por Fernanda Pompeu
Tem muito garoto e muita garota pensando que o mundo começou no dia em que nasceram. Creem que a luz e o verbo se fizeram no momento em que abriram o berreiro saudando a vida. Ao ouvirem a referência a um fato anterior à própria existência dizem: “Mas eu nem estava aqui”. Verdade. No entanto é verdade também que há, ao menos, dois tipos de memória. A pessoal que começa a contar da primeira lembrança de cada um, e a memória histórica.
Esta última trabalha quando abrimos os ouvidos para a memórias dos outros. Sobretudo para a memória dos velhos, gente que está no planeta faz tempo. Ou quando lemos nos livros e no São Google, vemos no cinema e no You Tube histórias de eventos em épocas passadas. Ou quando lemos biografias de pessoas que conheceram muitas outras pessoas, e que já morreram faz décadas e até séculos.
Outra fonte maravilhosa de memória histórica é a literatura. Com ela ficamos sabendo como as pessoas conservavam os alimentos antes da geladeira, caminhavam antes dos sapatos, se divertiam e se entediavam antes da internet e das redes sociais. Descobrimos como a garotada, de zil anos atrás, fazia para driblar costumes e censuras severamente mais rígidos do que os de hoje.
Vindo para o Brasil de 2012, escuto alguns jovens dizendo que a ditadura militar é passado longínquo ou que a escravidão dos negros foi no tempo do onça. Aliás, já explico: tempo do onça é um tempo muito antigo. Mais antigo do que a mãe da minha bisavó que já usava essa expressão. Do tempo do onça também se enquadram coisas em desuso. Por exemplo, o mata-borrão e o ventilador de fusca.
Mas não precisa pegar uma lupa, nem ter neurônios de gênio para observar que a escravidão e as ditaduras (porque o país viveu mais de uma, é claro) ainda derramam suas memórias negativas no presente tão presente quanto este instante em que você lê a última frase deste parágrafo.
Faz menos de quinze dias, a estudante de dezenove anos Ana Carolina foi impedida de entrar na sua escola em São Luís do Maranhão. Motivo: ela não estava com os cabelos alisados. Ostentava sobre a própria cabeça seus cachinhos naturais. Quem impediu a entrada? A diretora do colégio.
Num telejornal, Ana Carolina contou que a diretora perguntou: “Por que você usa seus cabelos assim?”. Ela respondeu: “Porque quero manter minha identidade como negra”. A diretora riu. Acho que não preciso didatizar a origem histórica desse episódio. Não preciso lembrar que o país viveu séculos de escravidão e de autoritarismo político.
Por felicidade essa história não ficou no barato. A estudante denunciou a diretora por discriminação racial. Ana Carolina teve essa coragem por causa de outras pessoas negras, muito antes de ela nascer, terem lutado para que o racismo virasse crime. A diretora está isolada, por causa de outras pessoas negras e brancas terem lutado e seguirem lutando para que a escola seja democrática e não concentre o poder na mão de diretores.
Além da memória histórica nos ajudar a fazer sinapses interessantes, ela amplia nossa imaginação. Eu nasci um ano e dois meses depois da morte de Getúlio Vargas – aquele que se matou com um tiro no peito e levou multidões para o seu enterro. Pois de tanto ouvir e ler sobre Getúlio e sua época, consigo fechar os olhos e imaginar o Brasil anterior ao meu nascimento.
Vejo escolares enfileirados cantando o hino nacional. Vejo meu avô tenentista, que não conheci, amargando anos de prisão. Vejo o presidente subindo as escadas do Palácio do Catete e entrando no seu quarto pela última vez. Vejo-o escrevendo a carta de suicida em que diz: “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.
Epa, epa! Então a história começa depois da vida? A memória pode ser o outro nome da eternidade?
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé