O bom combate

Por: Míriam Leitão e Alvaro Gribel

Ao longo do belo voto do ministro Ricardo Lewandowsky, ontem, a favor das cotas raciais nas universidades brasileiras, foram sendo desmontados, um a um, os argumentos que nos últimos dez anos tanto espaço tiveram na imprensa brasileira. O ministro mostrou que o princípio da igualdade evoluiu do simplesmente declaratório para a fase em que se trabalha para a construção de um país menos desigual.

Joaquim Nabuco, um dos fundadores da pátria brasileira – já citado aqui nesta mesma coluna, neste mesmo tema – disse em frase insuperável: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra.” No voto do ministro Lewandowski o que se vislumbra é a possibilidade de dar mais um passo na destruição do resquício desse passado que temos carregado como bola de ferro atada aos pés da Nação.

O julgamento foi suspenso ao fim da apresentação do voto do relator e só hoje será retomado. É aguardar o amanhã. Foi um longo caminho até aqui. Foram mais de dez anos de intensos debates e inúmeras experiências de ação afirmativa pelo país. Os argumentos se enfrentaram intensamente. Nem sempre com a honestidade intelectual exigida por questão desse porte. Houve manifestos contra e a favor.

Ontem, o voto do relator foi pela constitucionalidade da política de cotas e do critério racial. Alguns apartes e o elogio do presidente do tribunal, ministro Ayres Brito, definindo o voto como corajoso, vigoroso e consistente, mostram que há chances de que as ações afirmativas tenham a maioria dos votos.

Atualmente, segundo o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, são setenta as universidades federais e estaduais nas quais as políticas de ação afirmativa favorecendo negros, índios e pobres foram implementadas, com diferentes métodos. A prática demoliu os temores levantados pelos críticos das cotas: que haveria conflito nas universidades, que haveria queda da qualidade, que os cotistas não teriam bom desempenho, que se quebraria o princípio do mérito.

A realidade provou o contrário. Não houve conflito, a qualidade não caiu, os cotistas tiveram desempenho semelhante aos não cotistas, o princípio do mérito não deixou de existir.

O ministro relator demoliu outros sofismas. Houve quem dissesse que não se poderia adotar cotas raciais porque não há raças. De fato, não há, mas a sua inexistência não impediu que houvesse racismo. “Se o critério de raça foi usado para se construir hierarquia deve ser usado para desconstruí-la.” O temor de que a política quebrasse o princípio constitucional da igualdade começou a ser enfrentado pela vice-procuradora-geral da República, Débora Duprat, que mostrou que esse princípio evoluiu na Constituição de 1988 com o tratamento diferenciado aos desiguais. “É preciso analisar com o coração aberto por que as ações afirmativas de recorte racial provocam tanto desassossego.” A vice-procuradora questionou o mito da democracia racial: “Não precisamos de dados estatísticos, basta um olhar na composição dos cargos do alto escalão do Estado brasileiro ou nas grandes corporações e, na contrapartida, olhar para a população carcerária desse país, e para quem é parado pela polícia nas cidades brasileiras.” Ela chamou de “reducionismo inaceitável” a tese de que a redução da desigualdade social resolveria o racismo. Lewandowski completou dizendo que “o modelo constitucional brasileiro contempla a justiça compensatória”.

Lewandowski derrubou também – e com a ajuda do aparte do ministro Joaquim Barbosa – a ideia sempre repetida no Brasil de que a Suprema Corte americana julgou as ações afirmativas inconstitucionais. Eles disseram que por duas vezes o que a Suprema Corte fez foi o oposto: garantiu sua constitucionalidade.

O ministro esclareceu que a política não nasceu nos Estados Unidos, mas na Índia, de Mahatma Ghandi, na luta contra o odioso – e ainda presente, ainda que ilegal – sistema de castas no país. Sobre o risco de se quebrar o princípio do mérito que é usado no vestibular, Lewandowski lembrou que “mérito de quem está em desigualdade não pode ser linear”. Um sistema de ingresso na universidade pretensamente isonômico pode acabar consolidando as distorções existentes no país e reproduzindo a mesma elite dirigente, disse o ministro.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o sistema de cotas, e foi considerada improcedente pelo relator, é de autoria do Democratas. O grande defensor da tese do DEM hoje está às voltas com outros problemas, o senador Demóstenes. Ele conquistou muitos admiradores entre os adversários das cotas com argumentos pedestres, como o que culpava os africanos pela escravidão. Na época, eu o chamei de “sem noção”. Isso, sabe-se hoje, é dizer o mínimo.

O combate ainda não acabou. Será preciso concluir o julgamento no Supremo para retirar a insegurança jurídica sobre a política que já aumentou a diversidade nas universidades brasileiras. Mesmo se o sistema for aprovado, ainda não será o fim do combate, mas antes um novo início. Há um longo caminho a andar na busca de um país mais plural e mais justo. Mas o voto do ministro Lewandowski ilumina a estrada.

Fonte: O Globo 

+ sobre o tema

Deputados vão à Cracolândia, mas não descem do ônibus

Vinte e um deputados federais desembarcaram...

Multilateralismo e ações afirmativas

 - EDSON SANTOS - Folha de São Paulo -Tendências...

Margareth Menezes aceita convite para assumir Ministério da Cultura de Lula

A cantora Margareth Menezes aceitou o convite do presidente eleito Luiz Inácio Lula...

Os ‘urubus’ do sambódromo – Por: FRANCHO BARÓN

Dezenas de pessoas mergulham em montanhas de fantasias em...

para lembrar

É impossível ser feliz sozinha

Em tempos de relações líquidas, estava aqui pensando sobre...

Sônia Nascimento – Vice Presidenta

[email protected] Sônia Nascimento é advogada, fundadora, de Geledés- Instituto da...

Suelaine Carneiro – Coordenadora de Educação e Pesquisa

Suelaine Carneiro suelai[email protected] A área de Educação e Pesquisa de Geledés...

Sueli Carneiro – Coordenadora de Difusão e Gestão da Memória Institucional

Sueli Carneiro - Coordenação Executiva [email protected] Filósofa, doutora em Educação pela Universidade...

É impossível ser feliz sozinha

Em tempos de relações líquidas, estava aqui pensando sobre o amor. Quase sempre estou, né? Já até pensei se sou uma viciada na paixão....

Luísa Sonza fecha acordo por fim de processo por racismo contra advogada

A cantora Luísa Sonza fechou um acordo com a advogada Isabel Macedo para encerrar o processo em que era acusada de racismo. O trato...

Camilo Cristófaro é cassado por falas racistas e perde mandato de vereador em SP

Após 503 dias, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou nesta terça (19) a cassação do mandato do vereador Camilo Cristófaro (Avante) por quebra de decoro...
-+=