O nascimento da economia solidária mundial

Meados do ano de 2032. Algum lugar no Brasil, América Latina. “Participei do encontro dos 10 mil em Praga no ano 2020”, comentou Alf, naquele domingo em sua casa nos arredores de São Paulo, depois que me pediu sigilo total sobre sua identidade.

– Ah! O famoso encontro em que vocês chegaram ao entendimento político acadêmico de que nem todos os setores numa economia deveriam se organizar como mercado? – perguntei.

– É que a razão para isso tornou-se óbvia demais para ser manipulada. Era a única maneira da sociedade se autopreservar… E, por fim, no Encontro de Praga todos admitiram, enfim, que a sociedade civil poderia se orientar por um autêntico pluralismo de valores no tocante também à organização da vida econômica.

– Em outras palavras, as pessoas estavam livres para agir não tendo como única fonte de paixão o interesse econômico.

– Exato! Certos historiadores no final do século XX começaram a suspeitar que a ascensão e queda das políticas de concentração de rendas, investimentos e salários nos anos 80, sobretudo na Itália e Inglaterra, foram o estopim para justificar os fracassos da renovação do pacto tripartite entre sociedade civil, trabalhadores e capitalistas, típico do estado do bem-estar.

– Salvo engano, isso foi chamado de a Era do Pensamento Único em torno da globalização, não é?

– O que exigiu o divórcio da economia financeira com a economia produtiva, e destas com as bases ecológicas de sustentação da produção e do consumo. Além disto, também desatrelaram a produtividade econômica, das transferências e benefícios sociais. Esse período foi marcado pela maior bobagem compartilhada pelos economistas em todo mundo oficial: pensavam que o mercado era um ser robótico, algo artificial como um braço mecânico, que pudesse ser orientado a destruir a si próprio. Embora o mercado fosse realmente uma construção artificial, como mostrara Karl Polanyi nos anos 30/40, durante a II Grande Guerra, concluíram erroneamente que era possível implantar o mercado em todas as esferas públicas onde houvesse pessoas inteligentes o suficiente para acreditar em interesses e na conversão dos mesmos em operações previsíveis e racionais de troca.

(Silêncio. Um sabiá cantava ao longe).

– Mas me fale do memorável encontro de 2020, em Praga, que reuniu especialistas das 20 principais economias do mundo!

– Bom, no encontro, ficou maduro o consenso de que as pessoas estavam livres para agir não tendo o interesse (econômico) como a única fonte de paixão. Os debates se centraram sobre o que muitos suspeitavam que fora um erro, há 40 anos, dissociar keynesianismo do estado de bem-estar, por meio da fragmentação dos mercados de trabalho, da renda, da produção e das finanças.

– O cenário que antecedeu essa decisão dos acadêmicos ficou conhecida como a passagem da peste negra econômica em fins de 2008, não é isso?

– Exato. Tudo aconteceu numa sequência veloz de eventos durante 2 anos. Ao longo de décadas, pouco a pouco, a peste dizimou as quinhentas maiores corporações em todo mundo, e levou de roldão dezenas de milhões de médias e microempresas, além de deixar arruinados milhões de pequenos investidores. Destruiu 45 por cento dos postos de trabalho nos mercados formais até então remanescentes nas doze maiores economias mundiais. A peste surgiu por uma coincidência absurda, que nenhum técnico de computador poderia prever, embora todos soubesse da possibilidade de ocorrer. Algo como um bug eletrônico do milênio elevado à enésima potência.

– Disso eu me lembro. Foi na virada de 2020 para 2030, e aconteceu por força da ação vingativa de pequenos grupos empresariais capitalistas destroçados por megaconglomerados; um grupo de 30 pessoas gerou poderosíssimo vírus responsável pela destruição em cadeia, numa escala de bomba de nêutrons, das redes internacionais de dados eletrônicos com transações financeiras e contábeis.

– Bem lembrado! Seu efeito imediato foi um gigantesco bloqueio de circulação da massa de trilhões de dólares aplicados nos 18 maiores mercados mundiais. Essa massa simplesmente não tinha meios de circular durante o bug financeiro. As empresas tiveram suas contas e resgates, créditos e passivos suspensos, numa reação tipo bola de neve – comentou rapidamente.

(Alf passou a mão na cabeça olhando vagamente para o céu.)

– No encontro – continuou Alf -, todos lamentavam que as transferências sob a forma de salário social e proteção aos grupos assalariados, ou seja, emprego e renda já tinham sido tão profundamente afetadas, que o surgimento da peste econômica, na primeira metade da década do novo milênio, veio como o golpe de misericórdia para quem já não tinha o que perder. Seu coroamento se deu com uma sucessão de desastres sociais e econômicos. Essa tendência, como você se lembra, estacionou depois do sexto mês da peste econômica, quando fracassaram todos os esforços para retomada das redes mundiais de comunicação.

– E os governos ficaram inteiramente impossibilitados de atender dezenas de milhões de homens e mulheres, não foi isso?

– Os dirigentes políticos estavam longe de imaginar que muito pouca gente acabaria morrendo por causa da peste econômica…

– Como assim?

– A pergunta a fazer hoje é a seguinte: “Como fora possível achar uma resposta para esse colapso de maneira tão surpreendentemente rápida, sem intervenção dos bancos, empresários, autoridades do governo?” – Essa é a pergunta na boca de meio mundo, Alf!

– Bem, quando uma pergunta pode ser feita, alguém já disse isso há dois séculos, é porque a resposta já está no ar, em busca de expressão. Dez anos antes do grande colapso da peste econômica, começara a tessitura de um movimento como uma trama de finíssima seda, cujo resultado foi a criação de inúmeras redes informais e grupos comunitários, além de novos empreendimentos associativos nos países capitalistas no Norte e no Sul do planeta.

– Também me lembro disso. A importância dessas redes como circuito não-oficial da economia foi crescendo tanto quanto a eficácia das suas formas de coordenação interna – interrompi Alf, sem imaginar o quão importante tinha sido isso, até ele retomar a palavra.

– Pois bem… Também foi importante a rapidez com que se alastraram essas experiências. Na Páscoa de 2030, tais ordens associativas formavam extensas redes setoriais ou clusters, unindo territórios, regiões, fronteiras nacionais e etnias, diferentes produtos, serviços e saberes: 1 milhão na Argentina, 4,5 milhões no Brasil, 15 milhões de passes ou sinapses econômicas – não se falava mais em troca! – realizados pelas redes associativas nos Estados Unidos, 19 milhões de passes ou sinapses na União Europeia. Houve também a contribuição importante da criação de um fundo mundial sobre as transações financeiras, a chamada TT – taxa Tobin, sugerida quarenta anos antes.

– Você se refere ao movimento independente da economia solidária?

– Sim. Mas devemos nos perguntar por que e como ela juntou suas energias com uma inexpressiva e minúscula escola de pensamento econômico, denominada economia ecológica. Seus fundadores, em meados do século XX, foram Nicholas Georgescu-Roegen, um físico especializado em economia, e o socioeconomista brasileiro, Celso Furtado. Acumularam cinquenta anos de linhas independentes de pensamento que iriam, antes do colapso de 2030, gerar reações contrárias à convicção de que grandes corporações econômicas não poderiam continuar a “almoçar de graça” durante o próximo milênio.

– Acho que estou a par disso. Um dos resultados dessa escola de pensamento não teria incentivado um movimento de boicote e substituição massiva dos produtos integrantes do padrão de consumo das camadas ricas privilegiadas das sociedades pobres do hemisfério sul, bem como daqueles das sociedade opulentas no hemisfério norte, incluindo a emergência do veganismo e vegetarianismo no consumo de massa?

– Precisamente. Embora esse boicote não tenha feito diferença no curto e médio prazo de 10 a 20 anos, ao longo da terceira década o sistemático boicote começou a afetar os lucros dos negócios operados pelas 500 maiores corporações. Para onde estava indo o consumo desse pessoal que abandonava as gôndolas dos supermercados e dos majestosos centros de compras? Redes de produtores de alimentos e serviços formadas para realizar sinapses econômicas entre os simpatizantes da economia ecológica e a economia solidária foram se formando desde os anos 70 do Século XX. Mas apenas na virada do milênio essas modalidades da economia adquiriram a capilaridade necessária. A explicação para isso fora seu encontro com milhões de redes da economia solidária. Em pouco mais de 30 anos, os compassos entre as duas redes foram vertiginosamente aumentando a ponto de 17 a 20% dos produtos consumidos na América do Norte, América Latina, África e Ásia (mas apenas 15% na Europa Ocidental e Oriental) terem origem em ambas as redes econômicas.

(Alf toma um gole de sua cerveja sem álcool).

– Mas como as redes associativas de ambas as economias, a solidária e a ecológica, que surgiram na virada do milênio passavam ao largo da economia formal e estruturaram novas esferas de coordenação de milhões de produtores de serviços, produtos e saberes? Como foram capazes disso!?

– Simples. Alguns economistas, políticos e administradores se deram conta da potencialidade estratégica dos novos agentes econômicos desvinculados do mercado tradicional. As novas redes tornavam viável abandonar o antigo padrão previdenciário e de salário social do século XX. Com isso, diminuíam perigosamente a adesão das pessoas ao sistema de mercado. A previdência no Brasil, por exemplo, em face do enxugamento brutal de entrada de novas gerações, 65% dos velhos de mais 68 anos estavam a descoberto na primeira década de 2030. Salvaram a Previdência, porém mataram o contribuinte! O que é que viabilizava essas redes, afinal? Era precisamente a capacidade de coordenação dos agentes. Eles não se consideravam atuantes no mercado capitalista, por força do colapso previdenciário – o que descolou definitivamente todas as regras de suas aposentadorias e da proteção social. Portanto, aderir ao mercado para quê? Assalariar-se sem vistas a uma aposentadoria básica e confortável? Buscar um emprego e associar-se a uma rede solidária e de economia ecológica passou a ser um comportamento suplementar, não-excludente.

– Ah! Então esse padrão de comportamento passou a ser elemento-chave do sucesso de milhões de redes associativas, cujos serviços e produtos tinham um selo inconfundível: ES (economia solidária em português, italiano, espanhol, francês e basco) ou GW (Gemmeinen Wissenschaft, em alemão e holandês), SE (solidaristic economics, em inglês); estampados em todos os locais e objetos, bottons e cartazes, flâmulas e notas de compra. Outro selo complementar era o da economia ecológica (EE), em associação com o primeiro.

– Mas por que falam tanto de 2030?

– Esse foi o ano em que desabaram as economias previdenciárias e de salário social nos 16 maiores mercados mundiais. Nessa época, as redes associativas fora do mercado capitalista já movimentavam algo em torno de 2/4 do produto mundial e 250 milhões de associados.

– 2/4 do produto mundial?! – Indaguei incrédulo. – O que isso tem a ver com a nova metodologia para calcular o produto econômico?

– A nova metodologia passou a incluir as contraproduividades como balanço negativo, entre elas a contabilidade social e ambiental das empresas e governos…- Você quer dizer que passaram a ser contabilizadas negativamente as formas de explorar a mão de obra sem código trabalhista e a exploração predatória de recursos naturais? – indaguei ainda mais surpreso.

– Sim. Condições desumanas de trabalho e exploração insustentável de recursos naturais foram consideradas como passivo na contabilidade nacional. Mais do que isso, os governos passaram a enxergar nas ações das redes associativas e da economia ecológica uma possível saída para o colapso do emprego, do salário e do seguro social. E mais, para certos partidos e seus políticos apoiarem firmemente esse modelo de economia solidária e ecológica, foi um passo rápido.

(Alf começa a ficar entusiasmado. Levanta-se para pegar outra cerveja).

– A primeira medida histórica dos governos foi proteger as ações das organizações atuantes na economia solidária em dois pontos de articulação: um no âmbito territorial, nesse caso, articulando demais instâncias regionais, formando malhas de pequenas redes, fortalecendo-as com base na prestação de consultoria em circulação ou motivação de operação de passes (outrora na economia capitalista chamada de “marketing”); e o outro, no desenvolvimento tecnológico em unidades de criação independentes de uma rede específica, mas capaz de prestar assistência a centenas delas. A segunda medida foi estabelecer uma coordenação entre as diversas malhas de todos os tipos em órgãos que passaram a formar uma terceira camada da economia solidária e ecológica.

– E essas medidas sofreram muita resistência?

– Sim, sem dúvida. As medidas oficiais visando converter os empresários e capitalistas em geral enfrentaram violenta oposição em sociedades em que o mercado tradicional avançara muito, como nos Estados Unidos. Esse processo era um movimento pacífico, cercado de reações potencialmente agressivas protagonizadas por empresários e corporações. Uma vez neutralizadas essas reações violentas, havia a absorção dos quadros de empregados e assalariados. Os grandes executivos, diretores e gerentes das organizações complexas foram os últimos a aderir à economia solidária e ecológica. Mantiveram-se como baluartes em meio à tempestade e, mesmo sitiados, levariam décadas ou todo um século resistindo com suas práticas de economia competitiva, com escalas ora decrescentes, ora crescentes de lucros.

– Era isso que chamavam de “economia mista”, no século XX?

– Boa pergunta! Economia mista até a década de 80 do século passado queria dizer um regime que tentava combinar planejamento econômico centralizado pelo Estado com economia de mercado capitalista.

– Então no século XXI falar em economia mista passou a ter outra conotação?

– Sim! Esse é o ponto! No encontro de Praga a grande discussão fora precisamente o sentido que vinha adquirindo o processo de economia mista. – comentou Alf em meio a uma baforada de cachimbo. – Estava fazendo um frio terrível em Praga… mas os debates foram acalorados e havia uma razão de ser. Alguns se perguntavam se a economia de mercado capitalista não estaria sendo abolida apenas pela metade, com a disseminação da economia solidária. No lugar das corporações teriam surgido grande redes de passes ou sinapses, simples mercados, destituídos de capitalistas, capital financeiro, industrial, políticas de proteção e fomento do Estado, enfim, uma economia de mercado sem capitalismo! Outros polemizavam com o fato de que a junção entre economia solidária e da economia ecológica era imperfeita (embora funcionasse bem na África, Ásia e América Latina), mas mesmo assim muita pressão continuava a ser feita sobre os três ecossistemas básicos para a vida no planeta – águas, terras e florestas – para se produzirem itens, bens, serviços. A produção ainda era imperfeita do ponto de vista da perda energética nesses ecossistemas.

– Então foi aberto um novo “mainstream” teórico e ideológico nesse encontro de Praga?

– Sim. Essa é a lição que herdamos da peste econômica no século XXI – exclamou Alf levantando-se e pegando um pequeno livro – Como disse um dos economistas presentes no encontro de Praga: “Quando o Mercado e o Progresso reinavam absolutos, a economia tornou-se um acontecimento externo na vida das pessoas. O Progresso apenas substituiu parcialmente a Providência. Restou um espaço para a história que na atualidade substituiu o Progresso. Antes as pessoas continuavam sentindo que tinham muito pouco controle sobre seu destino. Agora parece que recuperamos um pouco dessa capacidade de nos indignar, em todo mundo, de termos algum controle!

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