O estupro em “O Último Tango em Paris” e a arte que violenta mulheres. Por Nathalí Macedo

Parece haver uma espécie de consenso problemático entre a maioria dos grandes cineastas: Vale tudo pela arte. Vale, até mesmo, violentar mulheres.

Por Nathali Macedo Do DCM

Assim pensa Bernardo Bertolucci, que confessou, em uma entrevista ao programa holandês College Tour, recuperada recentemente pela revista norte-americana Elle, que a atriz Maria Schneider foi estuprada na polêmica “cena da manteiga” em O Último Tango em Paris.
O cineasta (vamos chamá-lo pelo nome?)

O cineasta-estuprador contou que ele e o ator Marlon Brando tiveram a ideia da cena na manhã da gravação, e combinaram que Brando usaria a manteiga como lubrificante anal para estuprar Maria, mas mantiveram o segredo para que a atriz esboçasse uma reação “espontânea”.
A ideia, como o próprio cienasta contou, sem o menor constrangimento, era que a atriz se sentisse humilhada para que a cena fosse verossímil. “Eu queria filmar a reação dela como mulher, e não como atriz.”

Como se não bastassem essas declarações, Bertolucci ainda afirmou que não se arrepende, porque foi melhor para o filme – mesmo que, para isso, uma mulher de apenas dezenove anos precisasse ser estuprada e humilhada em cena.

A violência em nome da arte, pensam eles, pesa menos. Para nós, mulheres, pesa muito mais – promover um estupro e filmá-lo não é apenas criminoso, é sádico e cruel.

Maria declarou forazmente, até 2008, ano de sua morte, que foi abusada na fatídica cena – mas o que é a palavra de uma mulher, atriz iniciante, contraposta à palavra de dois astros do cinema?

Só agora, quando o mandante do crime sexual confessa a barbaridade, o grande público finalmente acredita – ou nem tanto, porque, pasmem, vários internautas tentaram defender Brando e Bertolucci quanto a esse episódio. Há sempre uma maneira de se defender um homem que violenta uma mulher.

“O último tango em Paris”, aliás, não é o único filme em que o corpo feminino é mercadoria para alimentar o sadismo de cineastas e espectadores misóginos.

Em “Laranja Mecânica”, clássico de Stanley Kubrick, uma cena de estupro – consentida, até onde se sabe, e se é que isto é possível – não poderia faltar para expressar a ultraviolência – como se nós, mulheres, já não vivêssemos a ultraviolência ao vivo e em cores.

Também em Preciosa (2009), a protagonista, adolescente, é estuprada, como se fosse preciso exibir em uma tela gigante uma violência sexual para que se possa falar sobre ela.

Ninguém precisa exibir estupro para falar sobre estupro – se o fazem, é por puro sadismo ou, quem sabe, pela mistura explosiva de misoginia e ego de artista. Com alguma sensibilidade, temas delicados como este podem ser tocados sem que seja preciso escancará-los – mas quem se importa?

Quem, como eu, sente repulsa ao saber que Maria Schneider foi estuprada em cena, deve fazer uma reflexão incômoda e não menos necessária: Ela não foi a única – o pornô mainstream nada mais é do que violência sexual filmada e editada.

Para compreender melhor essa afirmação, recomendo o angustiante documentário Hot girls wanted (Netflix), que fala sobre os abusos sofridos pelas atrizes de filmes pornográficos. Um mal estar no mínimo necessário num mundo em que um cineasta confessa que planejou uma cena de estupro e absolutamente nada é feito a respeito.

+ sobre o tema

Trinta Homens

Trinta. Vinte e nove Vinte e oito Vinte e sete Vinte e seis Vinte...

Luiza Brunet e a síndrome da gaiola de ouro. Por Nathalí Macedo

Luiza Brunet teve quatro costelas quebradas pelo então companheiro,...

Estudante cabo-verdiana é assassinada no Brasil

Namorado, de nacionalidade brasileira, poderá ser o autor do...

para lembrar

Internautas relatam abusos após jornalista denunciar a violência obstétrica no Brasil

Matéria “Na hora de fazer não gritou”, da jornalista...

Mulher Com os Olhos Perfurados Pelo Ex-Marido: “Viverei na Escuridão”

'Vou viver na escuridão', lamenta mulher que teve olhos...

Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo

Lançadas nesta semana, diretrizes nacionais sobre feminicídio querem acabar...
spot_imgspot_img

Robinho chega à penitenciária de Tremembé (SP) para cumprir pena de 9 anos de prisão por estupro

Robson de Souza, o Robinho, foi transferido para a Penitenciária 2 de Tremembé, no interior de São Paulo, na madrugada desta sexta-feira (22). O ex-jogador foi...

A Justiça tem nome de mulher?

Dez anos. Uma década. Esse foi o tempo que Ana Paula Oliveira esperou para testemunhar o julgamento sobre o assassinato de seu filho, o jovem Johnatha...

Dois terços das mulheres assassinadas com armas de fogo são negras

São negras 68,3% das mulheres assassinadas com armas de fogo no Brasil, segundo a pesquisa O Papel da Arma de Fogo na Violência Contra...
-+=