Estamos em crise e essa não é uma novidade para nós, pessoas negras e indígenas, que somos violentadas e vulnerabilizadas desde o início do processo de colonização desse país que hoje chamamos de Brasil.
Guerras, exploração de corpos e territórios, escravização, destruição de faunas e floras, o imperialismo ecológico1, a percepção da natureza e a relação estabelecida com ela pela cultura ocidental nomeada de “progresso” trouxe o planeta para beira de um colapso.
O aquecimento global antrópico, ou seja, a elevação da temperatura média do planeta provocada pelas ações humanas (aqui leia-se sobretudo pelos homens brancos do norte global), acelerado pela emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE) com a revolução industrial, fomenta um novo contexto de emergência e tem chamado os diferentes setores da sociedade para agir e refletir sobre uma das maiores crises que a humanidade já enfrentou: a crise climática.
Embora seja possível mensurar quais os países que mais contribuem com a emissão dos GEE e por conseguinte a proporção das responsabilidades com o aumento da temperatura média do planeta, não existem fronteiras para a ocorrência dos eventos climáticos extremos e seus efeitos não têm acontecido no vácuo, nem tão pouco todas as pessoas têm sentido os impactos da mesma maneira.
Com o aquecimento global, novos processos de opressão se somam e atuam contra grupos racializados que são historicamente marginalizados e não acessam um conjunto de políticas públicas socioambientais que possam garantir vida com dignidade dentro de seus territórios, essencialmente no sul global.
De acordo com o relatório síntese 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)2, a América Central e do Sul, o Oeste, a região Central e Leste da África, o Sul da Ásia e o Ártico, são as regiões que estão em alta vulnerabilidade às ameaças climáticas, além de terem os maiores pontos críticos globais de alta vulnerabilidade humana, mesmo com emissões dos GEE per capita muito menores que a média global. Ainda, na média histórica de 2010 a 2020, a mortalidade humana causada por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes maior nessas regiões que são altamente vulneráveis, quando comparado com regiões com vulnerabilidade muito baixa.
Essas realidades são construídas a partir da lógica do racismo ambiental3, que determina quem são os sujeitos que podem ou não reivindicar um futuro, onde o norte global polui e enriquece e as populações racializadas do sul global pagam a conta todos os dias com sua vida. Diante desse cenário, é urgente reafirmar: se foi o norte global que nos trouxe até aqui, não é ele que terá condições de propor soluções efetivas para o processo de descarbonização do planeta.
Esse mesmo grupo de países que carbonizou, e hoje possuem as maiores economias do mundo com riquezas acumuladas a partir da exploração, sentam nas mesas de negociações internacionais e não assumem suas responsabilidades e dívidas históricas, nem tão pouco respeitam e implementam medidas eficazes para honrar o Acordo de Paris (2015) e tantos outros tratados internacionais que ao propor limites para evitar o aquecimento da terra de forma irreversível poderiam, se efetivados, levar a humanidade para outro rumo.
Na verdade, o que temos visto na prática é a proposta de “falsas soluções” que visam a manutenção do status quo a partir do extermínio do nosso povo e que, por vezes os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, implementam para continuar na corrida por um ideal de desenvolvimento que só gera destruição, desigualdades sociais e benefícios para as elites econômicas que dominam esses países.
Isso ocorre, por exemplo, com a instalação de parques eólicos (intitulados como fonte de energia limpa) em terras quilombolas do Ceará que causam impactos na moradia, na saúde, na fauna e flora do território, e as propostas de economia verde que tem criado monoculturas de eucalipto e expulsado povos e comunidades tradicionais do seu território no sul da Bahia.
Apesar do horizonte desesperador, a esperança mais uma vez vem do nosso povo e como disse Nego Bispo, “nós somos o começo, o meio e o começo”. Jamais sucumbiremos à perversidade imposta pelo homem branco. Ainda há chances de fazermos diferente, reconhecendo que as verdadeiras soluções para enfrentar a crise climática vem das mãos das pessoas negras, indígenas, quilombolas, periféricas, ribeirinhas, das águas, das florestas, dos campos e das cidades.
Em cada canto do Brasil, com esforço e vontade política, é possível enxergar as tecnologias sociais elaboradas por quem vive na pele a crise climática. São soluções apresentadas de baixo para cima que, se implementadas como políticas públicas, garantiriam a preservação do planeta, a superação do racismo e das desigualdades sociais, promovendo uma vida com dignidade para todas as pessoas, sobretudo para as populações que são secularmente marginalizadas e vivem sem acesso a direitos básicos.
Nesse sentido, dois conceitos contribuem para pensar a importância dessas soluções num panorama global: o conceito Grassroots Innovation e o conceito de tecnologias sociais. A concepção do Grassroots Innovation (inovações desenvolvidas na base) surgiu na década de 1990, na Índia, a partir dos conhecimentos criados por comunidades tradicionais e indígenas para resposta a problemas socioambientais enfrentados por essas comunidades. São apontadas pela literatura como fundamentais para resolver os desafios ambientais da atualidade, alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e combater a mudança do clima e seus efeitos.
Por sua vez, tecnologia social é pautada por uma perspectiva crítica latino-americana decolonial, que tensiona a relação centro-periferia, tendo como elemento o “local” protagonizando a concepção e implementação da tecnologia. Se contrapõe ao conceito de inovação social, que está relacionado as perspectivas do norte global, por vezes ligadas a manutenção do status quo, que coloca os indivíduos em posição de beneficiários da inovação, e não de sujeitos autônomos que criam e organizam suas próprias tecnologias. As tecnologias sociais podem ser desenvolvidas tanto na resolução de problemas ambientais, quanto nos diversos problemas sociais que existem.
Ambos conceitos nos ajudam a organizar e sistematizar experiências, processos que já produzimos e vivenciamos em nossos territórios, de forma secular ou contemporânea, e que também estão acontecendo em outros lugares ao redor do mundo.
Do ponto de vista do cenário internacional, importa destacar que é reconhecido pelo próprio IPCC a importância de aliar os conhecimentos de comunidades locais e científicos para a construção de governança e políticas climáticas que sejam eficazes. Esse reconhecimento é importante para avançarmos nos processos que potencializam as narrativas de quem está na linha de frente dessa crise nos mais variados espaços e instâncias de discussão.
No Brasil, saberes e tecnologias ancestrais confluem com novos repertórios para criar proposições que têm o potencial de melhorar a vida para todas as pessoas da nossa sociedade. Estamos falando de geração cidadã de dados a partir do mapeamento de áreas racializadas em vulnerabilidade climática com auxílio de drone, e da divulgação
desses dados com o uso de realidade virtual, desenvolvido pelo coletivo Ibura Mais Cultura4. Da construção de hortas urbanas comunitárias que combatem a insegurança alimentar a partir de lajes produtivas no morro do sossego, organizadas pelo coletivo de mulheres do Espaço Agroecológico do Morro do Sossego5.
Falamos da construção de um plano de contingência comunitário envolvendo os moradores de uma comunidade ribeirinha urbana, realizado pelo Espaço Gris Solidário6. Do uso da litigância estratégica na defesa dos territórios quilombolas com o protagonismo e fortalecimento político das populações que sofrem com os impactos ambientais da instalação de megaempreendimentos, organizado pelo Fórum de Suape7.
Esses são apenas alguns exemplos de uma infinidade de tecnologias sociais que estão sendo organizadas e pensadas neste exato momento, que emergem contra as injustiças climáticas e raciais e apresentam respostas que não chegam pela via estatal. Essas tecnologias são revolucionárias, porque colocam as pessoas diretamente atingidas no centro do desenho e gestão da solução, num processo coletivo de superação de problemas comuns.
A grande questão que precisa ser tensionada é: se essas tecnologias sociais apresentam respostas concretas para resolver problemas criados pela crise climática, por que não têm sido consideradas e incorporadas nas políticas climáticas?
De fato, essa não é uma resposta simples de ser respondida, poderíamos considerar diversos fatores para a nossa discussão, especialmente na tentativa de olhar para a complexa estrutura de desigualdades do Brasil. Mas me importa dizer que, no nosso país, de uma democracia jovem e fragilizada, que ainda não alcança todas as pessoas, existe uma tradição que desconsidera a participação social ampla e efetiva nas políticas socioambientais, fundamentalmente das populações negras e indígenas.
Além disso, o que esperar de um país que em todo sua história foi conduzido por elites econômicas brancas, que foi o último do continente a abolir a escravidão, que ainda não reconhece o racismo como estruturante das mazelas sociais, que não avança em pautas e agendas importantes para superação do racismo, desigualdade econômica e de gênero, como a demarcação de terras indígenas e quilombolas, um país dominado pelo agronegócio e um dos que lidera o ranking de mortes de defensores ambientais.
É evidente que urge a necessidade de uma transformação profunda na forma de construção, implementação e monitoramento das políticas e nos modelos de governança climática para vencer a guerra de narrativas que vivemos neste momento e termos como foco salvar as diferentes formas de vida do planeta.
Não há uma única resposta para frear as mudanças climáticas e seus efeitos, mas é certo que se não envolver as pessoas que são diretamente atingidas por essa crise jamais atingiremos justiça climática e racial, que são duas faces da mesma moeda.
1 O conceito de imperialismo ecológico foi cunhado pelo historiador ambiental norte-americano Alfred
W. Crosby em livro de sua autoria intitulado “Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900“. Nessa obra ele discute como o processo de colonização europeu promoveu uma invasão biológica nas terras colonizadas e como faunas, floras e doenças que foram levados pelos invasores europeus foram capazes de provocar um extermínio e aniquilação das faunas, floras e povos nativos. Em que pese, possamos fazer inúmeras críticas de como o autor ao trabalhar esse conceito reforça estereótipos e preconceitos contra os povos colonizados, já há outras releituras desse mesmo conceito que nos ajudam a pensar nos impactos da colonização a partir também dessa perpesctiva de invasão biológica o que considero importante para nossas reflexões acerca da crise climática.
2 O IPCC foi criado em 1988 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Organização Meteorológica Mundial. Entre outras atribuições, o IPCC é responsável por elaborar relatórios sobre o estado de conhecimento sobre a mudança de clima considerando os aspectos científicos, técnicos e socioeconômicos.
3 O termo Racismo Ambiental refere-se aos impactos desproporcionais que as populações negras e racializadas estão submetidas nos processos de degradação e danos ambientais. Sua criação é atribuiada a Benjamin Franklin Chavis Jr., um ativista negro pelos direitos civis norte-americano, na década de 80, durante protestos contra a instalação de aterros de resíduos tóxicos em uma área onde a maior parte da população que residia era negra. Academicamente o termo foi pautado e amplamente defendido por Robert Bullard, sociólogo e professor norte-americano, também conhecido como pai da Justiça Ambiental.
4 Instagram: @iburamaiscultura
5 Instagram: @espacoagroecologico2023
6 Instagram: @gris.solidario
7 Instagram: @forumsuape
Referências bibliográficas:
BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (orgs.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 40-68.
HOSSAIN, Mokter. Grassroots innovation: A systematic review of two decades of research. Journal of Cleaner Production (no prelo), 2016. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2813227.
SEYFANG, G.; SMITH, A. Grassroots innovations for sustainable development: Towards a new research and policy agenda. Environmental Politics, v. 16, n. 4, p. 584–603, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1080/09644010701419121.
SALDANHA, F. P.; POZZEBON, M.; DELGADO, N. A. Dislocating peripheries to the center: A tecnologia social reinventing repertoires and territories. Organization, v. 31,
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