é que agora a sociedade como um todo percebe o nível de violência do Estado, talvez por sentir na pele, e, possivelmente poderá reagir. Isso já está acontecendo nos EUA, onde os movimentos negros estavam bem desanimados em razão da eleição de Donald Trump e agora deverá ser uma das causas de sua derrota. O risco é a perseguição desses movimentos no Brasil, de sofrerem ameaças, de sofrerem violência por parte de um segmento da polícia que se sabe estar sob a proteção dos governantes. Mas nessa luta não há como ter medo, nunca.
Geledés -Como cineasta nascido na França, como vê o debate do genocídio no cinema brasileiro?
A França está enfrentando também uma onda de violência policial desde 2017, claro com menos gravidade do que no Brasil. Mas é preocupante. O filme mais premiado lá no ano passado, Os Miseráveis, trata desse assunto. Enquanto meu filme rodava por festivais no mundo inteiro, tivemos dificuldade em fazê-lo ser aceito no país. Os únicos festivais corajosos foram o Panorama Internacional e o Arraial Cinefest, ambos da Bahia, e o Festival Internacional do Rio em sua principal competição. A grande maioria dos curadores de festivais que faz parte da elite cultural do país não mostra interesse real no assunto; ao contrário, o sentimento é de fatiga, indiferença, tolerância ou medo. Ainda não cheguei a uma conclusão, mas é vez que mais de seis mil pessoas morrem a cada ano por conta da violência do Estado.