Fernanda Pompeu para o Portal Geledés
Vivi quarenta e quatro anos no passado remoto. O que melhor me define – para além do que escrevi, amei, transei, sofri, gargalhei, falei, escutei, engordei – é ser do século 20. O século que inventou o automóvel, o ônibus espacial, o viagra, a fralda descartável, a penicilina, a televisão, a pílula anticoncepcional, o computador, a internet.
O século do dadaísmo, futurismo, modernismo, surrealismo, feminismo, ecoturismo. E também do nazi-fascismo, macartismo, da bomba de Hiroshima, da guerra fria, da Cia, da Kgb, do Dops, do Doi-Codi. O século do prêt-à-porter, dos supermercados, dos imensos campos de refugiados. Dos cem anos em transe.
Quando leio ou ouço slogans que ligam o século 21 a novas maneiras de trabalhar, se relacionar, ver o mundo, fazer política, escrever, sinto a contundente sensação de ser um disco de vinil numa lista do iTunes, ou uma tartaruga num autódromo.
Se houvesse um cemitério para séculos, dentro da cova do século 20 sepultaríamos: a máquina de escrever, o papel carbono, a letra set, o mimeógrafo, o papel almaço, a gilete, o moedor de carne doméstico, o coador de pano, as cartas manuscritas, as vidas secretas.
Uma pessoa ou um século vão envelhecendo não tanto por se sentirem antigos, mas porque os outros os veem velhos. Tornou-se um desapreço dizer que uma coisa, um processo, um produto são do século 20. E é uma manifestação de júbilo e gozo nomear coisas, processos, produtos com a grife do 21.
Como nossa mente é uma incrível fábrica de clichês e eles se reproduzem mais rápido do que os mosquitos da dengue, o século 21 já ganhou várias alcunhas: flexível, hiperconectado, veloz, descartável, inseguro, tecnológico, belicoso, informadíssimo, 2.0.
Numa dança das cadeiras, a imaginação pública vai incluindo e excluindo. Perdem poder a imprensa, a escola, a literatura, o sindicado, o copyright. Ganham poderes os blogs, as redes sociais, as autorias coletivas, o comércio eletrônico, o audiotextovisual, as indignações, as ocupações-relâmpago.
Sempre foi assim. Os ventos jovens adernando velhos navios, aposentado timoneiros, lançando ao mar ilusões fresquinhas. Sempre essa ardentia por faróis de novos mundos. Fazer diferente aquilo que fazemos igual há tanto tempo.
Mas alto lá!, berram os mais experientes. A novidade é um desejo tão antigo quanto a humanidade. O novo nunca vive no presente. Ele mora no futuro, o tempo que jamais alcançamos. E falando no pé do seu ouvido: os legítimos cidadãos do século 21 têm no máximo doze anos.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.