Fernanda Pompeu para o Portal Geledés
Em certa década do século XX fui uma estudante de cinema. Para nós, a palavra Kodak era sinônimo de magia. Kodak era igual a rolos de negativos, portanto significava fazer filmes. Latas com a etiqueta amarela eram, na falta de uma metáfora melhor, alimento para almas famintas de realização.
Na escola, havia mais vontades do que metragens de filmes, mais roteiros do que recursos. Os estudantes se dividiam em duas tendências. A primeira, da qual eu fazia parte, sonhava com os filmes de autor. Nossos ídolos eram Jean-Luc Godard (O Acossado), Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser).
A segunda tendência, hoje majoritária e vitoriosa, sonhava com os filmes de público. Seus ídolos eram todos os que deram certo em Hollywood, isto é, cinema com bilheteria gorda, diretores milionários e Oscar na prateleira. Para além dessa divisão, havia outra mais prosaica: os que preferiam as latas Fujifilm e os devotos da Kodak.
Eu era da turma Kodak. Adorava a historinha da firma nascida em 1888 nos Estados Unidos. O Steve Jobs dela atendia pelo nome de George Eastman. Ele queria tornar a fotografia “tão simples como um lápis”. A empresa pegou porque fez algo inovador: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. O resto era revelar o filme e devolver a máquina com um novo rolo dentro. Prontinha para as próximas poses.
Esse processo, com consideráveis mudanças, teve sucesso por mais de um século. A Kodak começou a ser desbancada pela fotografia digital. Leia-se: celulares que fotografam; programas que corrigem sombras, rugas, celulites, barrigas, carecas; computadores que armazenam do primeiro beicinho do bebê ao último suspiro do vovô.
Mas quando eu era uma aluna de cinema não existia experiência digital. Me lembro do cheiro dos filmes nas latas Kodak. Acreditem, um cheio tão inebriante quanto o exalado pela dama-da-noite quando o vento agita suas flores. As latas eram a senha para o excitante comando: câmera! (ouvia-se o barulhinho do filme rodando), luzes! (acendiam-se os refletores), ação! (a cena começava).
Também é divertida a origem do nome da empresa. Contam que o pessoal do marketing queimou as pestanas para encontrar uma palavra pronunciável em qualquer idioma. Chegaram em Kodak.
A partir daí, popularizaram a câmera fotográfica. Ela saiu dos estúdios para a vida doméstica, das mãos de profissionais para dedos diletantes.
Ao ler a recente notícia de que a Kodak está próxima do The End, duas palavrinhas imortalizadas por filmes que ela possibilitou, senti uma lufada de nostalgia no meu cérebro século XX. Voltei à sensação recorrente, desde os meus 40 anos, de ser um disco de vinil num ambiente iTunes.
Tá bom! É só uma empresa. Apenas uma marca como tantas outras navegando célere para a falência. A Kodak vai fazer companhia à Varig – estrela brasileira no céu azul. Companhia ao Bamerindus – onde o vampiro de Curitiba tinha uma poupança. Companhia ao Jornal do Brasil – que se calou depois de 119 anos. E sabe-se lá a quais mais defuntos.
Não precisa me lembrar que isso acontecerá com todas as outras. Um dia a Apple fechará as portas, num outro será a Folha de S. Paulo, mais adiante a Estação Primeira de Mangueira. Sei que toda vez que uma delas fechar, alguém reabrirá o Dom Casmurro, do Machado de Assis, publicado em 1899. Está escrito lá : “Tudo acaba, leitor. É um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo.” Mas como dói.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé