O arrastão e o retorno do ‘apartheid’

Autoridades do Rio prometem revistar ônibus que partem da Zona Norte, conferir documentos, encaminhar ao Conselho Tutelar menores de 10 anos desacompanhados. Mas quem seriam os “suspeitos”?

Por Sylvia Debossan Moretzsohn

Sol de verão, praias lotadas. De repente, o arrastão: correria, pânico, pancadaria

 

Policiais, quase todos pretos, batendo em garotos de calção, também quase todos pretos.

O feriado da Consciência Negra, na quarta-feira (20/11), não poderia ter produzido cenas mais emblemáticas.

Foi no Arpoador, que já no fim de semana registrara ocorrência semelhante.

O que fazem as autoridades do Rio? Prometem revistar ônibus que partem da Zona Norte, conferir documentos de “suspeitos”, encaminhar ao Conselho Tutelar os menores de 10 anos que estiverem desacompanhados, reforçar o policiamento na orla.

O que faz o jornal? Reproduz o rol de promessas sem questionar seu significado e suas hipóteses de eficácia. Basta indagar quem seriam os “suspeitos”, embora ninguém precise ser muito esperto para intuir. Ou imaginar como funcionariam os Conselhos Tutelares, subitamente lotados de crianças.

Mas o mais relevante, claro, é a plácida aceitação do estabelecimento dessa forma de apartheid através das restrições ao direito de ir e vir. E o esquecimento de que a história se repete, mais de vinte anos depois.

Recordar é preciso

Em 1992, às vésperas das eleições municipais que opunham um conservador à “negra, mulher e favelada” candidata pelo PT, uma onda de arrastões ganhou as manchetes e ofereceu campo fértil para o transbordamento de todo o preconceito (mal) represado contra pretos e pobres. Uma das medidas, então, foi justamente a de controlar o acesso de moradores do subúrbio às praias, com bloqueios na Leopoldina e na Central e nos pontos finais de ônibus de Olaria, Penha, Jacaré e São Cristóvão. “Quem estiver sem documentos, camisa ou dinheiro para as passagens de ida e volta não poderá mais embarcar nos ônibus da Zona Norte e do Centro para a Zona Sul, nos fins de semana e feriados de sol”, noticiava O Globo em 22/10/1992.

Autor de tese de doutorado sobre o racismo na imprensa brasileira, o pesquisador Dalmir Francisco foi um dos que analisaram a cobertura dessa famosa “onda” de arrastão. Em artigo apresentado há dez anos (ver “Arrastão mediático e racismo no Rio de Janeiro”), demonstrou as consequências daquelas medidas: a instituição de um “passe” para pobres pretos, mestiços e brancos, ao determinar que os cidadãos da Zona Norte só pudessem ter acesso à Zona Sul se devidamente trajados e portadores de dinheiro e documentos; a criação de um território a ser protegido: a Zona Sul, “que foi isolada”; e a criação de um território que seria fonte de insegurança para a Zona Sul: a Zona Norte, “que foi sitiada”.

Dalmir fala em apartheid pela “discriminação de um grupo não-branco e localizado geográfica e territorialmente” e “pela explícita intenção de limitar o direito de ir e vir, impedindo-se ou dificultando, mediante procedimentos de repressão humilhantes, que indivíduos fossem de um espaço geográfico e territorial (Zona Norte) para outro espaço territorial e geográfico (praias da Zona Sul)”.

O autor registra que, no fim de semana seguinte a essas medidas, “as praias da Zona Sul ficaram vazias, fortemente policiadas e sem risco de arrastão”. O apartheid foi eficiente: “jovens de aparência humilde, andando a pé, de ônibus, sem camisa e sem dinheiro,que quisessem entrar nos territórios do Leme, de Copacabana, do Arpoador, de Ipanema e do Leblon eram barrados”. Moradores das favelas do Cantagalo, do Pavão, do Pavãozinho e do Chapéu Mangueira, que ficam entre Ipanema e Copacabana, “também resolveram não descer”.

O Globo comemorou: “Domingo seguro revive magia de Ipanema”. No texto, a celebração do retorno a um passado idílico e idealizado, isento de conflitos: “Como nos velhos tempos. Um dia de luz, a festa de sol e até os barquinhos a deslizar, no macio azul do mar. O glorioso domingo em Ipanema lembrou o tempo que visitá-la dava até música”.

A “guerra” adiada

Outro aspecto mencionado nas reportagens da época: a criação de milícias formadas por frequentadores de academias e lutadores de artes marciais para combater os arrastões. Precisamente como agora, como notou Yvonne Bezerra de Mello, que se notabilizou pela defesa dos meninos de rua no episódio da chacina da Candelária, em 1993. Em seu mural no Facebook, semana passada, ela conta que andava por Copacabana quando presenciou a cena:

“Na altura da Constante Ramos, um grupo de garotos saradões fazendo ginástica. Cinco outros garotos andando num bando iam pelo calçadão. Foram interpelados pelos saradões, que disseram: ‘vem fazer arrastão, vem. Todas as galeras da Zona Sul estão prontas para pegar cada um de vocês’. E à medida que os saradões se aproximaram do grupo eles correram em direção à Avenida Copacabana. Não aguentei e fui conversar com os garotos da Zona Sul. E eles me disseram que fizeram uma convocação nas academias via Face e mídias eletrônicas, para se unirem contra os arrastões nas praias. Estavam preparados para esse fim de semana.

Vai ser uma guerra e não vai ter polícia que dê conta”.

A polícia compareceu em massa, mas o fim de semana chuvoso afastou os banhistas. A guerra foi adiada.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Fonte: Revista Fórum

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