O vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas foi espancado até a morte por dois homens após, segundo a polícia, tentar defender duas travestis em situação de rua que estavam apanhando deles no centro de São Paulo. Chegou a correr para a dentro da estação de metrô Pedro II, mas foi perseguido, derrubado e levou socos e pontapés por um minuto e meio.
Fonte: Blog do Sakamoto
por, Leonardo Sakamoto
Tudo nessa história converge para chocar: o espancamento de um homem de 54 homens por dois jovens de 26 e 21; a morte ter ocorrido dentro de uma estação de metrô; a falta de preocupação dos rapazes de fazerem isso em um local em que certamente seriam identificados; não ter aparecido nenhum segurança para impedir; câmeras terem gravado as imagens que, mostradas pela imprensa, viralizaram pela rede; uma pessoa já discriminada socialmente (um vendedor ambulante) ter morrido porque tentou defender outras pessoas que também são (travestis); ser noite de 25 de dezembro, Natal.
É a mistura da banalização da violência, da sensação de onipotência e de invencibilidade, do ódio profundo a algo.
A banalização da violência causada por uma sociedade que transforma a violência em produto e a vende diariamente, na forma de programas sensacionalistas na TV, de jogos para computador ou videogame. Uma sociedade incapaz de refletir sobre a importância do diálogo e não da força na resolução de conflitos.
Há que se sinta onipotente por fazer parte de um grupo tido como hegemônico (homens, héteros…) Pensa que, como isso, os outros lhes devem algum tributo. Isso sempre esteve presente em nossa história e a violência e mortes decorrentes disso também. Mas acredito que essa sensação foi potencializada após certas visões ultraconservadores terem saído do armário diante do contexto favorável nos últimos anos. Perdeu-se o pudor de não ter pudor.
Isso sem contar o ódio profundo. Prega-se em púlpitos, em plenários, na TV, em reuniões com amigos, que o mal precisa ser extirpado. Que há pessoas ou grupos que representam o mal e precisam ser eliminados. Quantas vezes não lemos nas redes sociais comentários como ”ele é um câncer que precisa ser extirpado” ou ”tal pessoa merece a morte”? Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo do desconhecido e do diferente e, portanto, à ignorância sobre o outro.
Nesse ponto, vale ir mais a fundo.
Ao assistir às imagens chocantes do assassinato de Luiz, lembrei-me de um depoimento que me foi dado por Maria Aparecida Costa, que militou contra a última ditadura civil militar. Ela ficou presa por três anos e meio, dos quais dois meses sendo torturada no DOI-Codi, na rua Tutóia, em São Paulo, local onde hoje fica o 36o Distrito Policial. Paus-de-arara, eletrochoques, ”cadeiras do dragão” e tantos outros métodos criativos aplicados na resistência por militares e policiais tinham lugar por lá.
”O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio”
A dúvida de Maria Aparecida tem mais de 40 anos, mas bem caberia na polarização tacanha de hoje, em que muitos não reconhecem os outros como seus semelhantes simplesmente porque esses pensam diferentes ou são fisicamente diferentes. Enxergamos inimigos em cada esquina.
A tortura, naquela época, firmava-se como arma de uma disputa. Era necessário ”quebrar” a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo, uma ideia.
Há um incômodo paralelo entre as mortes ocorridas no DOI-Codi e a morte de Luiz Carlos. O que Luiz sofreu antes de morrer foi uma sessão de tortura pelo que ele era, pelo que representava e pelo que defendeu.
É inominável a sensação de que isso não acontece apenas nos porões, nos becos, no escuro, mas na frente de câmeras de segurança e de centenas de pessoas. Esqueça a questão ética, que nem está presente. A morte foi praticamente uma encenação da estética da violência reprimida e que, agora no Brasil do caos, ganha a liberdade. E, portanto, uma declaração pública, inconsciente ou não.
Ainda hoje, Cida tenta entender o que ocorreu. ”Tinha mais alguma coisa. Claro que a justificativa era ideológica. Mas tinha mais alguma coisa. Porque eles sentiam prazer de verdade no que faziam. Prazer de verdade em torturar.” Talvez o ódio surgia, como ela lembra, da sensação de poder. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode.
Luiz não deveria ter dito ”Não faz isso com o rapaz”, quando eles agrediam uma das travestis. Mas agiu com justiça e disse e, ousando sair de sua invisibilidade e pagando um preço caro por isso.
Dizem que carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano.
A certeza do ”tudo pode” provoca vítimas nas periferias das grandes cidades, entre a população LGBT ou em situação de rua, entre os jovens negros e pobres, grupos cuja vida, para nós, vale muito pouco. Eles sempre sofreram e morreram, mas sem que as imagens corressem pela internet.
O problema é que ódio não surge de geração espontânea. É cultivado.
Como já escrevi aqui, pastores e padres de certas igrejas inflamam seus fieis contra aquilo que consideram um desrespeito às leis de seu deus. Quando um grupo espanca um gay ou uma travesti, esses pastores e padres dizem que não têm nada a ver com isso.
Figuras públicas da TV inflamam a população contra a degradação da civilização e das famílias de bem. Quando um grupo resolve amarrar alguém em um poste e linchar até a morte, essas figuras públicas dizem que não têm nada a ver com isso.
Certas famílias inflamam seus filhos contra o público LGBT, contra jovens negros e pobres da periferia e contra pessoas em situação de rua, dizendo que são uma ameaça à vida nas grandes cidades e não valem nada. Quando um grupo resolve despejar preconceito ou dar pauladas e por fogo nessas pessoas, as famílias dizem que não têm nada a ver com isso.
Políticos, de governo e oposição, inflamam seus eleitores, desumanizando o adversário e transformando o jogo democrático em uma luta do bem contra o mal. Quando um grupo passa a agredir fisicamente o outro, os políticos dizem que não têm nada a ver com isso.
Hordas de guerrilheiros digitais sob perfis falsos inflamam seus leitores, repassando conteúdo violento e falso. Quando um grupo passa a assediar, de forma injusta, pessoas ou instituições com base nesse conteúdo, há quem diga que as pessoas por trás desses perfis e páginas nas redes sociais não têm nada a ver com isso.
Talvez, no fundo, todos estejam certos.
Culpado mesmo era o Luiz.