O complexo de Princesa Isabel na novela ‘Em Família’ – Por: Jéssica Romero

Não sou tão noveleira assim, mas quando tenho tempo, acompanho o que me interessa. Assim tem sido com a novela global “Em Família”, com muitas personagens mulheres que protagonizam e carregam o peso de desenvolver o enredo da trama. Por isso, nas vezes que vi a novela, o desenvolvimento das histórias das personagens negras me incomodou muito, especialmente as personagens Dulce, Alice e Neidinha.

Dulce (Lica Oliveira) é uma mulher bem sucedida, professora universitária e mãe adotiva de André (Bruno Gissoni), um rapaz branco. Desde a primeira cena dos dois e em todas que vejo, o jovem rejeita a mãe e tem atitudes racistas, um racismo velado. Ela, muitas vezes parece não saber como lidar com a situação e simplesmente não responde nada quando se sente ofendida ou chateada. Apesar de se mostrar mais assertiva em cenas recentes, quem geralmente aconselha André ou conversa com Dulce sobre o problema é Luiza (Bruna Marquezine), na época, namorada dele.

Luiza é, junto com Helena (Julia Lemmertz), a personagem principal da novela. Mas, em relação as personagens femininas negras parece ser uma Princesa Isabel, salvadora da pátria. Luiza é branca, rica, bonita e centro das atenções por onde passa. É encantadora, sedutora e, apesar de jovem, é uma mulher forte, segura e decidida. O que contrasta com as três personagens negras citadas, que são mostradas muitas vezes vitimizadas e empoderadas pelas atitudes de outras pessoas. Luiza é a melhor amiga de Alice (Érika Januza), elas foram criadas juntas devido à amizade de suas mães, que são cunhadas. Durante uma situação de racismo na praia, Alice é ofendida por um rapaz branco que questiona o fato dela (uma garota negra) estar frequentando aquele lugar. É Luiza quem defende Alice. Enquanto a vítima se cala e chora, a amiga assume a situação e altera a voz para o agressor, dizendo que racismo é crime. Depois de resolvida a briga, Luiza leva Alice até um advogado e explica seus direitos como vítima de racismo. Só algum tempo depois, Dulce e Alice se encontram e conversam sobre o assunto.

Antes que venham reclamar, não há nada de errado numa pessoa branca ajudar uma pessoa negra que foi vítima de racismo, a questão é que Alice poderia ser uma personagem cheia de iniciativa como Luiza, mas na representação das negras na televisão é mais comum vermos personagens vitimizadas que precisam sempre do auxílio de uma pessoa branca para terem voz.

Alice é filha de Neidinha (Eliana de Souza) e fruto de um estupro. Na primeira fase da novela, Neidinha é estuprada por um grupo de homens numa van, numa cena extremamente angustiante, que fez referência ao caso da turista americana que foi estuprada em 2013. Depois do estupro, Neidinha vai para casa e é consolada por Helena e pela família. E só. Saltam 20 anos na história, onde ela já aparece como mãe de Alice. Em momento algum se fala em registro de boletim de ocorrência, aborto ou qualquer coisa relativa à violência sofrida. Após esses 20 anos, Neidinha nunca mais se relacionou sexualmente com ninguém, dedicou sua vida ao trabalho de enfermeira num lar de idosos e enterrou o assunto. Não problematizar isso ou não contar nada sobre o que ocorre depois é anular completamente a voz da vítima, que já é vítima na novela e na vida real, pois a maioria das mulheres estupradas no Brasil é negra. Escolher omitir todo esse universo pós-estupro significa reforçar o estereótipo da mulher negra como marcada para ser uma vítima social conformada.

Passados os 20 anos, surge um novo conflito, Alice quer saber quem é seu pai, a quem a mãe se refere apenas como alguém que foi embora. O assunto é tabu na família, ao falar com seu irmão Virgílio (Humberto Martins) sobre a curiosidade da filha, Neidinha diz que: apesar de todo sofrimento vivido, não abortou porque achava que aquela criança não era culpada e, portanto não merecia morrer, mas sim nascer. Não abortar após um estupro é direito da mulher e é legítimo, essa é uma escolha que só cabe à vítima fazer. Mas, ao colocar a opção de não abortar através da justificativa de que a criança merecia nascer, pois não era culpada, Manoel Carlos e a Rede Globo reforçam um discurso extremamente ignorante e com cunho religioso, prestando desinformação e corroborando preconceitos em relação as mulheres que abortam. A justificativa da personagem poderia até ser fundamentada no seu emocional, em suas crenças pessoais, porém jamais reforçando um discurso que deslegitima a ideia de que a mulher estuprada deve ser tratada como prioridade, dona de seu corpo e de suas decisões em relação a ele.

Além dessas três personagens, a novela ainda conta com outras personagens negras. Uma delas é Rosa (Tânia Toko), empregada doméstica da família de Helena, sempre pronta a atender seus patrões em qualquer horário. Porém, o mais chocante é que na sala de Helena há uma estátua de uma mulher negra, carregando um jarro na cabeça. A falta de sensibilidade da produção ao colocar essa escultura na sala de “Heleninha” e o fato de que ninguém percebe o quanto isso é racista, só demonstram o quanto essa questão ainda está longe de ser levada a sério no Brasil.

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Dulce, Alice e Neidinha poderiam ser representações positivas de mulheres negras na televisão. Nenhuma delas é empregada doméstica, o papel clássico das atrizes negras. As três parecem fazer parte da classe média e representam diferentes mulheres negras, em diferentes fases da vida. Porém, grande parte dessas características positivas se perde na passividade e nos estereótipos que cercam as personagens.

Em vez de usar o alcance da televisão e da telenovela para informar as mulheres e desconstruir um discurso opressor diante da violência, a novela tem servido para reforçar o papel social da mulher negra. Ela serve a mulher branca, sofre violência e não levanta sua voz, só toma consciência de sua posição social e seus direitos quando alguma outra figura, branca, vem fazer o papel do herói com nosso eterno complexo brasileiro de Princesa Isabel. Vou continuar acompanhando a trajetória das personagens e espero que elas se pareçam com as mulheres negras reais, que a cada dia mais se descobrem empoderadas pelo feminismo negro e pela própria tomada de consciência da opressão.

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Autora

Jéssica Romero é mulher, feminista e jornalista. Em construção.

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