O verdadeiro crime cometido por Cleydison Pereira Silva, espancado até a morte por justiceiros nesta segunda-feira no Maranhão, não está previsto no Código Penal. Seu assassinato desnuda a crise de representatividade que vive o país e a seletividade de uma indignação tão justa quanto pontual
Por Murilo Cleto no Revista Fórum
Aconteceu de novo. Cleydison Pereira Silva foi amarrado a um poste e espancado até a morte por um grupo de pessoas em São Luís, capital do Maranhão. Ao contrário do que se anuncia, seu crime não foi o assalto. Aliás, pode até ter sido um deles, mas não o mais importante. Pro crime de assalto, a legislação brasileira prevê de 4 a 30 anos de reclusão, conforme o caso, de acordo com o Código Penal.
Mas não é deste crime que se trata a sentença de Cleydison. 4 ou 30 anos não seriam o suficiente pra saciar o desejo de justiça daqueles que rasgaram suas roupas, arremessaram-lhe pedras e garrafas e o golpearam até que uma hemorragia o matasse de vez.
No ano passado, três episódios semelhantes ganharam destaque nacional. Em janeiro, 14 homens amarraram um adolescente também a um poste no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. No Piauí, um homem foi arremessado sobre um formigueiro com mãos e pés amarrados. Em maio, uma mulher foi linchada até a morte no Guarujá por um grupo de pessoas que a confundiu com uma praticamente de “magia negra” depois da multiplicação de um boato pelo Facebook. Só na primeira metade de 2014, foram 50 casos registrados.
Em Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015), o sociólogo José de Souza Martins sepulta de vez o mito do brasileiro cordial: o país é o que mais pratica justiçamentos no mundo. De acordo com o seu levantamento, um milhão de compatriotas participaram de linchamentos em 60 anos. E muito embora o início da década de 2000 tenha apresentado uma queda significativa dos casos, de 2013 pra cá eles têm aumentado em velocidade progressiva e não é por acaso.
Para a pesquisadora Ariadne Lima Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, há uma correlação entre a presença do Estado e os índices de justiçamento. Onde a ausência dos seus serviços é mais sentida, as chances de violência pretensamente reativa aumentam exponencialmente. E é neste sentido que o papel da mídia precisa ser problematizado.
Antes de zerar as mortes pelo tráfico no país, o Uruguai restringiu os horários dos programas policiais. No Brasil, além de reforçarem a ideia de impunidade e de alimentarem o imaginário de uma delinquência juvenil aliciada pelo crime, eles transmitem e incentivam ao vivo e sem restrições a chacina de suspeitos, alvejados a sangue frio sob os urros dos apresentadores extasiados. Rachel Sheherazade virou referência moral ao defender as ações dos justiceiros do Flamengo em rede nacional no SBT.
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Doutora em estudos da segurança e professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Jaqueline de Oliveira Muniz sustenta que o linchamento é um “fenômeno que sempre ressurge diante de ondas de temor. Diante do medo, queremos uma solução imediata, e tendemos a abrir mão das nossas regras [leis].”
Quanto maior o destaque a histórias de violência vividas pelo país, maior a sensação de que o Estado já não é digno de confiança o suficiente pra que a justiça aja por si, daí a recorrência a medidas que rompam com o contrato social vigente.
E se tem algo que 2013 deixou de legado para o país é o escancaramento da dissonância completa entre as instituições que têm por função a garantia dos direitos sociais, dentre eles a segurança, e a população, que foi às ruas com vozes distintas, mas que guardavam um importante coro anunciado: o Estado não lhe representa.
30% dos manifestantes votariam em Joaquim Barbosa para presidência da república. Logo ele, sem sequer apresentar vinculação partidária. Logo ele, juridicamente contestado por agir à margem da lei durante o processo do mensalão petista para forçar condenações, e popularmente ovacionado por satisfazer o anseio de justiça entalado na garganta dos brasileiros. Não por acaso, foi relacionado ao super-herói Batman, personagem que tem reaparecido com frequência nos protestos contra o governo Dilma.
O que eram três ou quatro tentativas de linchamento tornaram-se mais de uma por dia desde 2013. E engana-se muito ou quer fazer enganar quem diz que isso pode se tratar de um reflexo inconteste da impopularidade da presidenta: ao final do ano que marcou as Jornadas de Junho, 95,1% alegavam não confiar em legendas políticas. Passada a hecatombe, cerca de 70% permanecem céticos quanto a políticos e partidos.
Em períodos de crise de representatividade, cresce a sensação de que é preciso que se descumpra a lei pra que a lei seja restabelecida. É o que indica Christian Dunker em Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). De acordo com o psicanalista, a vida em condomínios, modalidade tipicamente brasileira de se viver a partir dos anos 70, contribuiu significativamente para o agravamento desse panorama. O Brasil que não deu certo, da pobreza que insiste em atravancar o caminho, foi suspenso em nome de outro que é protegido por muros altos e uma guarita com câmeras. E é esse Brasil que passou a pautar o outro a partir da imagem que dele fez: perigoso demais para as regras comuns que o regem.
Batman é isso. É a sensação de que o contrato social que orienta o país é insuficiente pra dar conta da demanda. É o “necessário” descumprimento da lei em nome dos valores que a sustentam.
Mas Ariadne Lima Natal, que é autora da dissertação 30 anos de Linchamento na Região Metropolitana de São Paulo 1980-2009, destaca um elemento importante pra intrigar aqueles que acreditam serem os linchamentos justificáveis diante da saturação da violência no país: “Os dados mostram que as vítimas de linchamento não são aleatórias. Os alvos preferenciais são os mesmos já acometidos pela violência policial e pelos homicídios. Os linchamentos dialogam com seu tempo, eles fazem parte de uma realidade e acionam um repertório que aponta quem são os extermináveis”.
No senso de justiça que move o país contra o crime, quase não são condenados brancos de classe média. O seu lugar está previsto no Código Penal. E é por isso que o último crime de Cleydison foi assaltar. Antes disso, nasceu no lugar errado e com a cor da pele errada. Morreu com 29 anos, 44 antes do que a sua expectativa de vida ao nascer, e dentro da previsão de que teria 3,7 vezes mais chances de ser assassinado ainda enquanto jovem. De um lado, virou troféu. Do outro, estatística.
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