Nós somos os penetras

Por: ANTONIO POMPÊO

 

Na peça teatral “Esse perverso sonho de igualdade”, de Joel Rufino dos Santos – que fala da revolta dos alfaiates ocorrida na Bahia do século XVII -, um dos revoltosos entra em desespero e grita: “O mundo é dos brancos, nós somos os penetras!”

 

É assim que, às vezes, os não brancos da nossa sociedade se sentem: excluídos na invisibilidade. Ao andarmos, por exemplo, pelo Congresso Nacional, símbolo de democracia, constatamos a invisibilidade. Aí, perguntamos: por que isso acontece?

 

Existe uma sutileza nesse olhar que só sente quem está do lado de cá. Da mesma maneira sentimos a intenção de apagar o passado escravocrata deste país. Não dá. São apenas 122 anos. As marcas estão aí para quem quiser ver. Milhares de negros não conseguiram atravessar o Atlântico, ficaram no meio do mar, almas perdidas e esquecidas e que clamam por um reconhecimento histórico. Impossível dizer que a escravidão não aconteceu.

 

Durante muitos anos vivemos sob o véu da democracia racial. Foram anos de luta até admitirmos a desigualdade e o racismo. Graças à atuação de uma geração do movimento negro brasileiro, conseguimos colocar a questão racial em pauta. No entanto, a resistência a discutirmos o assunto ocasionou um hiato muito grande no atendimento de nossas reivindicações.

 

O racismo é uma serpente de muitas cabeças. Damos um golpe no seu corpo e ela se multiplica. Precisamos lutar para que essa igualdade exista e que todos possam participar. Mas nem sempre tratar os iguais igualmente dá certo. Às vezes necessitamos apressar os acontecimentos, tomar medidas urgentes. Este é o caso das ações afirmativas. Só com elas os negros poderão participar ativamente da divisão econômica no Brasil. As nossas reivindicações estão em análise no STF. Se a decisão for favorável, avançaremos; se for contrária aos nossos interesses, acataremos.

 

Na década passada ficamos iludidos pela entrada no século XXI. Com certeza, na medicina, na ciência e outras modalidades entramos neste século. Mas estamos atrasados nas relações humanas. Parece que nada mudou. Os conflitos mundiais estão aí para provar. A grande novidade foi a eleição de um negro, algo até então impensável, para a presidência dos Estados Unidos. Esperamos que esses ventos de mudanças cheguem por aqui.

 

O Brasil está deixando de ser o país do futuro e entrando no clube das nações do presente. Mas, para entrar definitivamente no novo século, precisamos incorporar essa leva de 49% de negros e pardos. Sem isso não há como avançar e se tornar um país competitivo. Zumbi, Machado de Assis, Juliano Moreira,Tia Ciata, Lima Barreto, Antonio Rebouças, Cartola, Lélia Gonzales, Carolina de Jesus, Mãe Menininha do Gantois, Aleijadinho, Pixinguinha e tantos outros e outras clamam por uma verdadeira democracia racial.

 

Texto publicado no Globo de hoje. O autor é ator, diretor e presidente do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan).

 

Fonte: O Globo

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