Nos anos 2000, o autor dos versos “Mas ninguém me reconhece como grande cidadão” já figurava na lista de artistas com maior arrecadação de direitos autorais no país — mas, até abril de 2021, Leandro Lehart sequer sonhava em ser reconhecido como diretor do CCSP (Centro Cultural São Paulo).
Antes de se tornar Lehart, ele atendia por Paulo Leandro Fernandes Soares e gostava de assistir às rodas de samba do próprio CCSP depois das longas jornadas de trabalho como office-boy.
Em 1992, ano de seu último emprego com carteira assinada (Leandro Lehart foi fiscal de ICMS da Secretaria da Fazenda do Estado), vendia o vale-refeição e ficava sem almoço para pagar algumas horas de estúdio e gravar o primeiro disco do Art Popular, “O Canto da Razão”. Eventualmente, faltava no serviço para se dedicar à música e, depois de um ano de malabarismos, ouviu de sua chefe: “Paulinho, não vou poder te segurar aqui”.
De lá para cá, nunca mais trabalhou em firma — pelo menos até agora, quando se propõe a conciliar a carreira musical e a direção do maior centro cultural do Brasil.
Lehart recebeu a reportagem de TAB no trabalho e em sua casa, sem nenhuma cerimônia. Posando para as fotos nos primeiros minutos de conversa, fixou o olhar lá no alto: “Céu bom pra empinar pipa. Pipa também é cultura?”. Ao ouvir a resposta positiva de uma das curadoras do CCSP, arrematou: “Então vamos fazer um festival de pipa aqui”. Seria Leandro Lehart bom de pipa? “Eu vendia gelinho na feira e pipa em casa já com 7 anos de idade.”
Do Art à arte
A surpresa com a nomeação do vocalista do Art Popular para suceder a jornalista e consultora de moda Erika Palomino no cargo tem bastidores igualmente inusitados. Em sua sala envidraçada “que tem até um sofá vermelho”, no CCSP, Lehart contou que conheceu o secretário de cultura — e agora seu chefe — Alê Youssef em 2008, quando amargava um momento de fracasso na carreira-solo.
Naquele ano, Lehart viajou pelo país para lançar o disco e documentário “Mestiço”, mas acabou acumulando mais dívidas do que lucros na empreitada. O “Mestiço” virou febre só três anos depois, quando a trupe do trenzinho Carreta Furacão despontou como meme dançando a música-tema do álbum, em Ribeirão Preto (SP).
Injuriado depois de passar por poucas e boas na turnê — como nas vezes em que a plateia tinha no máximo 10 pessoas ou em que chegava para tocar e descobria que os estabelecimentos não tinham alvará —, Lehart remoía a frase “você não é tudo isso”, mas resolveu dar uma festa de lançamento do projeto em sua casa.
Entre os mais de 300 convidados, estavam presentes Simoninha, Xis, o pessoal do pagode baiano, o antropólogo Hermano Vianna e um colega a tiracolo, que vinha a ser Alê Youssef. Questionado se sabia de quem se tratava, Lehart confessou que não. “Ainda bem que em casa todo mundo é bem recebido, uma coisa que minha mãe sempre nos ensinou. Falei para ele ficar à vontade, ofereci cerveja e comida, mas acabamos não conversando naquela noite”, contou Lehart, com o sorriso de quem está acostumado a dar entrevistas há décadas e sabe quando tem uma boa anedota.
Quase 13 anos após a festa do “Mestiço”, Lehart completava um jejum de 8h para realizar exames de rotina quando recebeu uma ligação de Youssef — e o convite para dirigir o CCSP. “O Alê é entusiasta para contar as coisas, falamos tanto e por tanto tempo que acabei nem fazendo o exame, não fiz até hoje”, relembra.
O aceite demorou uma semana: antes de tomar a decisão, o compositor buscou bons conselhos com seu staff, amigos próximos e velhos conhecidos do circuito cultural da cidade que conhece como a palma da mão, graças às suas andanças como trabalhador humilde e como estrela do samba.
Hermano Vianna também foi peça-chave para o fechamento de Lehart com o CCSP. “Eu disse que estava preocupado porque não sou gestor cultural e o Hermano respondeu: ‘é sim, você sempre fez isso sem perceber’.”
Lehart carrega nos ombros a fama de ser o intelectual do pagode — ou o pagodeiro querido dos intelectuais. Youssef usa outras palavras. Define o novo diretor do CCSP como um construtor de pontes e “figura fundamental para furar bolhas neste momento em que a cultura é tão atacada no país”. O foco da gestão é repopularizar o CCSP no pós-pandemia.
No momento, Lehart herda um CCSP que está com as atividades reduzidas por conta do abre-e-fecha durante a pandemia e que tenta manter o elo com seus frequentadores promovendo eventos online. Para o próximo ano, o carro-chefe são as celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna e a expectativa é viabilizar, entre outras atividades presenciais, uma roda de samba gratuita, democrática e compatível com o fim de expediente dos trabalhores da região.
Da zona norte ao centro
Enquanto nos conduz por “passagens secretas” escuras do CCSP para cortar caminho até a sala Adoniran Barbosa, Lehart conta que nunca fumou, bebeu ou provou drogas. “Nem um cigarrinho de artista, acredita?” — tudo em nome da longevidade de sua carreira. “Quero viver bastante para curtir o conforto que pude conquistar”, explica. Antes de dormir e ao acordar, reza um pai-nosso e uma ave-maria. Ele devolve a pergunta sobre levantar cedo com “o que é cedo para você?”, antes de confessar que já levou para a terapia — que frequenta há 5 anos — o mal-estar por não ser lá muito diurno.
“Sempre ia dormir por volta das 4h para aproveitar o silêncio da noite e tentar escrever alguma música que pudesse mudar minha vida.” A canção decisiva nasceu em 1993, por coincidência ou destino, sob o nome de “Utopia”. Quando a composição ultrapassou Madonna e Duran Duran em volume de pedidos nas rádios brasileiras, o Art Popular entendeu que nada voltaria a ser como era antes.
O pagode dos anos 1990 fez muito mais fortuna do que o samba jamais ofereceu aos seus grandes ícones, mas Lehart nunca cogitou mudar-se para o Alphaville, Leblon ou Miami. Nasceu e garante que pretende morrer no Jardim São Bento, na zona norte de São Paulo, perto das escolas de samba.
É a mesma região em que seu pai, um seresteiro que virou alfaiate para sustentar a família, matava o tempo ouvindo música dentro do carro, na garagem. “Ele voltava tão feliz depois daquelas horas no mundinho dele que eu sempre quis sentir o mesmo”, diz, concordando que pode ter aprendido a tocar 30 instrumentos musicais e gravado mais de mil músicas para ser ouvido pelo pai, falecido na época em que o “Fricote” de seu filho virou fenômeno na voz da dupla João Paulo & Daniel.
Lehart não parece apegado ao status ou às suas composições. Quando pedimos confirmação de que o hit “Telegrama” também é dele, responde que a música pertence ao Exaltasamba, porque foi um presente dele para o grupo. Ao TAB, Péricles Faria, ex-vocalista do Exalta, diz que torce pelo sucesso do colega na direção do CCSP — mas também para que sobre tempo na nova rotina de Lehart para que continuem compondo juntos.
“Você reclama do meu apogeu…”
Apesar de a carreira artística ter começado aos 14 anos, o Lehart de 49 ainda não gosta de viajar. Seu maior luxo, segundo ele, é passar noites em claro brincando no estúdio que anexou à casa durante uma reforma, em 2014. Ele conta, com entusiasmo, que levou uma bateria de escola de samba para tocar até de manhã, sem incomodar os vizinhos, na inauguração do espaço.
“Fiz tudo da minha cabeça, não teve decorador”, diz Lehart, enquanto mostra uma parede adesivada com centenas de imagens de tudo e todos que admira — de Alcione e Kofi Annan a fotos de hambúrguer, maria-mole, cubo mágico e o brinquedo Genius, uma febre entre as crianças dos anos 1980. Em frente à obra, há um sofá de courino preto onde ele diz gostar de ficar quando se sente meio desanimado. Assim pode contemplar sem pressa aquilo que ama.
Na entrada do estúdio, a porta e o capacho são estampados com a assinatura de Lehart em tamanho gigante. Ele conduz a reportagem à primeira sala e se senta ao piano de cauda branco para dedilhar umas notas e mostrar a acústica do local — que é de fato impressionante. Nossas vozes parecem límpidas no papo que se segue lá dentro.
Lehart acabara de se vacinar contra a covid-19 por ser hipertenso, e mostrou o áudio de dona Gê, sua mãe e vizinha, reagindo à novidade: “Também te amo, se eu tivesse que ter outro filho, queria que fosse você de novo, de verdade”.
Por falar em amor, Leandro Lehart se mantém no estrelato há mais de três décadas e consegue manter reserva sobre tudo o que diz respeito a afeto — a ponto de as buscas no Google com seu nome e os termos “namorada”, “esposa”, “morena misteriosa” e afins não retornarem nenhum resultado. Ele desconversa e, ao questionamento direto sobre estado civil, resume: “eu tô solteiro hoje, mas sozinho nunca”, antes de cair na gargalhada.
Agora, divide casa e estúdio com o filho de 19 anos — que também é Leandro, mas adotou o nome artístico “Lanndo” e está lançando composições próprias que nada têm a ver com pagode: vão do trap ao R&B. Pai e filho se parecem no carisma, nos trejeitos e no tratamento afetuoso um com o outro. Estão morando juntos há 8 meses, quando Lanndo comunicou aos pais que deixaria a faculdade de engenharia para se dedicar à música, o que foi motivo de entusiasmo para ambos.
A trajetória recente de Lehart passa por muita adrenalina: uma internação dramática por covid-19, a remoção de um tumor pré-cancerígeno no intestino, a gravação do novo disco com o Art (“Batuque de Magia”) e a volta a uma rotina de trabalho em horários convencionais no CCSP, que encara mais como uma missão social do que como fonte de renda.
“O salário é simbólico, eu ganharia isso em 20 minutos tocando em algum evento. Estou extremamente feliz com o que é possível construir pela cultura e pelas pessoas naquele espaço maravilhoso”, explica. E conta que está tentando reduzir sua vida a relações e momentos de qualidade e tranquilidade.
Às muitas horas de conversa com a reportagem de TAB, Lehart se mostra bem-disposto e confortável na própria pele. De vez em quando, pausa algum raciocínio para comentar: “papo bom, né?”. Papo tão bom que perguntamos se ele tinha a impressão de estar vivendo um novo apogeu após o estouro da carreira nos anos 1990 — um trocadilho barato, mas necessário, com seu maior sucesso de todos os tempos, “Temporal”.
Para ele, apogeu é prosperidade, tranquilidade de fazer o que gosta sem ficar na tensão de virar sucesso para poder pagar os boletos. Lehart também se surpreende com a teoria que circula na internet de que a letra de “Temporal” seria alegoria de uma história de broxada. “Meu Deus, jura? ‘Temporal’ é sobre uma pessoa que está no seu auge e a parceira não entende… Mas até que essa teoria encaixa direitinho com a letra!”. Horas depois da entrevista, no silêncio da madrugada que tanto aprecia, postou um Stories mencionando a polêmica em torno de “Temporal” no Instagram.
O novo diretor do CCSP é, antes de tudo, um sujeito complexo. Não topa se pronunciar sobre política mas está consciente de que o cargo demanda esse tipo de estratégia; é a mais perfeita tradução do high-low paulistano — o mesmo cara que já topou participar da primeira edição da “Casa dos Artistas” no SBT e que emplacou um Acústico MTV no Theatro Municipal de São Paulo; mero pagodeiro para alguns e gênio da raça para muitos.
Para quem acredita que todo apogeu é um ponto alto antes da decadência, o Lehart de 2021 mostra que sempre é possível transformá-lo em platô para alçar novos voos.